sábado, 30 de abril de 2016

A verdade não se determina por maioria de votos

Permitam-me que insista repetidamente: as verdades de fé e de moral não se determinam por maioria de votos, porque compõem o depósito – depositum fidei – entregue por Cristo a todos os fiéis e confiado, na sua exposição e ensino autorizado, ao Magistério da Igreja.

Seria um erro pensar que, pelo facto de os homens já terem talvez adquirido mais consciência dos laços de solidariedade que mutuamente os unem, se deva modificar a constituição da Igreja, para a pôr de acordo com os tempos. 

Os tempos não são dos homens, quer sejam ou não eclesiásticos; os tempos são de Deus, que é o Senhor da história. E a Igreja só poderá proporcionar a salvação às almas, se permanecer fiel a Cristo na sua constituição, nos seus dogmas, na sua moral.

S. Josemaria Escrivá in Amar a Igreja, n.30-31


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sexta-feira, 29 de abril de 2016

Os bens da Igreja sempre foram dos pobres




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Proclamação de S. Catarina de Sena como Doutora da Igreja

A Igreja, para ela, foi uma autêntica mãe, a quem era necessário submeter-se, prestar reverência e assistência. Ela chegou a dizer « que a Igreja é simplesmente o próprio Cristo » (Lettera 171, ed. P. Misciatelli, III, p. 89).

Calcula-se, portanto, o grande amor reverente e apaixonado que ela nutriu pelo Pontífice Romano. Nós, hoje, o menor servo dos servos de Deus, devemos pessoalmente a Santa Catarina um imenso reconhecimento, não pela honra que, por meio dela, possa advir à Nossa humilde pessoa, mas pela apologia mística que ela fez do múnus apostólico do sucessor de Pedro. Nele, como todos recordam, ela contempla «o doce Cristo na terra» (Lettera 196, ed. cit., III, p. 211), a quem são devidos filial afecto e obediência, porque « quem for desobediente a Cristo na terra, que representa o Cristo que está no céu, não participará do fruto do Sangue do Filho de Deus » (Lettera 207, ed. cit., III, p. 270). (...)

Como não havemos de recordar, depois, a intensa obra realizada pela Santa para a reforma da Igreja? Foi principalmente aos Sagrados Pastores que dirigiu as suas exortações, santamente indignada pela inércia de muitos deles e fremente pelo seu silêncio, quando a grei que lhes fora confiada se ia dispersando e desaparecendo. «Oh, não fique emudecido! Grite, com cem mil línguas — escreveu ela a um alto prelado —. Julgo que, por causa do silêncio, o mundo está corrompido, a Esposa de Cristo empalidecida e sem cores, porque lhe sugaram o sangue, isto é, o sangue de Cristo» (Lettera 16 al Cardinale di Ostia, ed. L. Ferretti, 1, p. 85).

E que significava para ela renovação e reforma da Igreja? Certamente não significava subversão das suas estruturas essenciais, a rebelião aos Pastores, o caminho aberto para os carismas pessoais e as arbitrárias inovações no culto e na disciplina, como algumas pessoas desejariam, nos nossos dias. Pelo contrário, ela afirma repetidamente que será restituída a beleza à Esposa de Cristo e se deverá empreender a reforma «não com a guerra, mas com a paz e a tranquilidade, com orações humildes e contínuas, com o suor e as lágrimas dos servos de Deus» (Dialogo, XV e LXXXVI, ed. cit., pp. 44 e 197). Tratava-se, portanto, para a Santa, de uma reforma primeiro que tudo interior e, depois, externa, mas sempre em comunhão com os legítimos representantes de Cristo e obediência filial aos mesmos.

A nossa piedosíssima virgem também foi política? Sim, sem dúvida, e de um modo excepcional, mas no sentido inteiramente espiritual da palavra. De facto, ela reagiu com desdém contra a acusação de politicante, que lhe fizeram alguns dos seus conterrâneos, escrevendo a um deles: «...E os meus concidadãos crêem que os tratados se fazem para mim ou para aqueles que estão na minha companhia. Dizem a verdade, mas não a conhecem, profetizam. Porque, o que eu pretendo fazer e quero que façam os que estão comigo é unicamente tratar de derrotar o demónio, de lhe tirar o poder que ele tem sobre o homem por causa do pecado mortal, de arrancar o ódio do coração humano e de o pacificar com Cristo Crucificado e com o seu próximo » (Lettera CXXII, ed. cit., II, p. 253).

