sexta-feira, 5 de outubro de 2012

Talvez em nome de Deus - José Luís Nunes Martins

Só se compreende a vida depois. Nesse sentido, há que analisar o passado e avaliar os momentos vividos, as decisões tomadas e as suas consequências. Os padrões dos nossos juízos e a lógica subjacente ao que sucedeu. É um exercício complicado, pois implica uma racionalidade que evita grandes emoções. Só é possível pensar devidamente aquilo que já aconteceu, uma vez que a absoluta abertura do futuro em relação à liberdade do homem não permite criar esquemas sequenciais entre possibilidades hipotéticas. O futuro é incompreensível porque está absolutamente em aberto.

A saudade, um dos mais belos sentimentos, a doce e atormentadora recordação, o ausente presente, não deixa de ser um obstáculo à vida, pois que, centrando-se no perdido, desfoca a atenção do que existe e está à disposição. A saudade implica o contraste entre o que já se foi e o que se é, concentrando todo o sentir no que (já) se não é. Ora, uma tal lógica castra qualquer tentativa de viver a sério, o que se é... Ao limite, os saudosos não têm sequer recordações, pois a lembrança só existe para o que não está e, neles, o ausente está. O passado é todo morto, e, infelizmente, quem de lá não sai, também...

Só se vive para diante. Sofrer pelas boas recordações ou mesmo sorrir por causa delas é perder tempo para sonhar e realizar sonhos. Construir felicidade. Pouco importa o que se fez, isso ter-nos-á trazido até ao ponto em que estamos, mas daqui para diante, só temos de seguir a mesma linha se for essa a nossa vontade... somos livres. Livres. Livres ao ponto de sermos: nada. E termos de nos fazer, completamente, do início ao fim. A cada dia. Só a falta de imaginação de tantos homens os mantém numa linha que parece obrigatória mas que é objecto de uma escolha inconsciente movida a medo.

Pode-se ser livre e ser-se obediente, sim. Não haja dúvida. Há quem decida livremente seguir outro, por exemplo Deus, e esse será muito mais livre que quem leva a sua vida ao sabor dos apetites, fazendo o que lhe apetece... nunca o que quer ou sonha. Esses pobres de espírito são escravos do seu baixo ventre e de outras animalidades... como se não percebessem que, enquanto humanos, lhes cabe serem muito mais que animais. Passando isso por, tantas vezes, contrariar os instintos e elevar-se a uma condição divina. O desafio de ser santo ou herói (são apenas sinónimos) está ao alcance de todos, apesar da multidão de cobardes ter sempre boas desculpas para não ser... feliz!

Só há santos e heróis para diante. Este tipo de gente não se reforma.

Há pessoas já acabadas com 20 anos e há jovens de 70... os ultrapassados teimam em ficar no que já não é; os outros, em fazer o presente e o futuro, o seu e o dos outros, até o dos cobardes... que tanto esperam por uma intervenção divina que não a percebem quando ela se dá pelas mãos de um qualquer santo ou herói que lhes cruzou a vida... talvez em nome de Deus.

Talvez o sentido da vida não seja assim tão complicado: Amar para ser feliz, realizando sonhos.
Claro que haverá muita gente que vê neste tipo de propostas algo demasiado simples... procurando labirintos de sentir e pensar por onde só eles vagueiam, enquanto perdem tempo. Enquanto morrem em vez de viver.

Realizar é a palavra chave. Fazer o real, partindo da mais nobre matéria-prima: os sonhos. Caberá pois a cada homem ser realizador, sonhando sem grandes lógicas, levantando-se bem cedo a fim de, com as mãos na lama, e movido a amor, esculpir o mundo à imagem dos seus sonhos... realizando-os. Talvez em nome de Deus.

Andando para diante. Ajoelhando-se e erguendo-se. Até morrer.


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1 comentário:

Anónimo disse...

Identifico-me com o que aqui é dito.
Sou levada a pensar que só quem sofreu uma perda irreparável na vida pode escrever assim...