quinta-feira, 4 de julho de 2024

História sucinta da vida, morte e exclesas virtudes da Rainha Santa Isabel

Muito se tem escrito acerca da vida da excelsa e virtuosíssima D. Isabel d'Aragão, Esposa d'el-rei D. Dinis de Portugal; mas impunha-se, há muito, a publicação d’um folheto como este, que, sendo conciso na sua descrição, não deixasse de relatar os factos que mais distinguiram Àquela que a cidade de Coimbra escolheu para sua Augusta Padroeira e Protetora.

O que o autor deste folheto teve em vista foi facultar aos fiéis, com grande economia de preço, um livrinho de leitura fácil e corrente, ao alcance de todos, onde a história sagrada da Rainha Santa possa deixar bem arraigada no espírito dos crentes a obra sublime, verdadeiramente maravilhosa, que lhe concedeu lugar na corte celestial.

As notas que colhemos foram extraídas, principalmente, do monumental trabalho de investigação histórica do Exº. Sr. Dr. António Garcia Ribeiro de Vasconcelos, na sua tão apreciada obra “D. Isabel d' Aragão”.

A fama de santidade da Rainha Santa Isabel estende-se por todo Portugal e por muitas terras de Espanha. Em Coimbra, porém, é tão grande que em parte alguma do nosso País se realizam festas tão pomposas em honra d’um santo, como nesta cidade, onde concorrem para mais de 50.000 pessoas por essa ocasião.

É nos momentos de luta pela adversidade da vida que os conimbricenses, principalmente, recorrem à proteção da Rainha Santa, na sua fervorosa suplica, e se nem sempre logram alcançar a satisfação das suas preces, é já poderoso lenitivo para a sua dor a lembrança de que Ela nunca desamparou os infelizes com a sua divina graça.

Isabel d'Aragão, tendo sido um grande exemplo de virtudes, deu também uma prova bem frisante do seu amor a Coimbra, determinando em seu testamento que o seu corpo sagrado repousasse no Mosteiro de Santa Clara desta cidade, onde Ela esteve enclausurada, e donde foi trasladado o seu corpo para o novo mosteiro do mesmo nome.

É, pois, pouco quanto façam os conimbricenses em honra da memória sagrada da Sua excelsa Padroeira.

CAPITULO I - Nascimento da Rainha Santa, da corte de Aragão ao Trono de Portugal

A Rainha Santa Isabel, que Coimbra se ufana de ter como desvelada Protetora e valiosa Padroeira, nasceu na cidade de Saragoça (Espanha), no ano de 1271.

Filha do Príncipe real D. Pedro de Aragão e de sua esposa D. Constança, o seu nascimento foi desde logo iluminado pela graça divina, pois que seu avô, El-rei D. Jaime, que até aí vivia em grande discórdia com D. Pedro de Aragão, imediatamente se congraçou com este, passando ambos a viver na mais doce harmonia.

Assim demonstrou Deus aos homens que esta menina estava reservada a ser na terra a medianeira da paz, o Anjo predestinado a estabelecer a harmonia e a concórdia entre os desavindos; facto que mais tarde, quando Rainha de Portugal, se verificou nas diversas desavenças entre seu esposo, El-rei D. Dinis, e seu filho, D. Afonso IV.

A Rainha Santa Isabel foi, como já dissemos, aureolada desde o seu nascimento pela graça do Senhor. As suas preciosas virtudes bem cedo se revelaram, crescendo nela com a idade a fama que tanto a impôs à consideração de todas as cortes da Europa, facto que despertou em bastantes príncipes o desejo de possuírem como esposa tão excelsa senhora (6).

Foi à corte de Portugal, felizmente, que coube a suprema ventura de ser a preferida entre todas as outras, merecendo El-rei D. Dinis a glória de ter como consorte um tesouro de tantas virtudes e de tão preciosos encantos.

O casamento de D. Dinis com D. Isabel celebrou-se por procuração na antiga cidade de Barcelona, tendo lugar este acto no dia 11 de fevereiro de 1282, e contando a futura Rainha de Portugal apenas 11 anos de idade. Este auspicioso enlace constituiu um motivo de grande regozijo para todos os portugueses, antevendo estes os enormes benefícios deste casamento, o qual foi muito festejado e aclamado em todo o País, com demonstrações de grande alegria e verdadeira satisfação.

A saída de D. Isabel para Portugal causou a seus pais grandes tristezas, custando-lhes imenso essa separação pelas profundas saudades que D. Isabel deixava em todos os corações, que muito a estremeciam.

De Espanha até Coimbra foi a excelsa Rainha delirantemente aclamada por todo o povo que acorria à sua passagem, salientando-se mais essas carinhosas manifestações na antiga vila de Trancoso, onde, no dia 24 de junho de 1282, no templo de S. Bartolomeu, se celebraram com toda a pompa as bênçãos nupciais.

Em Coimbra, onde a esse tempo residia a Corte, juntamente com a principal nobreza do Reino, as manifestações de contentamento e alegria pela chegada dos régios nubentes atingiram o mais delirante entusiasmo, conquistando logo a Rainha D. Isabel a simpatia e o amor d’um povo que, mais tarde, havia de herdar o seu mais precioso tesouro — o sagrado corpo que todos (7) hoje veneramos — e que esta cidade conserva com a mais desvelada e respeitosa devoção.

As manifestações de regozijo com que a cidade recebeu os régios consortes foram, pois, verdadeiramente grandiosas, vestindo a cidade as suas melhores galas para bem lhes significar o contentamento de que se achava possuída por motivo daquele enlace, cujos efeitos tanto se evidenciaram na vida da Nação portuguesa, e de que Coimbra coparticipou em larga escala pelos benéficos actos de caridade que a Santa Rainha espalhou por toda a parte.

