segunda-feira, 10 de fevereiro de 2020

In Memoriam – Padre António Cardigos


Entrava na sala de aula sem dizer nada, pegava no giz branco e do traço firme das suas alvas mãos nasciam, sob o escrutínio silencioso de uma turma em suspense, maravilhosos desenhos que exigíamos que se perpetuassem no quadro negro até ao fim do dia (pelo menos…!). Assim anunciava a sua presença, seguindo-se a habitual catequese polvilhada de encantadoras histórias, com a sua voz doce, os olhos de um azul penetrante que pareciam ler-nos a alma (por certo reminiscências da sua formação em psiquiatria) e o discurso bem-humorado que lhe era tão característico.

Mas o génio artístico não cessava no desenho: o Pe. Cardigos tinha também o dom de escrever numa linguagem poética que, juntamente com a sua imensa cultura literária, faz com que os seus livros não se leiam, mas se devorem (“E o que mais dói a Cristo é o afastamento dos crentes do culto eucarístico. Sacrários ignorados, sacrários que só abrem aos Domingos, sacrários sem o perfume de uma flor[1]…”). Transmitia-nos a Fé pela razão e pela arte.

A curvatura abdominal que se adivinhava pela batina era convite certo para, em pequenas, irmos a correr ao seu encontro e darmos largos abraços, seguidos de um puxão nas tranças, um beijo na testa e uma bênção, vinda das mesmas mãos que, um dia mais tarde, nos dariam a Primeira Comunhão.

Veneráveis mãos que nos fizeram chegar, pela primeira vez, a absolvição e o próprio Jesus; mas não sem antes nos formar de modo completo e exigente na recta doutrina, e de nos incutir piedade e amor pela Santa Missa, e uma especial devoção eucarística que nos marcou de forma indelével.

Ao longo do tempo fui-me apercebendo que a forma como hoje vivo a Fé, muito a ele devo. Os pormenores que tinha quando celebrava, a intransigência doutrinal, as orações que ensinava, as jaculatórias que até hoje nos saem de cor, e as próprias referências que fazia nos seus textos têm estreita conexão com a familiaridade que experimento na Missa tradicional e não raras vezes medito nesta coinci(Provi)dência. Felizmente pude-lhe repetir isto no seu último aniversário, dando-lhe conta da gratidão eterna que sempre lhe terei.

O Pe. Cardigos era verdadeiramente mariano, e viveu sempre sob a égide de Nossa Senhora. Escrevia, nos Mistérios de Maria, “a nossa vida está ligada a quilómetros de contas passadas pelos dedos de quem nos quer bem”. Fez de Maria nossa Mãe desde a mais tenra idade, tal como Jesus a S. João, no Calvário. Calvário que lhe coube em parte com a doença com que viveu tantos anos, em sofrimento silencioso, mas certamente entregue para a salvação de muitos.

Encontrar Jesus começa assim: «Tudo aquilo que nos relaciona com Deus é um convite à alegria, à esperança, ao entusiasmo da juventude. Deste modo o sacerdote ao começar a Santa Missa segundo o antigo ritual, dirigia-se ao altar dizendo “irei ao altar de Deus que é a alegria da minha juventude”». Na mesma obra, mais à frente, a propósito dos Novíssimos acrescenta “ainda que pareça um paradoxo, a morte dá-nos um grande entusiasmo pela vida. A luz da morte não se pode esconder sobre debaixo do alqueire da hipocrisia. (…) A morte reflecte a eternidade sobre a nossa vida presente, mostra o seu valor e ensina-nos a viver. (…) A nossa maior tentação é não pensar na eternidade, é encerrar-nos no tempo, num universo fechado, ou pensar que cada um dos nossos dias é uma ilusão sem sentido. E esquecemo-nos de que no tempo temos de responder a um chamamento eterno. Não consciencializamos que cada minuto, que nos foge como água por entre os dedos, tem uma repercussão eterna.” O Pe. Cardigos será sempre apanágio desta alegria e juventude da alma dos que vivem em Deus.

Os mistérios não se conhecem, reconhecem-se. (…) Há uma diferença entre os problemas e os mistérios. Defrontamos os problemas para os resolver, não defrontamos os mistérios porque não podemos. São eles que nos interpelam e nos comprometem. Hoje em dia, andamos envolvidos e a tentar resolver problemas e não temos tempo para os mistérios. Vivemos preocupados com o ter, que constitui um problema e não com o ser, que é um mistério.”[2]

Escrever, em breves linhas, sobre alguém que nos marcou profundamente a vida é um exercício injusto e frustrante. Mas um exercício necessário para que nos lembremos da importância de termos bons e santos sacerdotes, que nos marquem a vida para sempre, ensinem a reconhecer e contemplar o Mistério e a comprometermo-nos, unicamente, com o Céu.

Obrigada, Pe. Cardigos, por ter sido na nossa vida alter Christus, ipse Christus!

+ Padre António José Serra Cardigos
(15 de Junho de 1937 – 9 de Fevereiro de 2020)

Requiem aeternam dona ei, Domine, et lux perpetua luceat ei. Requiescat in pace. Amen.


Catarina Nicolau Campos
9/02/2020



[1] Encontrar Jesus, 1995
[2] Mistérios de Maria, 1994


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1 comentário:

francisco disse...

Que bela partilha e testemunho. Deus receba o padre António Cardigos no Seu Reino.

Sabem indicar onde se pode obter os livros do padre António Cardigos?