Confesso ter certa dificuldade com uma coisa que, em tempos normais, não deveria ser capaz de angustiar católico algum: assistir à Santa Missa num lugar distinto do habitual. Se a Igreja é Católica — i.e., Universal — e se a Liturgia é o serviço público da Igreja (“público” aqui tem o sentido de “oficial”), seria de se esperar que esta catolicidade se reflectisse, também e talvez até principalmente, na maneira como a Igreja presta o Seu culto a Deus, independente do lugar em que se desse a celebração do Santo Sacrifício.
Eu entendo o argumento de que o Evangelho não é uma cultura pronta e acabada mas, ao contrário, uma força capaz de orientar para Cristo tudo aquilo que é verdadeiramente humano — e, portanto, tem em Si próprio a força de elevar qualquer cultura a Deus. Mas disso não me parece decorrer que o culto a Deus deva reproduzir as particularidades de cada povo, de cada grupo social, de cada costume local (ainda que legítimo). Ao contrário: penso que, no que diz respeito à Sagrada Liturgia, a catolicidade da Igreja deve se sobrepôr à legítima particularidade dos fiéis que do culto divino tomam parte em um momento histórico específico e num lugar determinado do globo terrestre. Há, penso, diversas razões para que isto deva ser dessa maneira, das quais as três a seguir não são as menos importantes.
Em primeiro lugar, por uma questão de, se é possível chamar assim, sacramentalidade. O sacramento é um sinal e isto significa que a Liturgia da Igreja é, ela toda, uma linguagem. Para além da graça eficaz que é inerente a todo Sacramento, há uma mensagem que a Liturgia precisa transmitir — e esta mensagem precisa falar à inteligência, à compreensão de cada fiel. Ora, esta mensagem é por definição extraordinária: a linguagem da qual ela se reveste, portanto, para ser proporcionada ao conteúdo que se presta a transmitir, precisa ser, ela também, extraordinária. Precisa de se afastar do quotidiano, das coisas do dia-a-dia, dos símbolos usados ordinariamente para tratar das coisas da vida: a Liturgia precisa, assim, de distanciar-se dos costumes e usos sociais legitimamente vigentes em cada sociedade. Isso é necessário para que o católico veja, na Liturgia, já ao primeiro vislumbre, algo diferente do comum dos dias: é a clássica distinção entre o sagrado e o profano, difícil de exprimir hoje em dia porque o segundo termo adquiriu um caráter pejorativo que não se pode ignorar. O que quero dizer é simplesmente o seguinte: nem tudo o que é humanamente legítimo é adequado à Sagrada Liturgia e nem tudo o que não cabe no Culto Divino é, por isso mesmo, pecaminoso ou indigno. Esta é uma compreensão que se precisa urgentemente de resgatar: munidos dela, os católicos seriam mais comedidos em introduzir nas suas celebrações estes elementos estranhos ao espírito da Liturgia e que tanto atrapalham a frutuosa participação dos fiéis.
Em segundo lugar, porque todo o legítimo processo de inculturação é mais passivo do que activo: isto significa que os homens mais têm a sua cultura purificada pela Igreja e moldada ao vigor do Evangelho do que constroem, eles próprios, o seu contributo pessoal ao Catolicismo, o seu tijolo personalizado a integrar as muralhas da Cidade Santa de Deus. O contacto transformador com o Evangelho não é um exercício imaginativo ou uma experiência inefável com um fantasma amorfo: se os primeiros cristãos se encontraram com um Cristo verdadeiramente humano, com um rosto próprio e uma voz particular, é com uma Igreja concreta que se prolonga na História este encontro salvífico — e esta Igreja tem a Sua própria face e a voz que indistintamente é d’Ela. Tem os Seus símbolos e a Sua linguagem, que A identificam e sem os quais não é possível haver verdadeiro encontro entre os filhos de Deus e a Esposa de Cristo. Se é verdade que há muitas características distintas que cabem no conceito de “homem”, é igualmente verdade que no Verbo de Deus encarnado se encontram características humanas específicas — uma dada cor de pele, um específico tom de voz, determinada cor de olhos e de cabelos etc. Ora, é claro que há incontáveis elementos humanos com os quais se poderia conceber uma instituição que anunciasse o Evangelho; mas a Igreja, que é o Corpo de Cristo, possui alguns elementos determinados e específicos que respondem pela Sua individualidade histórica e pela Sua natureza encarnada. E da mesma forma que todo o ser humano se encontra em Cristo Encarnado sem que Ele precise de ter ao mesmo tempo todas as distintas características físicas de cada indivíduo, toda a cultura humana se encontra na Igreja de Cristo sem que Ela precise de reproduzir em Si mesma todas as culturas — ou cultura nenhuma.
Em terceiro lugar, por fim, por uma questão de catolicidade. A unidade de rito faz com que todo o católico, em qualquer parte do mundo em que se encontre, possa vivenciar a Liturgia do modo a que está acostumado. Isto complementa admiravelmente o que se dizia acima: se por um lado o católico precisa de se sentir sempre um pouco estrangeiro ao adentrar na igreja da sua terra natal, por outro lado ele precisa de experimentar sempre um ar de familiaridade ao ingressar na igreja de uma terra estranha. O rito católico, justamente por ser universal, não é de lugar algum e é simultaneamente de todos: não existe nenhum fiel capaz de pretender que aquele rito reflicta exactamente os costumes particulares do seu povo ou do seu grupo, mas também ninguém pode dizer tratar-se de celebração alienígena que em tudo lhe é estranha. A Sagrada Liturgia é de todos exactamente por não ser de ninguém em particular; esta manifestação sensível de catolicidade fortalece a Igreja e contribui para que todo o fiel possa viver melhor a sua Fé. Fazer diferente disso não é enriquecer a cultura particular do fiel, mas ao contrário: é sepultar a cultura universal de todo o católico e, fechando-lhe o acesso ao fiel, privá-lo de uma dimensão de eclesialidade que não se pode satisfatoriamente substituir.
Eu pensava nestas coisas porque, em viagem, precisei recentemente de assistir à Santa Missa num lugar que eu não conhecia. Mas os meus temores não se concretizaram: Deus foi misericordioso comigo, e me presenteou com uma Missa impecável, celebrada por um sacerdote zeloso cujos olhos estavam o tempo inteiro voltados para Deus. Que o Altíssimo abençoe e recompense aquele padre, que me proporcionou uma bela Missa. Uma Missa sóbria, reverente, comedida, sem invencionices, que poderia ter sido celebrada em qualquer lugar do mundo, por qualquer sacerdote — e, justamente por isso, uma Missa tão católica.
Jorge Ferraz in Deus lo vult!
(adaptado para Português de Portugal)
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