Portanto, a lição desta mulher política sui generis conserva até agora o seu significado e valor, embora hoje seja mais sentida a necessidade de se fazer a devida distinção entre o que é de César e o que é de Deus, entre Igreja e Estado. O magistério político de Santa Catarina encontra a sua expressão mais genuína e perfeita nesta sua sentença lapidar: « Nenhum Governo se pode conservar na lei civil e na lei divina em estado de graça sem a santa justiça » (Dialogo, CXIC, ed. cit., p. 291).

Papa Paulo VI, 4 de Outubro de 1970


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quarta-feira, 27 de abril de 2016

Exortação 'Amoris Lætitia' analisada por D. Athanasius Schneider

Amoris lætitia: a necessidade de esclarecimento para evitar uma confusão generalizada

O paradoxo de interpretações contraditórias de “Amoris lætitia
A recentemente publicada Exortação Apostólica Amoris lætitia (AL), que contém a superabundância de riquezas espirituais e pastorais que dizem respeito à vida no Matrimónio e na família Cristã em nossos tempos, infelizmente, num curto período de tempo, levou a interpretações muito contraditórias mesmo entre o episcopado.
Há bispos e sacerdotes que, pública e abertamente, declararam que a AL representa uma abertura muito clara à comunhão para divorciados e recasados, sem a necessidade de eles praticarem continência. Em suas opiniões, é este aspecto da prática sacramental que, de acordo com eles, irá agora passar por uma mudança significativa, que dá à AL seu verdadeiro carácter revolucionário. Interpretando a AL quanto aos casais irregulares, um presidente de uma Conferência episcopal atestou, num texto publicado no site dessa mesma Conferência: “Essa é uma disposição da misericórdia, uma abertura de coração e de espírito que não precisa de lei, não espera orientação, nem aguarda para seguir em frente. Ela pode e deve acontecer imediatamente”.
Essa opinião foi confirmada por declarações recentes do padre Antônio Spadar S.J., depois do Sínodo dos Bispos em 2015, que o Sínodo estabeleceu os “fundamentos” para o acesso de casais divorciados e recasados à comunhão ao “abrir uma porta” que se mantinha fechada durante o último Sínodo, em 2014. Agora, como alega o Padre Spadaro em seu comentário sobre a AL, essa previsão se confirmou. Há rumores que o Padre Spadaro era um membro do grupo editoral por trás da AL.
O caminho para as interpretações abusivas parece ter sido pavimentado pelo próprio Cardeal Cristoph Schönborn que disse, durante uma apresentação oficial da AL em Roma, em relação às uniões irregulares, que: “Meu grande júbilo, como resultado desse documento, reside no facto de que ele coerentemente vence a evidente, superficial e artificial divisão entre ‘regular’ e ‘irregular’”. Tal declaração sugere que não há diferença clara entre um casamento válido, sacramental, e uma união irregular, entre pecado venial e mortal.
Por outro lado, há Bispos que alegam que a AL deve ser lida à luz do Magistério perene da Igreja, e que a AL não garante acesso à comunhão por casais divorciados ou recasados, nem mesmo em casos excepcionais. Essa declaração é fundamentalmente correta e desejável. De facto, o conteúdo de todo texto magisterial deve, como regra, ser em seu conteúdo consistente com ensinamentos anteriores do Magistério da Igreja, sem qualquer quebra.
Não é segredo, entretanto, que casais divorciados e recasados são admitidos à Sagrada Comunhão num sem número de igrejas, sem serem obrigados a praticarem a continência. Deve-se admitir que certas declarações na AL poderiam ser usadas para justificar uma prática abusiva que já tem sido feita há algum tempo em vários lugares e circunstâncias na vida da Igreja.