Foi nesta cidade, principalmente, que D. Isabel de Aragão manifestou mais claramente a pureza da sua alma. Os actos de caridade que praticou, os socorros por ela prestados à indigência, aos órfãos, às viúvas e às donzelas abandonadas, foram os primeiros labores que lhe teceram a sua coroa de glória; a fundação de asilos, de albergues e de hospitais, que a sua magnificência sustentou e onde se recolhia uma legião de infelizes, originou, sem dúvida, a fama de santidade que bem cedo a distinguiu e que, mais tarde, a 25 de Maio de 1625, dia da Santíssima Trindade, a Igreja confirmou, englobando-a no número dos eleitos do Senhor.

CAPITULO II - Actos de Caridade

Se durante a vida de El-rei D. Dinis a ação da Rainha Santa foi um constante manancial de actos virtuosos, a partir do momento da sua viuvez, a sua ação tornou-se verdadeiramente exemplar (8).

O número de factos que desde então assinalam tão gloriosa existência na terra, mais e mais fazem arraigar na alma do povo a convicção dos desígnios de Deus, por Ela tão santamente interpretados.

Sem todavia esquecer os deveres de Rainha, que lhe absorviam uma grande parte dos seus cuidados, e não poucas vezes foram motivo de profundos desgostos, D. Isabel de Aragão cinge livremente o hábito de freira clarissa, e, volvendo os olhos piedosos para um mais largo horizonte, consagra-se completamente a obras de caridade, fundando e auxiliando hospícios e asilos, nos quais se albergam, sob a sua proteção, muitas infelizes que se regeneraram pelos seus conselhos e alcançaram na terra a felicidade que só sabem gozar as almas puras e simples.

Querendo encaminhar-se pela estrada luminosa que da terra se eleva até Deus, um dos seus primeiros cuidados, ao ver-se cingida pela roupagem da viuvez, foi trocar os faustos das glórias terrenas pela humildade da clausura a que, como já dissemos, livremente se sujeitou.

Junto dos seus Paços reais corriam vagarosamente as obras para a fundação do Convento de Santa Clara, obras que prometiam eternizar-se por demandas entre os frades crúzios (a) e D. Maior Dias, fundadora daquele convento, e que certamente ficariam incompletas se não fosse o auxílio e proteção que a Rainha Santa dispensou para a sua rápida conclusão.

Uma vez concluído, cuidou logo a Rainha Santa em fundar junto deste convento um asilo para órfãos e para a pobreza envergonhada, chamando para junto de si (9) algumas amas de leite com o encargo de alimentarem as crianças desvalidas!

A maior parte do seu tempo tinha-o a Rainha Santa distribuído por forma a satisfazer os seus deveres de Rainha e cristã; o restante, empregava-o no ministério da caridade, visitando os asilados, a quem não só consolava com a sua palavra, mas muitas vezes servia de carinhosa enfermeira, curando as chagas que lhes corroíam o corpo.

Nesta e em muitas outras obras de verdadeira abnegação, despendia a Rainha Santa quase toda a sua fortuna. Com o auxílio de Deus, a quem firmemente procurava engrandecer com os merecimentos das suas preciosas virtudes, nunca a Rainha Santa lutou com dificuldades para se desempenhar da sua nobre missão. Os proventos de que dispunha parece que tinham o condão de se multiplicar, e, se algumas vezes houve em que o seu socorro tinha de fazer face a maiores calamidades, então eram as rosas que, adquirindo a forma de ouro reluzente, premiavam os seus actos de caridade e satisfaziam os encargos adquiridos para garantir o pão aos famintos!

Da sua vida, tão brilhantemente documentada na preciosa obra de S. Exª. o sr. Dr. Antônio Garcia Ribeiro de Vasconcelos, erudito professor da Universidade de Coimbra [1], constam muitos e importantes factos da vida gloriosa da Rainha Santa, traduzidos todos eles nos mais altos benefícios em favor dos desprotegidos (10).

CAPITULO III - Morte da Rainha Santa

Em Junho de 1336, teve a Rainha Santa conhecimento de que seu filho D. Afonso IV e seu neto D. Afonso XI, rei de Castela, se haviam indisposto por motivo de graves acontecimentos, tendo-se declarado a guerra entre aqueles dois poderosos monarcas.

Quando a Rainha Santa soube de tal resolução, imediatamente se resolveu a partir para Estremoz, lugar onde a esse tempo estava o seu filho acompanhado de toda a Corte.

Este propósito foi prudentemente combatido pelos médicos da Rainha Santa, os quais, temendo mais o excesso do calor e a fadiga dessa longa viagem do que a idade da virtuosa Senhora, se apressaram a demovê-la dessa resolução. Inúteis rogos e infrutíferas tentativas! A Rainha Santa, desprezando esses bons conselhos e animada somente em restabelecer a paz entre os reis desavindos — filho e neto —, parte apressadamente de Coimbra, caminhando sob um sol abrasador, e chega finalmente junto das fortalezas de Estremoz, abatida e fatigada, mas cheia de ânimo para cumprir a sua carinhosa missão.

Logo que a sua chegada é conhecida no acampamento de D. Afonso IV, imediatamente se suspendem as hostilidades e todos se abeiram do leito da Rainha Santa, para lhe prodigalizarem os cuidados que a sua melindrosa saúde exigia.

