A Congregação para a Doutrina da Fé, que é agora directamente responsável
pelo motu proprio Summorum Pontificum, estando uma das suas secções
a desempenhar as funções que competiam antes à Comissão Ecclesia Dei, enviou a
todos os presidentes das conferências episcopais de todo o mundo uma carta, com
data de 7 de Março de 2020 e assinada pelo Cardeal Ladaria, Prefeito da dita
Congregação (e que, já antes, era também presidente da Comissão Ecclesia Dei,
por força da reestruturação feita por Bento XVI).
A dita carta deveria depois
ser transmitida a todos os bispos de todo o mundo, cabendo-lhes responder a um
questionário contendo 9 quesitos relativos à aplicação do motu proprio Summorum Pontificum nas respectivas dioceses. A 30
de Abril passado, a conferência francesa procedeu à comunicação da carta aos
bispos franceses.
Esta carta foi tornada
pública pelo site americano Rorate Cœli a 24 de Abril de 2020. De
imediato, inflamou o mundo tradicional em todos os continentes, mundo este,
diga-se, facilmente inflamável, que logo viu aí uma ameaça para o Summorum Pontificum.
A Paix liturgique, que não
nasceu ontem nesta era pós-conciliar, preza-se de ser senhora de uma prudente
circunspecção diante de qualquer possível atentado aos “direitos adquiridos” da
missa tradicional. No entanto, ela estima que este inquérito – conquanto
surpreendente, é verdade – deve ser visto a outra luz.
Qual a verdadeira origem deste inquérito?
É um chiste clássico o de
dizer que o segredo “absoluto” que teoricamente cobriria as coisas da Cúria não
passa de um segredo de Polichinelo. Excepto quando um assunto é tratado por um
número muito reduzido de pessoas, o que manifestamente foi o caso aqui, uma vez
quee os simples “oficiais” da secção encarregue do Summorum Pontificum não estavam a par.
Além disso, um grande número
das decisões das Congregações sobre questões sensíveis inspiram-se em
directivas mais ou menos precisas da Secretaria de Estado, como por exemplo o
estranho decreto que se crê o Cardeal Sarah se tenha visto obrigado a assinar,
a 25 de Março de 2020, ordenando que, em todos os países afectados pelo
Coronavírus, as cerimónias da Semana Santa se realizassem sem presença de povo.
Mas a carta do Cardeal Ladaria não parece responder a um pedido da Terza Loggia (o piso da Secretaria de Estado no
palácio apostólico): ela corresponderia então a um desejo de Santa Marta, ou
seja, do próprio Papa.
A este propósito, cumpre recordar
as reacções provocadas pelos dois decretos, estes sim preparados pelos oficiais
da secção da CDF encarregue do Summorum Pontificum, e que vieram permitir um
certo “enriquecimento” da forma tradicional (7 novos prefácios ad
libitum, além da possibilidade, igualmente ad libitum, de
celebrar outros santos, nomeadamente aqueles canonizados mais recentemente),
decretos esses aprovados pelo Papa a 5 de Dezembro de 2019 e com data de 22 de
Fevereiro de 2020, mas que se tornaram públicos logo a 19 de Fevereiro. Estes
descretos, que teremos a ocasião de analisar mais adiante, desencadearam (e
disso falámos na nossa Carta 740, de 8 de Abril de 2020) uma série de reservas
por parte dos opositores mais afincados da liturgia tradicional.
Estes, tendo à cabeça o
Professor Andrea Grillo, docente na Universidade Pontifícia de Santo Anselmo,
aproveitaram a ocasião para lançar uma petição extremamente virulenta, com data
de 1 de Abril de 2020, pedindo que esta liturgia deixe de gozar de um estatuto
de excepção e que passe a ficar exclusivamente submetida tanto aos bispos
diocesanos como à Congregação para o Culto Divino. Fica claro que o que pedem
uma vez mais é que ela fique sujeita aos bispos, para enfim ser aniquilada. Um
ataque que não caiu bem junto do Cardeal Ladaria, que solicitou uma resposta
jurídica elaborada por Mons. Markus Graulich, subsecretário do Pontifíco
Conselho para os Textos Legislativos (https://www.riposte-catholique.fr/archives/155420).
Nem é preciso dizer que este
grupo de pressão, que conta com amigos em altos postos, conseguiu fazer-se
ouvir junto do Papa, que, como é bem sabido, nunca manifestou particular
interesse pela liturgia tradicional, seja para a aprovar seja para a reprovar.
Quando chegou a Roma, essa era para ele um fenómeno muito marginal, que só
assumia alguma consistência quando aparecia em conexão com a FSSPX, à qual,
pelo contrário, o Papa já confere, por razões algo complexas, um interesse
“político” evidente.
Por várias ocasiões, teve já
a oportunidade de afirmar que o rito tradicional, ao qual, segundo ele, Bento
XVI havia prestado demasiada atenção, era cultivado por alguns velhos
nostálgicos e se deveria deixá-lo morrer por si mesmo sem pensar muito nisso.
