sexta-feira, 9 de dezembro de 2005

ainda sobre os crucifixos nas escolas...

Polémica desnecessária

O tema é antigo e necessariamente discutível. A polémica é recorrente e desnecessária. Injectada na opinião pública desta forma, remete a discussão para o registo antagónico do jacobinismo mais agressivo e da beatice mais bacoca.

Recordo o dia em que visitei, poucos dias depois da abertura, o canal de televisão de "inspiração cristã", conhecido então como "a televisão da Igreja". Quando entrei na redacção, alguém apontou para o crucifixo colocado na parede para dizer "estou para ver quando tiram o gajo dali".

O debate não se deve fazer ao nível da imposição ou consentimento dos símbolos religiosos na esfera pública - embora a Constituição da República possa induzir algumas ambiguidades para leitores de má fé -, mas de perceber as mudanças na sociedade e prevenir falsos conflitos.

Por um lado, sendo a escola um espaço público, deve ser reflexo da complexidade plural da sociedade e fará sentido lá estar o(s) símbolo(s) religioso(s). Por outro, sendo igualmente um espaço público que garante a igualdade de direitos, não deverá ferir a susceptibilidade de quem se sinta "ofendido" com a presença do(s) símbolo(s).

A laicidade implica a separação objectiva entre o Estado e as religiões, mantendo a equidistância e o respeito pelo fenómeno religioso. Caso contrário, o desequilíbrio entre as duas dimensões tenderá sempre para a exclusão do "íntimo", o que significa a deturpação total dos princípios de cidadania, de participação e de co-responsabilidade. Ao excluir a dimensão "religiosa" - seja o que isso for na experiência vivencial ou na intimidade - da visibilidade pública, o Estado estaria a violar os seus próprios deveres básicos.

A questão dos crucifixos nas escolas - leia-se o editorial de António José Teixeira no Diário de Notícias de dia 30 de Novembro - não deve ser interpretada como uma atitude intolerante do Estado perante a religião maioritária, mas o enquadramento da polémica já agitou funestos estigmas que o tempo tarda em apagar. Até que ponto a retirada dos símbolos religiosos das escolas não será a abertura de uma "caixa de Pandora" que, noutros casos, se revelou social e culturalmente trágica?
Devem seguir-se todos os outros espaços públicos?
Deve aplicar-se apenas aos espaços públicos fechados ou também à rua?
As estátuas com temática religiosa, que ornamentam jardins e praças, devem ser retiradas?
As manifestações públicas de fé devem ser proibidas?
Os feriados de origem religiosa devem acabar?
Passa a ser legítimo invocar "ofensa" para obrigar alguém a tirar o colar, o "pin" ou o brinco com um símbolo religioso?
A mulher muçulmana pode usar o véu?
A freira tem descobrir a cabeça e o padre tem de tirar o "cabeção"?
As igrejas devem ser "tapadas"?
A mesquita deve tirar o quarto crescente?
As apresentadoras da televisão pública não podem usar símbolos religiosos? Nem despedir-se dizendo "até amanhã se Deus quiser"?
Devem acabar os tempos de emissão atribuídos às religiões nos canais públicos? E as missas?
Os canais públicos devem transmitir uma celebração religiosa?
Os sinos deixam de tocar?
Os cemitérios devem ser "limpos" dos símbolos religiosos?
Que fazer ao Cristo Rei?
A Assembleia da República deve mudar de sede?

Algumas destas perguntas, ouvidas por estes dias, roçam o absurdo - até porque estão esclarecidas na Constituição - mas no exagero da abordagem retórica esconde-se a legitimidade de uma preocupação. "Importa que a mudança, não se confunda com intolerância", lembra António José Teixeira no editorial atrás referido.

A polémica está na fronteira de um debate sensível e, neste momento da vida política e social portuguesa, envolve outros "pormenores" que passam despercebidos da opinião pública.

Sem o contexto do debate sério e do bom senso, a retirada dos símbolos religiosos das escolas públicas pode desencadear um atentado cultural.

A religião segue o percurso da própria humanidade, dos seus dramas e esperanças, e ganha expressão simbólica. Está no substrato da cultura e, por conseguinte, da tradição.

Tal como a nacionalidade, não há religiosidade sem a dimensão do simbólico. Seja um templo, um altar, um estandarte, uma bandeira, uma fotografia, uma espada, um compasso, uma árvore, um peixe, uma vaca, um deus mitológico, a memória de um espaço, um momento, uma pessoa, uma estrela, a lua, o sol ou a cruz.

"As paredes são espelhos do tempo. Não são imutáveis". O Estado democrático é chamado, em cada momento, a congregar e não a segregar, mas quando legisla no sentido da exclusão sobre direitos e liberdade de consciência (veja-se o exemplo francês) corre o risco de não respeitar a liberdade e censurar a consciência.

Construir a harmonia na pluralidade é um desafio de todos os tempos.

Joaquim Franco Jornalista SICONLINE


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1 comentário:

Senzhugo disse...

Há uma coisa q eu n percebi:
se eu n sou católico, uma cruz não significa nada. Por isso estar lá ou não estar, é igual ao litro.

Do mesmo modo, se eu não sou muçulmano, se a miúda vai de véu para a escola não significa nada. Apenas que se calhar agora é fashion andar de véu, sei lá. Se calhar comprou o véu na bershka.

O que é que o Estado tem a ver com isso?