Baldados esforços porque o mal agravava-se de momento para momento. Uma pústula que rapidamente (11) lhe apareceu num braço tornou mais melindroso o seu estado, e, no dia 4 de julho, manhã cedo, a Rainha Santa declarou que queria receber os últimos Sacramentos. Na tarde desse mesmo dia, as forças principiaram a faltar-lhe, a Rainha Santa vê que é chegada a sua última hora, e, erguendo o pensamento até ao Céu, encarrega a Mãe de Deus de lhe receber a alma, pronunciando com toda a suavidade estes versos do hino eclesiástico:

Mãe de graças e Misericórdia
Maria piedosa e forte:
Livra a minha alma, recebe-a
Na hora da minha morte.
A seguir, recita com visível comoção algumas orações; os olhos fecham-se lentamente, o peito deixa de arfar, e todos os presentes, estupefactos ante aquele quadro tão emocionante, compreendem que a alma pura da Rainha Santa, solta do seu venerável corpo, subia aos céus a receber o prêmio das suas virtudes, descansando para sempre na paz do Senhor, onde eternamente gozará a bem-aventurança com que Deus premeia os seus eleitos.

É, pois, no reino celestial que a nossa Santa Protetora está recebendo o prêmio das suas boas ações e dos seus constantes trabalhos. Ali, no seio de Deus, junto da Virgem Santíssima, intercede pelo seu povo, por aqueles que a ela recorrem com a alma angustiada pelas dores humanas, e que jamais esquecem o seu nome para lhe tributar as homenagens do seu reconhecimento. Essas homenagens concretizam-se no culto (12) fervoroso de todos os portugueses pela Santa Rainha, e, mui especialmente, do povo de Coimbra que por Ela nutre o maior respeito e a mais significativa devoção.

CAPITULO IV - Trasladações

Logo a Rainha Santa ter entregado a sua alma a Deus, o primeiro cuidado da Corte foi escolher local para depositar o corpo de tão excelsa Senhora, opinando uns para que fosse sepultado no Convento dos Franciscanos, em Estremoz, e outros para que fosse trasladado para a Sé de Évora, a cidade mais próxima daquela terra. Por conselho de El-rei, procurou-se o testamento de D. Isabel, e, vendo-se por ele que a Rainha Santa queria ser sepultada em Coimbra, na Igreja de Santa Clara, foi respeitada esta vontade, dando-se logo ordens para se pôr em pratica o desejo ali expresso.

Apesar das opiniões em contrário, prevaleceram as determinações de El-rei.

O préstito fúnebre saiu de Estremoz na tarde do dia 5 de julho e, em marchas apressadas, chegou a Coimbra no dia 11 do mesmo mês, tendo atravessado tão longo percurso debaixo d’um sol abrasador.

As inúmeras pessoas que constituíam o préstito fúnebre foram tomadas de verdadeiro espanto quando, ao 3º dia de viagem, notaram que o ataúde onde vinha o corpo de Santa Isabel principiava de abrir algumas fendas, escorrendo por entre elas um liquido que todos supuseram ser proveniente da decomposição do cadáver (13).

Mas, feliz engano! Esse liquido, longe de exalar qualquer cheiro desagradável, antes era ameno e consolador, espalhando no espaço um tal aroma que, aqueles que a princípio se sentiam inquietos e desconfiados, logo se aproximaram do ataúde, louvando ao Senhor por esta manifestação da Sua omnipotência.

Quando o cortejo chegou a Coimbra, deram-se então cenas comovedoras e lancinantes entre a população citadina. Todos, à porfia, queriam beijar o ataúde onde vinha a sua Protetora, a sua desvelada Benfeitora, ouvindo-se choros de verdadeiro compungimento pela morte da virtuosa Rainha, cujo passado tinha sido um manancial de graças e bondade!

Quando o ataúde deu entrada na igreja de Santa Clara, muita gente supôs que o corpo da Rainha Santa seria exposto à veneração do público. Tal se não deu; no dia seguinte, 12 de julho, é que se celebraram os ofícios divinos por alma de D. Isabel, sendo estes actos revestidos de toda a solenidade e com a assistência de alguns Prelados, Professores da Universidade, Rei, Cabido e muitos religiosos das diversas ordens.

Logo que eles terminaram, foi o ataúde transportado para uma capela que a Rainha Santa havia mandado edificar ao fundo da Igreja e na qual estava o túmulo de pedra que em sua vida também mandara construir.

Foi dentro deste precioso monumento de pedra, ricamente cinzelado, que se colocou o ataúde tal qual veio de Estremoz, envolvido numa pele de boi e com um pano de brocado repregado por cima.

Sobre o ataúde colocaram o bordão de peregrina e uma bolsa que o Arcebispo de S. Tiago de Galiza ofereceu à Rainha Santa quando ela visitou esta cidade (14), sendo em seguida fechado o túmulo com a pesada pedra que ainda hoje o cobre e na qual vemos representada a figura da Rainha Santa com habito de freira.

Assim se conservou até ao dia 26 de março de 1612, 276 anos depois da sua morte, dia em que foi aberto por consentimento do Sumo Pontífice.

Esta cerimônia, que se tornou necessária para se proceder ao processo de canonização de D. Isabel, foi presidida pelo Bispo de Coimbra, D. Afonso de Castelo Branco, e, tendo como assistentes, D. Martim Afonso, Bispo de Leiria, Dr. Francisco Vaz Pinto, dois médicos, um cirurgião e algumas testemunhas, a quem foi confiado o encargo de examinarem os restos mortais da Rainha Santa.

Pedimos licença para trasladar para aqui o relato que sobre esta cerimónia encontramos no autorizado (15) livrinho — "Historia Popular da Rainha Santa Isabel" — Protetora de Coimbra.