Todavia, importa notar que estes juízos rápidos foram proferidos por ocasião de
visitas ad limina de bispos que se lamentavam dos
“problemas” causados pelas celebrações à antiga nas respectivas dioceses. E de notar
ainda que o Pontífice respondeu invariavlemente, quanto à substância: não se
toca no Summorum Pontificum (assim, por exemplo, aos bispos de Pouilles, em
Maio de 2013).
Também é sabido que um
significativo grupo de bispos italianos se mostra extremamente hostil ao
desenvolvimento desta liturgia, diferentemente dos bispos franceses, ingleses e
americanos, entre outros, que lá se foram resignando e que, apesar de sem
qualquer simpatia especial pela forma tradicional, acabaram por se adequar à
sua existência. Também não é preciso dizer que estes prelados italianos, que
perseguem a liturgia tridentina, não perdem uma ocasião para fazerem ouvir as
suas recriminações junto do Papa e dos seus próximos.
Conquanto o Papa Francisco
tenha acabado por se dar conta de que esta liturgia marginal afinal existia
realmente, já que dava azo a tantas irritações exasperadas, o que, tudo somado,
talvez nem lhe desagrade. No seu modo de governar, ele faz questão de que os
que pensam ser os que estão mais próximos dele não se sintam já instalados numa
posição ideológica tranquila. E eis que os favores concedidos à FSSPX e a
conservação do estatuto da forma extraordinária aí estão para os lembrar disso.
Entretanto, ele mesmo ou o
seu secretariado pensaram que seria bom estar em posse de informações
exaustivas acerca desta tal missa tradicional que provoca tamanha raiva,
baseando-se numa percepção real das coisas e não pelos olhos dalguns bispos,
mas pelos olhos de todos os bispos do mundo. Além disso, quando se quer “congelar”
uma questão difícil, nomeia-se uma comissão ou dá-se início a um procedimento
administrativo de inquérito. Este lugar comum aparece atribuído na Argentina a
Perón: «Se queres que um assunto se arraste eternamente, nomeia uma comissão de
inquérito»... Ora, não esqueçamos que o Papa Francisco é argentino...
O inquérito permite dizer
aos queixosos que estamos a tratar do assunto, para ver o que emerge. No
entanto, segundo uma tradição bem curial, a carta do Cardeal Ladaria exibe a
data de 7 de Março, anterior à petição de Grillo, para assim não ficar a impressão
de que esta foi causa daquela.
Está a tratar-se do
assunto... mas sem uma pressa excessiva. A carta do Cardeal Ladaria pede que as
respostas dos bispos – tanto quanto eles se dêem ao trabalho de responder –
sejam enviadas antes de 31 de Julho. Isto é, no momento em que a Cúria estará
mergulhada no sono profundo do Verão. Depois, com a rentrée, a pequena secção da CDF encarregue do Summorum Pontificum, com o seu a priori favorável ao Vetus Ordo, tratará, por longos meses, de classificar,
estudar, resumir uma enorme massa de respostas em todas as línguas (supondo que
2.500 dos 3.100 ordinários de todo o mundo respondam a todos os quesitos,
estaremos diante de 20.000 respostas a serem tratadas, das quais algumas
poderão ser bem longas).
Os quesitos postos aos bispos
Entre as nove questões,
encontram-se algumas das que já haviam sido apresentadas aos bispos a propósito
da forma extraordinária do rito romano, aquando das visitas ad limina. Pretendem, no fundo, apurar duas coisas:
- qual o estado
de coisas a este propósito na diocese?
- quais os
sentimentos do bispo a respeito do Summorum Pontificum ?
O ou os redactores
consideram-se objectivos e são manifestamente benevolentes em face da liturgia
tradicional como é dado a entender pela questão 5 («Parece-lhe que, na sua
diocese, a forma ordinária adoptou elementos da forma extraordinária?»), que
evoca um facto frequentemente acenado: a celebração da forma extraordinária
induz os sacerdotes diocesanos que a usam a melhor celebrar a forma ordinária e
a “enriquecê-la”, em suma, a proceder a uma certa “reforma da reforma”.
Já pelo contrário, a
redacção da segunda questão («Se a forma extraordinária é aí praticada, essa
responde a uma verdadeira necessidade pastoral ou é promovida por um único
sacerdote?») mostra-se mal conseguida e pouco compreensível, o que é uma pena,
já que toca, sem verdadeiramente o tratar, o processo fundamental no centro do Summorum Pontificum: é certo que nada no Summorum Pontificum impede que a iniciativa parta
de um único sacerdote, mas, normalemente, os pedidos de missas virão de grupos
de fiéis apresentadas junto dos párocos (e não dos bispos), os quais têm a
liberdade de lhes dar resposta.
A questão 6 («Para a
celebração da Missa, usa o Missal promulgado pelo Papa João XXIII em 1962?») parece
evocar o facto de que, em alguns lugares, é utilizado um missal algo híbrido,
que se inspira na rubricas ditas de 1965, contrariamente à letra do Summorum Pontificum.