Certas declarações da AL são objectivamente vulneráveis a más interpretações

Nosso Santo Padre, o Papa Francisco, convidou-nos todos a fazer uma contribuição à reflexão e ao diálogo nos assuntos sensíveis acerca do Matrimónio e da família. “A reflexão dos pastores e teólogos, se for fiel à Igreja, honesta, realista e criativa, ajudar-nos-á a alcançar uma maior clareza” (AL, 2).
Se analisarmos certas declarações da AL com honestidade intelectual dentro do seu contexto adequado, nos pegamos face a dificuldades quando tentamos interpretá-las de acordo com a doutrina tradicional da Igreja. Isso se deve à ausência de afirmações concretas e explícitas da doutrina e práticas constantes da Igreja, fundada na Palavra de Deus e reiterada pelo Papa João Paulo II, que disse, “A Igreja, contudo, reafirma a sua práxis, fundada na Sagrada Escritura, de não admitir à comunhão eucarística os divorciados que contraíram nova união. Não podem ser admitidos, do momento em que o seu estado e condições de vida contradizem objectivamente aquela união de amor entre Cristo e a Igreja, significada e actuada na Eucaristia. Há, além disso, um outro peculiar motivo pastoral: se se admitissem estas pessoas à Eucaristia, os fiéis seriam induzidos em erro e confusão acerca da doutrina da Igreja sobre a indissolubilidade do Matrimónio. A reconciliação pelo Sacramento da Penitência – que abriria o caminho ao Sacramento eucarístico – pode ser concedida só àqueles que… estão sinceramente dispostos a uma forma de vida não mais em contradição com a indissolubilidade do Matrimónio. Isto tem como consequência, concretamente, que… «assumem a obrigação de viver em plena continência, isto é, de abster-se dos actos próprios dos cônjuges»” (Familiaris Consortio, 84).
O Papa Francisco não estabeleceu “uma nova normativa geral de tipo canônico, aplicável a todos os casos” (AL n. 300). Ele diz, no entanto, no item nota 336: “E também não devem ser sempre os mesmos na aplicação da disciplina sacramental, dado que o discernimento pode reconhecer que, numa situação particular, não há culpa grave”. Obviamente referindo-se aos divorciados e aos recasados, o Papa diz na AL, n. 305 que, “por causa dos condicionalismos ou dos factores atenuantes, é possível que uma pessoa, no meio duma situação objectiva de pecado – mas subjectivamente não seja culpável ou não o seja plenamente –, possa viver em graça de Deus, possa amar e possa também crescer na vida da graça e de caridade, recebendo para isso a ajuda da Igreja”. Na nota 351, o Papa esclarece essa declaração dizendo que “em certos casos, poderia haver também a ajuda dos Sacramentos”.
No mesmo capítulo VIII da AL, n. 298, o Papa fala dos divorciados envolvidos em “uma nova união, por exemplo, podem encontrar-se em situações muito diferentes, que não devem ser catalogadas ou encerradas em afirmações demasiado rígidas, sem deixar espaço para um adequado discernimento pessoal e pastoral. Uma coisa é uma segunda união consolidada no tempo, com novos filhos, com fidelidade comprovada, dedicação generosa, compromisso cristão, consciência da irregularidade da sua situação e grande dificuldade para voltar atrás sem sentir, em consciência, que se cairia em novas culpas. A Igreja reconhece a existência de situações em que «o homem e a mulher, por motivos sérios – como, por exemplo, a educação dos filhos – não se podem separar»”. Na nota 329, o Papa cita o documento Gaudium et Spes do Concílio Vaticano II; infelizmente, ele faz isso de uma maneira incorrecta, porque na passagem em questão, o Concílio refere-se apenas ao válido Matrimónio cristão. A aplicação dessa declaração às pessoas divorciadas pode causar a impressão de que um Matrimónio deva ser igualado à união de pessoas divorciadas, se não na teoria, ao menos na prática.

A admissão de pessoas divorciadas e recasadas à Santa Comunhão e as suas consequências

