Faz Cristo comparação entre o pastor e o mercenário, e diz assim: Bonus
pastor animam suam dat pro ovibus suis (Jo 10, 11s): O bom pastor
defende as suas ovelhas, e dá por elas a vida, se é necessário.
Mercenarius
autem, et qui non est pastor: Porém o mercenário, e o que não é pastor, que
faz? Videt lupum venientem, et lupus rapit, et dispergit oves (Ibid.
12): Quando vê vir o lobo para o rebanho, foge, e deixa-o roubar e comer as
ovelhas. – O meu reparo agora, grande reparo, é dizer Cristo que o mercenário
não é pastor: Mercenarius autem, et qui non est pastor. – O
mercenário, como diz o mesmo nome, é aquele que por seu jornal apascenta as
ovelhas. Pois, se o mercenário também apascenta as ovelhas, por que diz Cristo
que não é pastor? Porque ainda que as apascenta não as defende: vê vir o lobo e
foge. E é tão essencial do pastor o defender as ovelhas, que se as defende é
pastor, se as não defende não é pastor: Non est pastor.
Como Cristo
tinha falado em bom pastor, cuidava eu que havia de fazer a comparação entre
bom pastor e mau pastor, e dizer que o bom pastor é aquele que defende as
ovelhas, e o mau pastor é aquele que as não defende. Mas o Senhor não fez a
comparação entre ser bom ou ser mau, senão entre ser, ou não ser. Diz que o que
defende as ovelhas é bom pastor, e não diz que o que as não defende é mau
pastor: por quê? Porque o que não defende as ovelhas não é pastor bom nem mau.
Um lobo não se pode dizer que é bom homem, nem que é mau homem, porque não é
homem.
Da mesma
maneira, o que não defende as ovelhas não se pode dizer que é bom pastor nem
mau pastor, porque não é pastor: Non est pastor. E sendo assim
que a essência do pastor consiste em defender as ovelhas dos lobos, não seria
coisa muito para rir, ou muito para chorar, que os lobos pusessem pleito aos
pastores por que lhes defendem as ovelhas? Lá dizem as fábulas que os lobos se
quiseram concertar com os rafeiros, mas que citassem aos pastores, se lhes
quisessem armar demanda, porque lhes defendiam o rebanho. Isto não o disseram
as fábulas: di-lo-ão as nossas histórias.
Mas quando
disseram isto dos lobos, também dirão dos pastores que muitos deram as vidas
pelas ovelhas: uns afogados das ondas, outros comidos dos bárbaros, outros
mortos nos sertões, de puro trabalho e desamparo. Dirão que todos expuseram e
sacrificaram as vidas pelos bosques, e pelos desertos entre as serpentes; pelos
lagos e pelos rios entre os crocodilos; pelo mar e por toda aquela costa, entre
parcéis e baixios os mais arriscados e cegos de todo o Oceano. Finalmente,
dirão que foram perseguidos, que foram presos, que foram desterrados, mas não
dirão, nem poderão dizer, que faltassem à obrigação de pastores, e que fugissem
dos lobos como mercenários: Mercenarius autem fugit. E esta é
a razão e obrigação, por que eu falo aqui, e falo tão claramente.
S. Gregório
Magno, comentando estas mesmas palavras: Mercenarius autem fugit, – diz
assim: Fugit, quia injustitiam vidit, et tacuit; fugit, quia se sub silentio
abscondit: Sabeis – diz o supremo Pastor da Igreja, – quando foge o
que não é verdadeiro pastor? Foge quando vê injustiças, e, em vez de bradar
contra elas, as cala; foge, quando, devendo sair a público em defesa da
verdade, se esconde, e esconde a mesma verdade debaixo do silêncio. –
Bem creio que alguns dos que me ouvem teriam por mais modéstia e mais decência
que estas verdades e estas injustiças se calassem, e eu o faria facilmente como
religioso, sem pedir grandes socorros à paciência; mas, que seria, se eu assim
o fizesse?
Seria ser
mercenário, e não pastor: Fugit, quia mercenarius est; seria ser
consentidor das mesmas injustiças que vi, e, estando tão longe, não pude atalhar: Fugit,
quia injustitiam vidit, et tacuit; seria ser proditor das mesmas ovelhas
que Cristo me e entregou, e de que lhe hei de dar conta, não as defendendo, e
escondendo-me onde só as posso defender: Fugit, quia se sub silentio
abscondit.
Sermão do
Padre António Vieira em 1662 na Capela Real
1 comentário:
Mas como a Palavra de Deus é tão atual!
Agora percebo, porque Deus enviou Moisés para libertar o Seu Povo, que estava sem Pastor...e porque Jesus, o BOM PASTOR, teve o fim que teve, às mãos dos mercenários.
Que Ele volte depressa e nos liberte de vez, porque, hoje, para além de dissimulados mercenários, segundo o texto, também há traidores que não se cansam de adulterar a Verdade, conduzindo- nos à ruína.
E como disse Nossa Senhora, em La Salete : " E quem devia falar não fala!"
E eu acrescento: " Ou fala ao contrário... que é muito mais perigoso".
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