Eis então o questionário:
1. Qual é, na sua diocese, a
situação em relação à forma extraordinária do Rito Romano?
2. Se a forma extraordinária
é aí praticada, essa responde a uma verdadeira necessidade pastoral ou é
promovida por um único sacerdote?
3. Na sua opinião, no uso da
forma extraordinária, há aspectos positivos ou negativos?
4. As normas e as condições
estabelecidas pelo Summorum Pontificum são
respeitadas?
5. Parece-lhe que, na sua
diocese, a forma ordinária adoptou elementos da forma extraordinária?
6. Para a celebração da
Missa, usa o Missal promulgado pelo Papa João XXIII, em 1962?
7. Além da celebração da
Missa na forma extraordinária, existem outras celebrações (por exemplo,
Baptismo, Confirmação, Matrimónio, Penitência, Unção dos enfermos, Ordenação,
Ofício Divino, Tríduo Pascal, ritos fúnebres) de acordo com os livros
litúrgicos anteriores ao Concílio Vaticano II?
8. O motu proprio Summorum Pontificum teve alguma influência na vida
dos seminários (do seminário da diocese) e de outras casas de formação?
9. Treze anos após o motu
proprio Summorum Pontificum, qual é o seu parecer acerca da
forma extraordinária do Rito Romano?
A liturgia tradicional não
precisa de permissão para existir
Quando se evocam estas
questões de autorizações romanas para celebrar a liturgia romana, é sempre
importante não cair na armadilha do “é permitido hoje, mas poderá deixar de o
ser amanhã”, deixando-se levar pela ideia de que a sua existência depende destas
permissões. De facto, a missa tridentina havia sido interdita pela reforma de
Paulo VI.
Não obstante esta
interdição, graças aos fiéis, a sacerdotes e a deis bispos, ela continuou em
vida e desenvolveu-se a tal ponto, que a Roma conciliar “moderada”, representada
em especial pelo Cardeal Ratzinger, mais tarde Bento XVI, lhe reconheceu, por
etapas, em 1984, 1988 e 2007, a sua legitimidade. Assim, é precisamente porque
quem a usava estava convencido de que a liturgia tradicional era legítima, em
nome do seu sentido da fé, que as autoridades do pós-Concílio acabaram por
reconhecê-la como legítima.
Não há dúvida de que estes
sucessivos textos foram permitindo que ela se desenvolvesse ainda mais, em
especial o Summorum Pontificum, que fez com
que o uso do missal tridentino passasse de um estatuto mal definido de
privilégio àquele de um direito. Desde então, volvidos dez anos, até 2017 – e a
Paix Liturgique foi mostrando isso mesmo em pormenor – o número mundial dos
locais de culto tradicionais “autorizados” duplicou: nos Estados Unidos, 530
locais de culto tradicionais em 2019, contra cerca de 230 em 2007; na Alemanha,
153 contra 54; na Polónia, 45 contra 5; em Inglaterra e País de Gales, 147
locais de culto votados à forma extraordinária em 2017, contra 26 em 2007; em
França, eram 104 os locais de culto tradicionais em 2007, e 235 em 2019, aos
quais se juntam mais de 200 locais de culto da Fraternidade São Pio X (cf. a
nossa Carta 601, de 16 de Julho de 2017).
Agradeça-se a Bento XVI este
livre desenvolvimento, mas agradeça-se também, para o período precedente que o
tornou possível, à multidão de fiéis “resistentes”, às fileiras de sacerdotes
tradicionais, a Mons. Lefebvre, a Dom António de Castro Mayer. Este mundo –
para não falar apenas da França, mas poderíamos evocar também os Estados
Unidos, com 1% dos locais de culto, e fiéis com idades manifestamente mais
baixas do que a média – “gera” cada ano entre 15 a 20% das ordenações de
sacerdotes assimiláveis aos sacerdotes diocesanos.
Ao que cumpre juntar as
comunidades religiosas masculinas e femininas que se distinguem por esta
liturgia, mais uma malha de escolas privadas, cujas capelanias são asseguradas
por sacerdotes que celebram a missa tradicional. Quanto à avaliação das
possibilidade de uma futura expansão, tenha-se em conta a série de sondagens
encomendadas por Paix Liturgique entre 2006 e 2016 (Onze
sondagens para a história, Les Dossiers d’Oremus –
Paix liturgique, 2018).
Assim, se as respostas dos
bispos de todo o mundo ao questionário da CDF forem honestas, irão confirmar –
e diga-se que, a bem da verdade, o simples facto de que este inquérito haja
sido lançado já o confirma – uma realidade enorme: cinquenta anos após a
reforma litúrgica, o culto tradicional, ainda que certamente minoritário, faz
parte da paisagem. Ele coexiste com o rito novo e mostra uma admirável
vitalidade... uma vitalidade irredutível!
Carta 104 - Paix Liturgique em Português
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