Tudo morre neste
mundo. Morrem pessoas e árvores, ideologias e línguas, morrem projectos, sonhos
e civilizações. Tudo morre, mas o nosso povo sabe quem é a última a morrer: a
esperança. "Toda a acção séria e recta do homem é esperança em acto."
[Bento XVI, encíclica Spes Salvi (SS 35)].
Aqui reside o
paradoxo que define a natureza humana. Como podem coexistir a certeza da morte
e a permanência da esperança? Como é possível que do fundo da "caixa de
Pandora", de onde brotam todos os males, ainda voe a luz da esperança? Esta é "a situação essencial do
homem, uma situação donde provêm todas as suas contradições e as suas
esperanças. De certo modo, desejamos a própria vida, a vida verdadeira, que
depois não seja tocada sequer pela morte; mas, ao mesmo tempo, não conhecemos
aquilo para que nos sentimos impelidos. Não podemos deixar de tender para isto
e, no entanto, sabemos que tudo quanto podemos experimentar ou realizar não é
aquilo por que anelamos" (SS 12).
"Enquanto há vida, há
esperança", diz a sabedoria popular. Mas pode a Esperança vencer a morte?
Só pela Fé em Algo maior que o mundo se passa para lá do fim. "Fé é
substância da esperança" (SS 10). Na Fé cristã "a porta tenebrosa do
tempo, do futuro, foi aberta de par em par. Quem tem esperança, vive diversamente;
foi-lhe dada uma vida nova" (SS 2).
Mas esta Esperança que vai para lá da
morte tem vindo a ser abandonada. A Idade Moderna é o tempo da ciência, da
técnica, do progresso. Essa atitude trouxe avanços extraordinários, maravilhas
inimagináveis. Mas também perdeu de vista a Esperança. "Agora, esta
'redenção', a restauração do 'paraíso' perdido, já não se espera da fé, mas da
ligação recém-descoberta entre ciência e prática. Com isto, não é que se negue
simplesmente a fé; mas esta acaba deslocada para outro nível - o das coisas
somente privadas e ultraterrestres - e, simultaneamente, torna-se de algum modo
irrelevante para o mundo. Esta visão programática determinou o caminho dos
tempos modernos, e influencia inclusive a actual crise da fé que, concretamente,
é sobretudo uma crise da esperança cristã" (SS 17).
A ânsia do progresso revelou-se no
martírio da Igreja. Paroxismos de fúria e crueldade desabaram sobre os cristãos
a partir precisamente das ideologias progressistas. Do marxismo ao nazismo, no
México, Espanha, Alemanha, URSS, Vietname e tantos outros, confirmou-se a
profecia de Daniel: "Vi um quarto animal, horroroso, aterrador, e de uma
força excepcional. Tinha enormes dentes de ferro; devorava, fazia em pedaços e
o resto calcava-o aos pés. Era diferente dos animais anteriores (Dn 7, 7)
Porque razão o progresso tomou a Igreja como inimiga? A Igreja que fundara as
universidades, conservara as bibliotecas, preservara a civilização? A Igreja a
que pertencia a maioria dos génios, cristãos devotos, que criaram a ciência
moderna (Copérnico, Kepler Galileo, Leibniz, Newton, Euler, Ampère, Gauss,
Cauchy, Faraday, Mendel, Pasteur e tantos outros)? Tal raiva mostra que a
questão fundamental não é progresso e bem-estar, mas algo muito mais profundo. "O
progresso é a superação de todas as dependências; é avanço para a liberdade
perfeita" (SS 18).
O homem de hoje quer ser senhor de si
mesmo, dominar a própria vida, fazer o que lhe apetece. "Ser como
Deus", como prometeu a serpente do Éden na suprema tentação (cf. Gn, 3,5).
Assim, "torna-se evidente a ambiguidade do progresso. Não há dúvida que
este oferece novas potencialidades para o bem, mas abre também possibilidades
abissais de mal - possibilidades que antes não existiam. Todos fomos
testemunhas de como o progresso em mãos erradas pode tornar-se, e tornou-se
realmente, um progresso terrível no mal. Se ao progresso técnico não
corresponde um progresso na formação ética do homem, no crescimento do homem
interior, então aquele não é um progresso, mas uma ameaça para o homem e para o
mundo" (SS 22).
Tudo morre. Apenas Um ressuscitou dos mortos. "Chegar a conhecer Deus, o verdadeiro Deus: isto significa receber esperança" (SS 3).
João César das Neves in Diário
de Notícias
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