Infelizmente, a AL não contém citações verbais dos princípios subjacentes ao ensinamento moral da Igreja, no formato no qual são formulados no n. 84 da Exortação Apostólica Familiares Consortio e na encíclica Veritatis Splendor do Papa João Paulo II, particularmente nos seguintes tópicos de suma importância: “opção fundamental” (Veritatis splendor, nos. 67-68), “pecado mortal e venial” (ibid., n. 69-70), “proporcionalismo, consequencialismo” (ibid., n. 91 et seq.). Entretanto, uma citação verbal da Familiaris Consortio, n.84, e algumas das afirmações mais significativas na Veritatis splendor tornaria a AL incontestável por interpretações heterodoxas. Alusões gerais a princípios morais e à doutrina da Igreja são certamente insuficientes numa questão controversa que é tanto delicada quanto de fundamental importância.
Representantes do clero, e mesmo os do episcopado, já estão afirmando que, de acordo com o espírito do Capítulo VIII do AL, a possibilidade, em casos excepcionais, que os divorciados e recasados podem ser admitidos à Santa Comunhão sem que seja necessário viverem em perfeita continência.
Se aceitarmos tal interpretação do teor e do espírito da AL, nós devemos, se quisermos ser intelectualmente honestos e respeitar a lei da não-contradição, também aceitar as seguintes conclusões lógicas:
  • O sexto Mandamento, que proíbe qualquer acto sexual que não seja dentro de um Matrimónio, não mais seria universalmente válido, mas admitiria excepções. No presente caso, isso significa que os divorciados poderiam praticar o acto conjugal e mesmo serem encorajados a fazê-lo para manterem uma “fidelidade mútua”, cf. AL, 298. Poderia haver, portanto, “fidelidade” num estilo de vida que contradiz directamente a vontade manifesta de Deus. Entretanto, encorajar e legitimar actos que são e sempre serão, como tais, contrários à vontade de Deus, significaria contradizer a Revelação Divina.
  • As palavras do próprio Cristo: “Assim, já não são dois, mas uma só carne. Portanto,não separe o homem o que Deus uniu” (Mt 19,6) não mais se aplicaria a todos os esposos, sem excepção.
  • Seria possível, num caso especial, receber o Sacramento da Penitência e Sagrada Comunhão enquanto pretende continuar uma violação directa aos Mandamentos de Deus: “Não cometerás adultério” (Ex 20,14) e “Portanto, não separe o homem o que Deus uniu” (Mt 19,6; Gn 2,24).
  • A observância desses Mandamentos e da Palavra de Deus seria, em tal caso, uma questão de teoria ao invés de prática e conduziria, portanto, os divorciados e recasados a “enganarem-se” (Tg 1,22). Seria, portanto, possível crer perfeitamente na natureza divina do sexto Mandamento e na indissolubilidade do Matrimónio sem, no entanto, agir de acordo.
  • A palavra divina de Cristo: “Quem repudia sua mulher e se casa com outra, comete adultério contra a primeira. E se a mulher repudia o marido e se casa com outro, comete adultério” (Mc 10,11s) não mais seria universalmente válida, mas seria sujeita a exceções.
  • Uma permanente, deliberada e gratuita violação do sexto Mandamento de Deus e da sacralidade e indissolubilidade do verdadeiro e válido Matrimónio (no caso de casais divorciados e recasados) não mais seria um pecado grave, isto é, uma oposição à vontade de Deus.
  • Poderia haver casos de séria, permanentemente deliberada e livre violação de um ou de mais Mandamentos de Deus (e.g. no caso de um estilo de vida corrupto) no qual poderia ser dado acesso aos Sacramentos para o interessado mitigando-se as circunstâncias, sem que tal acesso seja feito condicionado a uma sincera resolução, desde então, a abster-se de tais actos de pecado e escândalo.
  • O ensinamento permanente e infalível da Igreja não mais seria universalmente válido, particularmente, o ensinamento confirmado pelo Papa João Paulo II na Familiaris Consortio, n. 84, e pelo Papa Bento XVI em Sacramentum Caritatis, 29, de acordo com os quais a condição prévia para admissão aos Sacramentos do divorciado recasado é a perfeita continência.
  • A observância do sexto Mandamento de Deus e da indissolubilidade do Matrimónio iriam tornar-se um ideal inalcançável para todos, mas apenas para uma espécie de elite.
  • As firmes palavras de Cristo ordenando os homens a observarem os Mandamentos de Deus, sempre e em todas as circunstâncias, e mesmo para tomarem para si sofrimento considerável de forma a fazê-los, em outras palavras, aceitar a Cruz, não mais seria válido como uma verdade absoluta: “E se a tua mão direita te faz pecar,corta-a e lança-a fora de ti; porque melhor te é que se perca um dos teus membros, do que todo o teu corpo vá para o inferno” (Mt 5, 30).
Admitir casais vivendo em “uniões irregulares” à Sagrada Comunhão e permiti-los praticar actos que são reservados para esposos num casamento válido, seria equivalente à usurpação de um poder que não pertence a nenhuma autoridade humana, porque fazê-lo seria uma pretensão de corrigir a própria Palavra de Deus.

O perigo da colaboração da Igreja na disseminação da “praga do divórcio”

