Tomo
a liberdade de reagir à declaração de Vossa Excelência, “Sobre o Vaticano II e as suas consequências” (Chiesa
e post concilio, 9 de Junho de 2020), para sublinhar, modestamente, a
importância desta declaração para a Igreja.
Que
me seja permitido resumi-la em cinco pontos:
1
– O Vaticano II contém textos “em oposição directa à doutrina até então expressa
no Magistério”
Vosso
ataque ao Vaticano II visa:
A)
Aquilo que está em desacordo directo com a doutrina anterior, como a liberdade
religiosa, da declaração Dignitatis humanæ, e os fundamentos
presente nas declaração Nostra ætate sobre as novas relações
com as religiões não-cristãs; ao que poderíamos ainda acrescentar o decreto
sobre o ecumenismo, Unitatis redintegratio, que introduziu a
inovação da “comunhão imperfeita” que teriam aqueles que estão separados de
Cristo e da Igreja;
B)
Além de ambiguidades que podem ser utilizadas no sentido tanto da verdade
quanto do erro, como o subsistit in do n. 8 da
Constituição Lumen gentium: “A Igreja de Cristo subsiste na Igreja
Católica”, em lugar de: “A Igreja de Cristo é a Igreja Católica”.
2
– Tais distorções doutrinais são a origem dos erros que se seguiram – de que o
“espírito do Concílio” é a prova.
Vossa
Excelência explica que os desvios ou elementos muito prejudiciais para a fé
cristã, que marcaram o período pós-conciliar (como a Declaração de Abou Dhabi,
mas também as jornadas de Assis, a reforma litúrgica, a prática da
colegialidade), encontram sua origem nestas distorções.
Além
disso, ressalta de vosso texto que o conceito “espírito do Concílio” confirma a
especificidade inovadora dessa assembleia, “pois nunca houve um ‘espírito do
Concílio de Niceia’, nem ‘espírito do Concílio de Ferrara-Florença’ e muito
menos um ‘espírito do Concílio de Trento’, assim como nunca houve um
‘pós-concílio’ depois do Latrão IV ou do Vaticano I”.
3
– Tais distorções não podem ser corrigidas
As
tentativas visando corrigir os excessos do Concílio Vaticano II, escreveis,
foram impotentes:
A)
Seja porque se enveredou pela via insuficiente da “hermenêutica da
continuidade”. Com efeito, isso é tanto mais inviável quando essa hermenêutica
é tanto menos um retorno ao magistério anterior, mas representa a busca de uma
terceira via entre inovação e tradição. Bento XVI, no seu discurso à Cúria
Romana de 22 de Dezembro de 2005, defendia uma “hermenêutica da renovação na
continuidade” contra a “hermenêutica da descontinuidade e da ruptura”. Mas esta
última, porém, diz respeito tanto aos ‘tradicionalistas’ quanto aos
‘progressistas’, pois uns e outros consideram que o Vaticano II operou algumas
rupturas.
B)
Seja porque se incitou o Magistério a “corrigir” os
erros do Vaticano II. Justamente vós mostrais que este projecto, “mesmo com a
melhor das intenções, mina as fundações do edifício católico”: com efeito, opor
o magistério de amanhã ao de hoje, que contradisse o de ontem, levaria a que
nenhum acto de Magistério jamais fosse definitivo. Assim, num complemento
de 15 de Junho (Chiesa e post concilo), Vossa Excelência sustenta a
opinião de que um Papa no futuro “poderia anular todo o Concílio”.
Se
me é permitido ampliar a vossa análise, diria que a única solução para
contradizer por um acto do Magistério um ato precedente é constatar que o acto
em questão não é magisterial na plena força do termo. Por exemplo, Pastor
Aeternus, do Concílio Vaticano I, em 1870, anulou de facto o
decreto Frequens, do Concílio de Constança, em 1417, que pretendia
institucionalizar a superioridade do Concílio sobre o Papa. Essa anulação foi
possível porque a Santa Sé nunca reconheceu o valor dogmático de Frequens.
Do
mesmo modo, com o Vaticano II, encontramo-nos num cenário como o de Frequens,
uma vez que os órgãos do próprio Concílio Vaticano II (Dz 4351) e
toda a interpretação posterior assegura que este Concílio foi de natureza
simplesmente “pastoral”, isto é, não dogmática. De facto, o grande meio para
sair da presente crise do Magistério é deixar aquilo a que se chama “pastoral”
para trás, e entrarmos de novo no dogmático: que o Papa sozinho ou o Papa e os
Bispos unidos a ele se expressem magisterialmente e não apenas “pastoralmente”.
4
– O presente pontificado é um esclarecimento paradoxal
Vossa
Excelência escreve: “Aquilo que, desde há anos, ouvimos enunciado, vagamente e
sem clareza, da mais alta Cátedra, encontramo-lo depois elaborado num
verdadeiro e propriamente dito manifesto dos partidários do presente
pontificado”.
Era
o que muitos sentem quando tentam dar uma pia interpretatio (n.t.:
interpretação piedosa) dos textos controversos do Vaticano II: eles dizem
que (n.t.: a doutrina claramente heterodoxa professada a partir dum
magistério ambíguo e sem clareza) não é possível, pois que a aplicação (n.t.:
ortodoxa dos textos conciliares), de certo modo autêntica, é feita hoje em
dia. Os textos deste pontificado são uma conclusão dos pontos litigiosos do Concílio,
como, por exemplo, o reconhecimento errado dos direitos da consciência na
Exortação Amoris lætitia, cujo n. 301 declara que em certas
circunstâncias o adultério não é pecado.
5
– Um dever de consciência pesa sobre os prelados da Igreja, quais tenham
consciência dessa situação
Falando
de si mesmo, dizeis: “Eu mesmo, com honestidade e serenidade, obedeci, ao longo
de sessenta anos, a ordens questionáveis, acreditando que representassem a voz
amorosa da Igreja; e hoje, com igual serenidade e honestidade, reconheço que me
deixei enganar”.
Numerosos
prelados, desde as últimas assembleias do Sínodo, são notoriamente conduzidos a
recuar diante das consequências actuais das causas que remontam há meio século. O vosso exemplo e encorajamentos podem ajudá-los a expressar, com consciência, e
para o bem da Igreja, os seus desacordos com estas causas: os pontos defeituosos
do Vaticano II.
O Padre Claude
Barthe é autor professor de Liturgia e autor de
várias obras, como: ‘Trouvera-t-il encore la foi sur la terre? Une crise de l’Église, histoire et questions’ (François-Xavier
de Guibert, 2006, 3a edição); La Messe de Vatican II.
Dossier historique (Via Romana, 2018).
Tradução: Fratres in Unum
1 comentário:
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