“Subindo à capela superior, onde estava o túmulo, e analisando-o com todo o cuidado por fora, acharam-no exatamente como havia ficado 276 anos antes, quando sobre ele se colocara a tampa, depois de introduzido o ataúde que encerrava o corpo. Apenas a piedade dos fieis o havia rodeado de demonstrações da fé e amor que os prendia Àquela cujos restos ali estavam encerrados.

“Ninguém sabia se o túmulo continha somente os ossos da santa Esposa de D. Dinis, se mais alguma coisa que ainda restasse do corpo e mortalhas; por isso, todos estavam ansiosos por que o túmulo se abrisse.

“Retirada a pedra, encontrou-se a bolsa e o bordão de peregrina, que foram pelo bispo-conde entregues à guarda das religiosas.

“O ataúde ainda se achava envolvido em restos da pele de boi e da tela vermelha que havia sido repregada por cima.

“Com dificuldade se despregou a tábua superior do ataúde, cortaram-se à tesoura os numerosos envoltórios em que a santa Rainha fora amortalhada em Extremoz, antes de ser metida no caixão, os quais, se encontraram com admiração de todos, em perfeito estado de conservação, como se ali tivessem sido colocados pouco antes.

“Por fim descobriu-se o rosto, peito e braço direito da nossa excelsa Protetora. Todos caíram de joelhos, estupefactos pelo grande milagre que viam!

“O corpo achava-se inteiro e incorrupto, branco como se fosse de cera, a cabeça coberta de louros cabelos, (16) perfeitamente seguros na pele, a boca e olhos fechados e bem compostos, tendo impresso na fisionomia o cunho da bondade e majestade que haviam sido apanágio da Rainha Santa. Vestia o habito de estamenha (b) das freiras de Santa Clara, e um pano branco de linho envolvia-lhe a cabeça. Do ataúde saia aroma suave.

“À vista de tal milagre, as religiosas cantaram o hino do velho Simeão, dizendo: ‘Agora, Senhor, já podeis deixar-nos morrer em paz, porque os nossos olhos viram as grandes maravilhas do vosso poder’.

“Feito pelos médicos e cirurgião o exame minucioso que se lhes pedia, consertaram-se de novo as mortalhas, o túmulo fechou-se, e de tudo se lavrou o auto competente”.

Com o decorrer do tempo e as sucessivas enchentes do Rio Mondego, muito grave se tornou a vida monástica no convento fundado pela Rainha Santa. Como as invernias (c) ameaçassem sepultar nas areias daquele rio as paredes do convento, as religiosas receavam, e com razão, ficar sepultadas sob os seus escombros, perdendo-se neles todas as preciosidades que enriqueciam a igreja e entre as quais devemos destacar o precioso corpo da Rainha Santa.

Em vista, pois, dos graves e constantes perigos a que estava sujeita a comunidade do velho mosteiro, dignou-se El-rei D. João IV ouvir os rogos das religiosas clarissas e mandou erigir no Monte da Senhora da Esperança um novo convento para sua habitação.

As obras deste grandioso edifício, que se prolongaram durante muito tempo, foram iniciadas no dia 5 de julho de 1649, e só no dia 29 de outubro de 1677 (17), 28 anos depois, ele estava apto a receber as referidas religiosas.

Por ordem do Príncipe regente D. Pedro, 2º filho de D. João IV, procedeu-se no dia 27 de outubro daquele ano à abertura do túmulo da Rainha Santa, assistindo a este acto alguns representantes da Corte, 8 Bispos, Professores da Universidade e muitos religiosos das diversas ordens de Coimbra. Como se verificasse que o caixão que guardava o corpo da Rainha Santa estava um tanto deteriorado, logo se procedeu à construção d’um outro que o substituísse e para o qual foi mudado o corpo da veneranda Padroeira de Coimbra. Durante esta operação, quis o acaso que se soltassem algumas pregas das roupagens que envolviam os despojos de Santa Isabel, podendo assim todos os presentes ver a mão direita desta virtuosa Rainha, alva como a neve, e em tão perfeito estado de conservação que logo provocou o natural e piedoso desejo de ser osculada, como o foi com efeito, por todos aqueles que tiveram a suprema felicidade de ali estar reunidos.

Duraram os preparativos da trasladação para o novo convento ainda 2 dias, e, em 29 de outubro, foi a Rainha Santa para ali conduzida em procissão, acompanhada de muitos milhares de pessoas, e tendo de atravessar por entre duas alas compactas de povo que se estendiam até ao novo convento.

Como a essa data não estivesse ainda concluída a igreja que hoje admiramos, foi o corpo da Rainha Santa conduzido para uma pequena sala existente ao fundo do Coro, colocando-se então no precioso e riquíssimo túmulo de prata (fig. 2) que D. Afonso de Castelo Branco, um dos mais notáveis Prelados desta diocese, mandara fabricar, e no qual ainda hoje se guarda o (18) precioso tesouro que Coimbra venera com o maior respeito e o mais devotado amor!

Concluída que foi a Igreja de Santa Clara, procedeu-se no dia 3 de julho de 1696 a nova trasladação da Rainha Santa para a tribuna da Capela-Mor, lugar em que esteve durante muitos anos e donde teve de mudar-se por causa da invasão dos franceses.