Professando a doutrina eterna de Nosso Senhor Jesus Cristo, a Igreja ensina: “Fiel ao Senhor, a Igreja não pode reconhecer como Matrimónio a união dos divorciados recasados civilmente. «Quem repudia a própria mulher e casa com outra comete adultério contra ela; se a mulher repudia o marido e casa com outro, comete adultério» (Mc 10, 11-12). Para com eles, a Igreja desenvolve uma atenta solicitude, convidando-os a uma vida de fé, à oração, às obras de caridade e à educação cristã dos filhos. Mas eles não podem receber a absolvição sacramental nem se abeirar da comunhão eucarística, nem exercer certas responsabilidades eclesiais enquanto perdurar esta situação, que objectivamente contrasta com a lei de Deus” (Compêndio do Catecismo da Igreja Católica, 349).
Viver numa união marital inválida e ir de encontro constantemente à ordem de Deus e a sacralidade e indissolubilidade do Matrimónio significa não viver na verdade. Declarar que a prática deliberada, livre e habitual de actos sexuais numa união conjugal inválida poderia, em casos específicos, não constituir um pecado grave não é a verdade, mas uma grave mentira, e nunca trará, portanto, a alegria genuína no amor. Consequentemente, garantir a permissão a essas pessoas de receber a Sagrada Comunhão seria um engodo, uma hipocrisia e uma mentira. A Palavra de Deus na Escritura ainda é válida: “Aquele que diz “‘Eu O conheço’, mas não guarda os Seus mandamentos é mentiroso e a verdade não está nele” (I Jo 2,4).
O Magistério da Igreja ensina-nos sobre a universal validade dos Mandamentos do Decálogo: “Uma vez que exprimem os deveres fundamentais do homem para com Deus e para com o próximo, os Dez Mandamentos revelam, no seu conteúdo primordial, obrigações graves. São basicamente imutáveis e a sua obrigação impõe-se sempre e em toda a parte. Ninguém pode dispensar-se dela” (Catecismo da Igreja Católica, 2072). Aqueles que afirmaram que os Mandamentos de Deus, inclusive o Mandamento “Não cometerás adultério”, admitem excepções e que, em alguns casos, as pessoas não devem ser responsabilizadas pelo divórcio foram os fariseus e, posteriormente, os gnósticos cristãos dos séculos II e III.
As seguintes declarações do Magistério ainda são válidas porque são parte do Magistério infalível, pois expressadas pelo Magistério universal e ordinário: “Os preceitos negativosda lei natural são universalmente válidos: obrigam a todos e cada um, sempre e em qualquer circunstância. Trata-se, com efeito, de proibições que vetam uma determinada ação semper et pro semper, sem excepções. … há comportamentos que em nenhuma situação e jamais podem ser uma resposta adequada. … A Igreja sempre ensinou que nunca se devem escolher comportamentos proibidos pelos mandamentos morais, expressos de forma negativa no Antigo e no Novo Testamento. Como vimos, Jesus mesmo reitera a irrevogabilidade destas proibições: «Se queres entrar na vida, cumpre os mandamentos (…): não matarás; não cometerás adultério; não roubarás, não levantarás falso testemunho» (Mt 19,17-18)” (João Paulo II, Carta Encíclica Veritatis Splendor, 52).
O Magistério da Igreja ensina ainda mais claramente: “A consciência boa e pura é iluminada pela fé verdadeira. Porque a caridade procede, ao mesmo tempo, «dum coração puro, de uma boa consciência e de uma fé sincera» (I Tm 1,5. cf. 3,9; II Tm 1,3; I Pe 3,21; At 24,16)” (Catecismo da Igreja Católica, 1794).
No caso de, objectivamente, uma pessoa cometer actos moralmente pecaminosos, com plena advertência da pecaminosidade de tais actos, livre e deliberadamente, e com a intenção de repeti-los no futuro, é impossível aplicar o princípio da inimputabilidade de uma falta por causa de circunstâncias atenuantes. A aplicação do princípio da inimputabilidade a casais divorciados e recasados constituiria hipocrisia e sofisma gnóstico. Se a Igreja admitisse essas pessoas à Sagrada Comunhão, mesmo num único caso, estaria em contradição com sua própria doutrina, dando testemunho público contra a indissolubilidade do Matrimónio e, assim, contribuindo para a disseminação da “praga do divórcio” (Concílio Vaticano II, Gaudium et spes, 47).
A fim de evitar uma intolerável e escandalosa contradição, a Igreja, na sua interpretação infalível da verdade divina da lei moral e da indissolubilidade do Matrimónio, tem, por dois mil anos, firmemente observado a prática de apenas admitir à Sagrada Comunhão aqueles divorciados que vivem em perfeita continência e “remoto scandalo”, sem qualquer excepção ou privilégio excepcional.
A primeira tarefa pastoral que o Senhor confiou à Sua Igreja foi ensinar a doutrina (cf. Mt 28,20). A observância dos Mandamentos de Deus está intrinsecamente ligada à doutrina. Por este motivo, a Igreja sempre rejeitou qualquer contradição entre doutrina e vida prática, referindo-se a tais contradições como “gnósticas” ou como a teoria herética luterana do simul iustus e peccator. Não deve haver contradições entre a fé e a vida diária dos filhos da Igreja.
Ao lidar com a observância do que é expressamente mandado por Deus e a indissolubilidade do Matrimónio, não podemos falar de interpretações teológicas opostas. Se Deus diz “tu não cometerás adultério”, nenhuma autoridade humana poderia dizer “em alguns casos excepcionais ou por um bom motivo você pode cometer adultério”.
As seguintes assertivas do Papa Francisco são muito importantes; o Papa fala sobre a integração do divorciados e recasados na vida da Igreja: “Este discernimento não poderá jamais prescindir das exigências evangélicas de verdade e caridade propostas pela Igreja. Para que isto aconteça, devem garantir-se as necessárias condições de humildade, privacidade, amor à Igreja e à sua doutrina … Evita-se o risco de que um certo discernimento leve a pensar que a Igreja sustente uma moral dupla” (AL, 300). Estas louváveis declarações na AL, no entanto, permanecem sem especificações concretas sobre a questão da obrigação de divorciados recasados se separarem ou, ao menos, viver em continência perfeita.
Quando é uma questão de vida ou morte do corpo, nenhum médico expressaria suas opiniões de forma ambígua. O médico não pode dizer ao paciente: “Você tem que decidir se quer ou não tomar o medicamento de acordo com a sua consciência, ao mesmo tempo que respeita a ética médica”. Tal comportamento por parte de um médico, muito provavelmente, é considerado irresponsável. E, no entanto, a vida de nossa alma imortal é mais importante, uma vez que é da saúde da alma que depende o seu destino eterno.