No dia 1 de outubro de 1810, tiveram as freiras conhecimento de que os soldados de Massena, enfurecidos com a derrota que tiveram no Bussaco dias antes, vinham a caminho de Coimbra. Sabedoras do pouco respeito que aos soldados franceses mereciam as preciosidades do nosso País, apressaram-se elas em esconder as melhores alfaias do Convento e, apressadamente, retiraram também do seu lugar o túmulo da Rainha Santa, o objeto da sua mais estremecida estima, indo ocultá-lo numa cela do dormitório, a última do lado esquerdo, onde dois pedreiros de absoluta confiança o (19) entaiparam, sob um arco que engenhosamente foi disfarçado com uma cortina de alvenaria.

Aí se conservou o túmulo da Rainha Santa até ao ano de 1814, data em que se restabeleceu a paz geral, sendo então novamente mudado para o seu lugar com grande regozijo das freiras clarissas e ainda mais do povo de Coimbra, que ansiosamente desejava acercar-se do túmulo da sua desvelada Protetora, da sua excelsa Padroeira.

Infelizmente, não pararam aqui as mudanças a que esteve sujeito o túmulo da Rainha Santa.

Quando em 1852 D. Miguel visitou esta cidade, resolveram as freiras, certamente no propósito de ver também a Rainha Santa, mudar o seu tumulo para o Coro Superior da igreja. Com efeito, no dia 21 de outubro daquele ano, foi D. Miguel a Santa Clara e aí, na presença das pessoas do seu séquito, foi aberto o caixão onde está o corpo da excelsa Rainha, esposa de D. Dinis.

Para o mesmo efeito foi, ainda, o túmulo da Rainha Santa mudado no ano de 1852, por ocasião da visita de D. Maria II a Coimbra, e em 1860, quando aqui esteve El-rei D. Pedro V. De então até 1912, conservou-se sempre o túmulo da Rainha Santa no referido Coro.

Como a esta data o Convento de Santa Clara não tivesse já quem zelosamente pudesse cuidar do túmulo da Rainha Santa, e porque o local onde ele estava não oferecia as necessárias condições de segurança, podendo facilmente ser violado por aqueles que vieram estabelecer residência neste convento, praticando talvez um desacato que ferisse profundamente as crenças dos devotos da Rainha Santa, conseguiu a Mesa desta Confraria que o (20) túmulo fosse mudado para o lugar que lhe era mais próprio, a tribuna da Capela-Mor da igreja, lugar onde agora se conserva e, segundo cremos, se conservará definitivamente. Porque esta mudança se deu em nossos dias, podemos aqui reproduzir com toda a fidelidade a forma como ela decorreu, louvando nós o Senhor por nos dar ocasião de presenciar tão emocionante como piedoso ato, cuja descrição respigamos d’um jornal desta terra [2].

“Do coro superior da Igreja de Santa Clara, foi no Domingo trasladado para a tribuna da Capela-Mor da mesma igreja, o riquíssimo túmulo de prata e a respectiva urna que encerram o venerando corpo da Rainha Santa.

“Esta trasladação, sem dúvida motivada pelos rumores que corriam nesta cidade, rumores estes em que se salientavam até actos menos respeitosos, fez-se com a possível reserva afim de evitar aglomerações nada convenientes ao bom êxito da trasladação.

“Ainda assim, o número de pessoas que se reuniu no templo de Santa Clara, na ânsia de assistir a tão piedoso acto, foi elevado, vendo-se ali representadas muitas das principais famílias de Coimbra.

“Perto das 5 horas da tarde, quando estavam concluídos os preparativos para a deslocação do túmulo, a entrada no coro foi rigorosamente interceptada, ficando ali apenas, além do pessoal necessário para a trasladação, os srs. Francisco José da Costa e Antônio Augusto Lourenço, da Mesa da Rainha Santa; Francisco Nazaré, (21) Joaquim Rasteiro Fontes, Custódio José da Costa, Adriano Ferreira Rocha e João Ribeiro Arrobas, os quais foram convidados a examinar as fitas lacradas que ligavam a tampa do túmulo.

“Verificada a sua inviolabilidade, foram quebradas as fitas e retirada de dentro do túmulo a urna em que repousa Santa Isabel. Esta operação, é bom frisá-la, foi feita com o maior respeito, e o seu bom êxito deve-se, sem dúvida, aos srs. Antônio Augusto Gonçalves e Antônio Viana, que, mui sensatamente, dirigiram os trabalhos da trasladação.

“No momento em que ia conduzir-se para a tribuna da Igreja o caixão em que se encerra o corpo da Rainha Santa, uma comissão de senhoras obteve do sr. Antônio Augusto Gonçalves permissão para conduzir a urna, sendo pois esta transportada pelas seguintes: D. Maria do Carmo Joice Dinis, D. Maria de Gusmão Galvão, D. Elvira Refoios de Matos, D. Maria José Joice Dinis, D. Maria Amelia Carneiro de Sousa Pires, D. Isabel de Sousa Coutinho (Linhares), D. Tafones Roxanes de Carvalho, D. Maria do Carmo Forjaz, D. Maria do Céu Pinto e D. Matilde de Matos Mancelos Aragão.

“Logo que a urna deu entrada na Capela-Mor, as inúmeras pessoas que ali a aguardavam prostraram-se respeitosamente na mais viva e sincera contemplação, vendo-se em muitos olhos o deslizar de lágrimas constantes. É que dentro daquele ataúde está em repouso, não só o corpo d’uma Mulher nobre por excelência e virtuosa e santa pelos rasgos generosos da sua cândida alma, mas, o que é mais, por estar ali concentrada a fé ardente e sincera de milhares de crentes que nos transes dolorosos da sua atribulada existência envolvem nas suas fervorosas preces o nome da Rainha Santa (22) como um balsamo consolador para as suas misérias e para as suas desditas.