A verdade libertadora da penitência e o mistério da Cruz

Dizer que divorciados recasados não são pecadores públicos na Igreja é uma ocultação com factos errados. A verdadeira condição de todos os membros da Igreja militante, aliás, é a de pecadores. Se os divorciados e recasados dizem que seus voluntários e deliberados actos contra o sexto Mandamento de Deus não são sempre pecaminosos, ou, pelo menos, não se constituem em pecados graves, eles enganam a si mesmos e a verdade não estará neles, como diz São João: “Se dissermos que estamos sem pecado, nós mesmos nos enganamos, e não há verdade em nós. Porém se nós confessarmos os nossos pecados, Ele é fiel e justo para nos perdoar esses nossos pecados, e para nos purificar de toda a iniquidade. Se dissermos que não pecamos, fazemo-lo a Ele mentiroso, e a Sua palavra não está em nós” (I Jo 1,8-10).
A aceitação por parte dos divorciados e recasados da verdade de que são pecadores e mesmo pecadores públicos não os priva de sua Esperança cristã. Apenas a aceitação da realidade e verdade permitirá a eles seguir um caminho de frutuosa penitência de acordo com as palavras de Jesus Cristo.
Seria muito benéfico restaurar o espírito dos primeiros Cristãos e do tempo dos Padres da Igreja, quando havia uma solidariedade viva com os pecadores públicos por parte dos fieis; entretanto, essa solidariedade era baseada na verdade. Não havia nada de discriminatório em tal solidariedade; ao contrário, toda a Igreja participava no progresso penitencial dos pecadores públicos com orações de intercessão, lágrimas, actos de expiação e actos de caridade em seu benefício.
A Exortação Apostólica Familiaris Consortio ensina que “mesmo aqueles que se afastaram do Mandamento do Senhor e vivem agora nesse estado (divorciados e recasados), poderão obter de Deus a graça da conversão e da salvação, se perseverarem na oração, na penitência e na caridade” (n. 84).
Durante os primeiros séculos, pecadores públicos eram integrados na comunidade de oração dos fiéis e eram instruídos a ajoelhar-se, com braços levantados, para implorar a intercessão dos seus irmãos. Tertuliano nos dá este comovente testemunho: “O corpo não pode regozijar-se quando um dos seus membros sofre. Ele deve sofrer e lutar para recuperar-se por inteiro. Quando você estende suas mãos em direcção aos joelhos de seus irmãos, é Cristo que você toca, é Cristo que você implora. Do mesmo modo, quando choram por você, é Cristo quem se compadece” (De pænitentia, 10, 5-6). Santo Ambrósio de Milão encontrou palavras semelhantes: “Toda a Igreja toma para si o fardo do pecador público, sofrendo com ele através de lágrimas, orações e dor” (De pænitentia 1, 81).
É verdade, claro, que as formas de disciplina penitencial da Igreja mudaram. Entretanto, o espírito dessa disciplina deve permanecer vivo na Igreja em todos os tempos. Hoje, padres e Bispos, confiando-se de certas declarações da AL, estão começando a sugerir aos divorciados e recasados que sua condição não os torna pecadores públicos de um ponto de vista objectivo. Eles os tranquilizam declarando que suas relações sexuais não são pecado grave. Tal atitude não corresponde à verdade. Eles estão privando os divorciados e recasados da possibilidade de uma conversão radical à obediência de Deus, permitindo que essas almas vivam numa ilusão. Tal aproximação pastoral é fácil, barata e nada custa. Não há lágrimas, orações ou obras de intercessão inspiradas por amor fraternal a serem oferecidas em benefício dos divorciados e recasados.
Ao admitir os divorciados e recasados à Santa Comunhão, mesmo em casos excepcionais, sem exigir que eles parem de realizar actos contrários ao sexto Mandamento de Deus e também, presunçosamente, declarando que seu modo de vida não é um pecado mortal, tomamos o caminho fácil, afastando o escândalo da Cruz. Tal cuidado pastoral dos divorciados e recasados é efémero e enganador. A todos aqueles que advogam caminho ordinário e fácil para divorciados e recasados, Jesus ainda dirige as palavras “Tira-te diante de Mim, Satanás, que Me serves de escândalo; porque não tens gosto das coisas que são de Deus, mas das que são dos homens” (Mt 16,23). O que Jesus disse aos seus discípulos foi que “Se alguém quer vir após Mim, negue-se a si mesmo, e tome a sua cruz e siga-Me” (Mt 16,24).
Quanto ao cuidado pastoral dos casais divorciados e recasados, devemos reacender em nosso tempo o espírito de seguir Cristo através da verdade da cruz e da penitência, o qual, sozinho, pode trazer alegria duradoura, evitando prazeres efémeros que são, em última instância, enganosos. As seguintes palavras do Papa São Gregório Magno não são apenas verdadeiramente aplicáveis a nossa actual situação, mas também a ilumina: “Não devemos nos tornar demasiado apegados ao nosso exílio terreno, as conveniências da vida não devem nos fazer esquecer nossa verdadeira pátria, para que nossos espíritos não fiquem sonolentos no meio dessas amenidades. Por esta razão, Deus alia Seus dons a visitações ou punições, para assegurar que tudo quanto nos deleita neste mundo torne-se amargo para nós e que nossa alma seja repleta com a chama que sempre reacende em nós o desejo das coisas celestes e permite-nos progredir. Esse fogo faz-nos sofrer com prazer, crucifica-nos gentilmente e enche-nos com uma jubilosa alegria” (In Hez., 2, 4, 3).
O espírito da genuína disciplina penitencial da Igreja primitiva sempre manteve-se vivo na Igreja de todos os tempos, até hoje. Existe um notável exemplo disso em Laura Vicuna del Carmen, nascida em 1891 no Chile. A irmã Azocar, que tomava conta de Laura, recorda: “Eu lembro a primeira vez que expliquei o Sacramento do Matrimónio, Laura desfaleceu, provavelmente porque entendeu das minhas palavras que sua mãe estava vivendo em pecado mortal enquanto permanecesse com aquele cavalheiro. Durante aquele tempo em Junín, apenas uma família vivia de acordo com a vontade de Deus”. Assim, Laura intensificou suas orações e penitências por sua mãe. Ela recebeu sua primeira comunhão em 2 de Junho de 1901 com grande fervor; ela escreveu as seguintes resoluções: 
“1. Quero amá-lO e servi-lO toda minha vida, oh meu Jesus; para isso, ofereço-Te minha alma, meu coração e todo meu ser. – 2. Eu prefiro morrer a ofendê-lO em pecado; então quero distanciar-me de tudo quando me separa de Ti. – 3. Prometo fazer o melhor de mim, mesmo que eu tenha de fazer grandes sacrifícios, para seres mais conhecido e amado, e para reparar as ofensas infligidas a Ti diariamente pelos homens que não Te amam, especialmente aquelas que recebes dos que são próximos a mim – Oh, meu Deus, conceda-me uma vida de amor, mortificação e sacrifício!”. Mas sua maior alegria foi perturbada por ver sua mãe, presente na cerimónia, não receber a comunhão. Em 1902, Laura ofereceu sua vida por sua mãe, que estava vivendo com uma homem numa união irregular na Argentina. Laura multiplicou suas orações e sacrifícios pela verdadeira conversão de sua mãe. Algumas horas antes de morrer, ela chamou sua mãe para seu leito e disse: “Mãe, eu vou morrer. Pedi a Jesus por isso e minhas orações foram atendidas.Quase dois anos atrás, ofereci minha vida pela graça de sua conversão. Mãe, não terei a felicidade de vê-la arrepender-se antes de morrer?”. A sua mãe, chocada e arrasada, fez a promessa: “Amanhã de manhã irei à igreja e vou me confessar”. Laura chamou a atenção do padre que a estava atendendo e disse: “Padre, minha mãe acabou de prometer abandonar esse homem; seja testemunha de sua promessa!”. Então acrescentou, feliz: “Agora posso morrer alegre!”. Com essas palavras, ela expirou no dia 22 de janeiro de 1904, em Junín de Los Andes (Argentina), aos 13 anos, nos braços de sua mãe, que redescobriu a Fé e pôs fim a sua união irregular na qual estava vivendo.
O admirável exemplo de vida de uma jovem, agora conhecida com “bem-aventurada” Laura, é uma demonstração da seriedade com a qual um verdadeiro católico trata o sexto Mandamento de Deus e a sacralidade e indissolubilidade do Matrimónio. Nosso Senhor Jesus Cristo nos exige evitar mesmo a aparência de aprovar uma união irregular ou adúltera. A Igreja sempre preservou fielmente e transmitiu esse Mandamento divino na sua doutrina e na sua prática, sem nenhuma ambiguidade. Oferecendo sua juventude, Laura certamente não pretendia representar uma das muitas possibilidades diferentes de interpretação doutrinal ou pastoral. Não se oferece a vida por uma possível interpretação pastoral ou doutrinal, mas por uma imutável e universalmente válida verdade Divina. Essa verdade foi demonstrada por um grande número de Santos que ofereceram suas vidas, começando com São João Baptista até o simples fiel dos nossos dias cujo nome só Deus sabe.