“Por isso as pessoas que ali se reuniram para assistir à passagem da Rainha Santa viveram bem felizes aquele rápido momento da existência. A noite, porém, ia avançando e era forçoso pôr termo aos trabalhos da trasladação, colocando-se no local designado o ataúde da Rainha Santa.

“Feito este serviço o povo começou a retirar-se, louvando a nobre ideia de trasladar para a Igreja a santa querida que passou a vida na senda do bem, espalhando por toda a parte o perfume das suas rosas, que são aquelas que lhe engrinaldam o nome querido e ainda hoje digno de todo o respeito”.

CAPITULO V - Aberturas do túmulo e caixão da Rainha Santa

Por ser muito curiosa, damos neste lugar a notícia das vezes que tem sido aberto o túmulo e caixão da Rainha Santa.

A notícia descritiva desses actos tão solenes extraímo-la da notável obra do Exmo. Sr. Dr. Antônio Ribeiro de Vasconcelos — “D. Isabel de Aragão” —, primoroso trabalho que S. Exª. publicou em 1894, e que é bem um autêntico testemunho das suas altas qualidades de escritor erudito e consciencioso.

I. — Segunda feira, 26 de Março de 1612.

II. — Quarta feira, 27 de Outubro de 1677.

III. — Domingo, 11 de Janeiro de 1695, na capela que provisoriamente serviu de Igreja em o novo Mosteiro. (23)

IV. — Segunda-feira, 2 de Julho de 1696, às 8 horas da manhã.

V. — No mesmo dia, horas depois, nova abertura pelas freiras do convento, por estas não terem assistido como desejavam à primeira cerimónia.

VI. — No dia 4 do mesmo mês e ano foi novamente aberto o tumulo por se desconfiar que as freiras, num excesso do seu amor para com a Rainha Santa, se tivessem apropriado de algumas relíquias ou mesmo furtado o seu corpo, ocultando-o em sítio só por elas conhecido.

VII. — Segunda feira, 9 de Agosto, foi o tumulo aberto na presença de D. Pedro II.

VIII. — Domingo, 29 do mesmo mês e ano, na presença de D. Carlos, Arquiduque da Áustria.

IX. — Domingo, 21 de Outubro de 1832, na presença de D. Miguel e das Infantas, D. Isabel Maria e D. Maria de Assunção.

X. — Domingo, 25 de Abril de 1852, na presença de D. Maria II, de El-rei D. Fernando, seu esposo, do Príncipe real D. Pedro e do Infante D. Luís.

XI. — Quinta feira, 17 de Junho de 1852, para serem substituídas as vestes que amortalhavam a Rainha Santa por outras oferecidas por D. Maria II.

XII. — Quinta feira, 29 de Novembro de 1860, na presença de D. Pedro V e de seus irmãos D. Luís e D. João.

XIII. — Quarta feira, 22 de Outubro de 1862, na presença do Príncipe Humberto, depois Rei de Itália, que foi hóspede da nossa Universidade.

XIV. — Quarta feira, 9 de Dezembro de 1863, na presença de El-rei D. Luís e de sua esposa D. Maria Pia.

XV. — Quarta feira, 21 de Junho de 1865, na presença de D. Isabel Cristina, Princesa Imperial do Brasil e de seu esposo, o Conde de Eu. (24)

XVI. — Sábado, 4 de Julho de 1868, na presença do Infante D. Augusto.

XVII. — Segunda feira, 4 de Março de 1872, na presença de D. Pedro II, Imperador do Brasil.

XVIII. — Quarta feira, 14 de Maio de 1875, na presença de El-rei D. Fernando, do Infante D. Augusto e da Condessa de Edla.

XIX. — Terça feira, 24 de Dezembro de 1889, na presença dos Imperadores do Brasil.

XX. — Sábado, 25 de Julho de 1892, na presença de El-rei D. Carlos, D. Amelia e do Príncipe D. Luís Filipe.

Finalmente, no dia 28 de Março de 1912 procedeu-se a nova e última abertura do ataúde da Rainha Santa.

Como decorreu este acto di-lo uma das testemunhas que a ele assistiram e que fielmente fez reproduzir na “Gazeta de Coimbra”, de 30 de Março de 1912.

Como o número do jornal que publicou esta notícia foi rapidamente esgotado, embora a tiragem fosse muito aumentada, entendemos por bem reproduzir aqui o texto desse artigo:

“Noticiámos, há dias, a trasladação do túmulo com o corpo da Rainha Santa Isabel, do coro de cima do extinto Convento de Santa Clara, onde estava indevidamente desde novembro de 1860. Foi na quarta feira, 28 deste mês e ano, que as freiras clarissas, a pretexto de irem no dia seguinte o rei D. Pedro V com seus irmãos D. Luís e D. João àquele mosteiro beijar a mão da Santa Rainha, e mais comodamente o poderem fazer no Coro do convento de que na tribuna do Altar-Mor, (25) trasladaram o caixão com o corpo, e não mais o deixaram voltar para o seu sítio.

“Entretanto é indiscutível que muito melhor se acha na bela tribuna, revestida de talha dourada, propositadamente feita para ele sobre o Altar-Mor, onde esteve exposto à veneração dos fieis durante 146 anos, desde a tarde de 5 de Julho de 1696, em que foi para ali transportado em soleníssima procissão pelos Bispos da Guarda, Lamego, Portalegre, Vizeu, Leiria e Miranda, sob a presidência do Bispo-conde D. Fr. Alvaro de S. Boaventura, que oito dias antes, a 26 de Junho, havia sagrado a nova Igreja de Santa Clara.

“Hoje damos aos nossos prezados leitores uma outra notícia, ainda respeitante ao mesmo assunto.

“Espalhou-se, há tempos em Coimbra, com bastante insistência, o boato de que o túmulo da Rainha Santa havia sido violado; e, embora se verificasse, quando há dias se fez a trasladação, que os selos que o fechavam permaneciam intactos, é certo que recrudesceu depois disto o rumor de que o caixão transportado do Coro para a Capela-Mor se encontrava vazio. Em face de tal boato, tornava-se necessária a verificação, abrindo-se o túmulo com devidas formalidades, antes da aposição de novos selos.

“Foi este acto que se realizou anteontem, quinta-feira, 28 do corrente, pelas 9 horas da manhã.

“Achavam-se presentes apenas os srs.: cônego José Dias d'Andrade, representando o sr. Bispo Conde; Antônio Augusto Gonçalves, presidente da Câmara Municipal e diretor do museu Machado de Castro; dr. Joaquim Mendes dos Remédios, reitor da Universidade; dr. Antônio José Gonçalves Guimarães, professor da faculdade de ciências: dr. António Garcia Ribeiro de Vasconcelos,(26) presidente da Confraria da Rainha Santa Isabel; Francisco José da Costa, tesoureiro da mesma; António Viana, fiel do museu Machado de Castro.

“Principiou por ser presente um invólucro, devidamente lacrado e selado, no qual externamente se lia a declaração de que continha as chaves do caixão da Rainha Santa, que ali foram encerradas e seladas a 23 de julho de 1892, em seguida ao acto de ser fechado o túmulo, depois da visita que a ele fizeram naquele dia o rei, rainha e príncipe. Verificado que os selos estavam intactos, foi aberto o invólucro, e apareceram duas chaves, uma de prata e outra de ferro, ligadas por uma cadeia de prata.

“Depois, abriu-se o túmulo de prata, e tirou-se dele o caixão de madeira, forrado de rico brocado de seda e ouro, e com quatro belas fechaduras. Todos verificaram cuidadosamente que não acusava sinal algum de arrombamento; e em seguida, abertas as fechaduras e retirada a tampa, apareceu uma ostentosa colcha de brocado, igual ao que veste por dentro e por fora o caixão, sendo guarnecida de galão de ouro, e forrada de seda carmesim. Levantada esta cobertura, apareceu outra perfeitamente igual à primeira, e por baixo dela um véu transparente, através do qual se via nitidamente a mão da Santa Padroeira, e o habito de seda cinzenta que vestia o corpo. Cobrindo-lhe a cabeça havia um véu espesso de seda branca, sobre outro de fino linho, que lhe desciam até ao peito.

“Levantaram-se sucessivamente todos estes véus, e observou-se minuciosamente a mão direita, o rosto e os dois pés, que estão descalços e em perfeito estado de conservação. Não se levou mais longe o exame, por ser desnecessário. (27)

“A mão da santa e virtuosíssima Esposa de D. Dinis foi beijada com piedoso fervor por aqueles dos presentes que tiveram essa devoção.

“Terminado o acto de verificação, foi fechado o caixão e encerrado no túmulo de prata, com aposição de seis selos. Depois selaram-se novamente as chaves, e lavrou-se o respectivo auto.

“E assim ficou perfeitamente demonstrada a absoluta falsidade dos boatos que correram, e a que muita gente parecia dar crédito”.

CAPITULO VI - A Igreja de Santa Clara

Esta igreja fica situada numa vistosa colina fronteira à cidade, estando precedida d’um espaçoso pátio quadrilongo, do qual se desfruta um dos mais belos e ricos panoramas de Coimbra. À entrada deste pátio, encontra-se ainda hoje uma forte corrente de ferro que servia para dar o direito de defesa aos criminosos perseguidos.

O templo, que é de magnifica construção e de uma só nave, é fabricado no estilo romano; os retábulos dos seus altares são dignos de ser admirados, revelando-se neles a perfeição e gosto artístico que presidiu à sua execução.

Ao fundo da igreja, e aos lados da grade do Coro, estão dois túmulos de pedra artisticamente ornados, tendo nos tampos figuras de mulheres jacentes. O do lado do Evangelho, encerra os ossos da Infanta D. Isabel, filha de D. Afonso IV, falecida com pouco mais de 2 anos (28), e o do lado da Epistola supõe-se conter os restos de D. Maria, filha de D. Pedro I e de D. Constança.

Estes dois túmulos vieram também do velho Convento de Santa Clara, logo após a mudança da comunidade.

Dentro do Coro da igreja, em lugar menos próprio por falta de luz, conserva-se ainda hoje o túmulo de pedra onde primitivamente esteve depositado o corpo da Rainha Santa, túmulo este que, segundo as melhores opiniões, ela mandara fabricar em vida. As suas faces laterais são guarnecidas de várias imagens e de onze estatuetas de freiras metidas em nichos de gracioso desenho.

Sobre este túmulo, vê-se estendida a figura da Rainha Santa envolta no hábito de freira clarissa, sobraçando o bordão de peregrina, uma bolsa e um livro de orações.

A cabeça da imagem, primorosamente esculturada, repousa num largo almofadão a coberto d’um elegante baldaquino, sendo este ladeado por dois anjos, em atitude de turificarem (d) a Rainha Santa.

Tanto este Coro como o que lhe fica superior eram adornados com riquíssimos altares de boa talha, muitos quadros de subido valor e bastantes imagens por quem as religiosas nutriam a mais piedosa devoção.

Muitos destes preciosos objetos estão depositados no Museu Machado Castro, de Coimbra.

Voltando à igreja, onde se admira a preciosa estátua da Rainha Santa, essa delicada joia que Teixeira Lopes delineou em momentos de feliz inspiração e perante a qual instintivamente se têm curvado tantos milhares de pessoas de todas as classes sociais, chamamos a atenção do leitor para os quadros que adornam a Capela-Mór da igreja, quase todos referentes à vida da Rainha Santa, e recomendamos-lhe especialmente a sua (29) visita ao Museu de alfaias religiosas, que a Confraria instituiu junto da igreja e aonde se encontram algumas preciosidades de raro valor artístico. 

Esse museu, que fica situado ao lado direito da Capela-Mor, é precedido d’um espaçoso corredor que serve de Galeria dos Irmãos Beneméritos. Ao fundo, noutra sala mais espaçosa, estão guardados os objetos de maior valor pertencentes à Confraria, figurando entre eles alguns que eram do uso da Rainha Santa. Neste precioso museu, está exposto um colar de pedras preciosas com que a Rainha Santa costumava adornar as donzelas pobres no dia do seu casamento, guardando-se também ali algumas peças do seu vestuário e a roupa com que foi amortalhada. Todos estes objetos devem merecer uma particular atenção ao visitante de Santa Clara.

A respectiva Confraria é digna dos maiores louvores pela dedicação e zelo que tem mostrado na conservação deste Museu, procurando enriquecê-lo cada vez mais com a aquisição dos objetos que digam respeito à Rainha Santa. Ultimamente, foi ali exposto o “Breve Original”, obtido por El-rei D. João III da Cúria Romana, e pelo qual é extensivo a toda a nação o culto de Santa Isabel. Este documento, muito bem conservado ainda, é digno de particular atenção pelo fino desenho dos seus ornatos e caracteres.

O claustro de Santa Clara, situado ao lado esquerdo da igreja, é também digno de ser visitado. As suas majestosas proporções, as arcadas, e as graciosas varandas que o circundam, formam um conjunto agradável ao nosso sentimento, transportando-nos à vida d’um mundo superior, em tudo mais perfeito e harmonioso.

O nosso espírito banha-se d’uma clarividente realidade que nos inebria, que nos consola e seduz. Na paz daquelas arcadas (30), contemplamos o mundo despido de lutas inglórias, de ódios e malquerenças, e a nossa imaginação, livre das contrariedades e dos sobressaltos fomentados pela vida presente, embala-se no doce arroio das avezinhas que saltitam pelas arvores floridas quase obrigando os nossos lábios a murmurar com elas:

“Bendito seja o Senhor!”.

O vasto e grandioso edifício de Santa Clara, onde durante alguns séculos se abrigaram muitas senhoras da mais pura linhagem, e onde se praticaram tantos actos de piedosa devoção, serve hoje de quartel ao Regimento de Infantaria 35.

A parte que serviu para hospedaria do Mosteiro e que está situada do lado sul, é hoje ocupada por um grupo do Regimento de Artilharia.

As festas com que Coimbra rende o seu culto à Rainha Santa são das mais importantes e fervorosas que se realizam em Portugal. Nos anos em que são levadas a efeito, a cidade veste-se das melhores galas para receber a sua excelsa Padroeira e todos os conimbricenses, num amplexo de verdadeiro regozijo e satisfação, cooperam no brilhantismo desses festejos esforçando-se para lhe dar o maior luzimento possível.

A grandiosa procissão em que é conduzida a imagem da Rainha Santa compõe-se de inúmeras Confrarias e centenas de crianças vestidas de anjo, fazendo o trajeto (31) de Santa Clara para Santa Cruz, por entre milhares e milhares de pessoas que de todos os pontos do País vem para assistir a tão emocionante como grandioso espetáculo. As festas da Rainha Santa, que se prolongam durante 5 dias, costumam atrair a Coimbra perto de 60.000 pessoas, não se registrando nunca qualquer desacato que possa ofuscar o brilho e a imponência dessas tão piedosas como emocionantes manifestações.

Com a procissão da Rainha Santa, dá-se até um facto que nos apraz registar: quando a preciosa imagem de Santa Isabel dá entrada na cidade, e ao ter de atravessar por entre a multidão que a aguarda desde a Ponte até Santa Cruz, não há joelho que deixe de se dobrar ante a majestade da sua figura! Todo aquele mar humano, que se apinha em tão longo trajeto, se curva respeitosamente perante a doce imagem da Rainha Santa, vendo-se muitos olhos marejados de lágrimas devido à comoção que todos experimentam.

É que aquela Imagem é o refúgio de todos os crentes. Nela estão concentradas as preces dos que sofrem, os rogos dos infelizes. E se o povo português nutre por Ela a mais terna devoção, o povo de Coimbra, que a elegeu sua medianeira junto de Deus, não esquece nunca a sua benéfica acção em prol dos desprotegidos, tributando-lhe um amor puríssimo e uma veneração a mais sublimada! Continue Ela a amercear-se (e) do seu povo junto de Deus, e oxalá a sua poderosa influencia consiga tornar felizes na terra aqueles que lhe solicitam a sua proteção no Céu.

Anonymus in Projeto Gutemberg: https://www.gutenberg.org/ebooks/35324

[1] D. Isabel de Aragão, Coimbra, 1894.
[2] Gazeta de Coimbra, de 20 de março de 1912.

Notas

(a) Frades crúzios. Cónegos Regulares da Ordem da Santa Cruz.
(b) Estamenha; Tecido ordinário feito de lã.
(c) Invernias. Tempo muito frio e com o aparecimento de chuvas contínuas; inverno.
(d) Turificar. Incensar
(e) Amercear-se. Ter misericórdia, compaixão.



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