A necessidade da “Veritatis lætitia

Felizmente, não há dúvidas de que a AL contém afirmações teológicas, bem como orientações espirituais e pastorais, de grande valor. No entanto, falando pragmaticamente, não é suficiente dizer que a AL deve ser interpretada de acordo com a doutrina tradicional e a prática da Igreja. Se num documento eclesiástico – que, no nosso caso, não é nem definitivo nem infalível – são encontrados elementos que por ventura possam dar origem a interpretações e aplicações que levariam a consequências espirituais perigosas, todos os membros da Igreja, especialmente os Bispos, como colaboradores fraternos do Sumo Pontífice na colegialidade efectiva, têm o dever de denunciá-las e respeitosamente solicitar uma interpretação autêntica.
Em questões relativas à Fé Divina, aos Mandamentos divinos e à sacralidade e indissolubilidade do Matrimónio, todos os membros da Igreja, desde os simples fiéis ao mais alto representante do Magistério, devem se unir no esforço para manter intacto o tesouro da Fé e da moral. Na verdade, foi o Concílio Vaticano II que ensinou: “A totalidade dos fiéis que receberam a unção do Santo (cfr. Jo 2,20 e 27), não pode enganar-se na Fé; e esta sua propriedade peculiar manifesta-se por meio do sentir sobrenatural da Fé do povo todo, quando este, «desde os Bispos até ao último dos leigos fiéis» (S. Agostinho, De Praed. Sanct. 14, 27: PL 44, 980.), manifesta consenso universal em matéria de Fé e costumes. Com este sentido da Fé, que se desperta e sustenta pela acção do Espírito de verdade, o Povo de Deus, sob a direcção do sagrado Magistério que fielmente acata, já não recebe simples palavra de homens mas a verdadeira Palavra de Deus (cfr. I Ts 2,13), adere indefectivelmente à Fé uma vez confiada aos Santos (cfr. Jd 3), penetra-a mais profundamente com juízo acertado e aplica-a mais totalmente na vida” (Lumen gentium, 12). O Magistério, por sua vez, “não está acima da Palavra de Deus, mas sim ao seu serviço, ensinando apenas o que foi transmitido” (Concílio Vaticano II, Dei Verbum, 10).
Foi o Concílio Vaticano II que encorajou todos os fiéis e, especialmente, os Bispos a expressar suas preocupações e observações sem medo, para o bem da Igreja como um todo. Servilismo e politicagem introduziram um mal pernicioso para a vida da Igreja. O famoso Bispo e teólogo do Concílio de Trento, Melchior Cano OP, disse estas memoráveis palavras: “Pedro não precisa de nossas mentiras ou bajulações. Aqueles que fecham os olhos para os factos e indiscriminadamente defendem cada decisão do Sumo Pontífice são os mesmo que mais contribuem para minar a autoridade da Santa Sé. Eles destroem seus alicerces, em vez de fortalecê-los”.
Nosso Senhor nos ensinou claramente o que constitui o verdadeiro amor e a verdadeira alegria do amor: “Aquele que tem os Meus mandamentos e os guarda, esse é que Me ama” (Jo 14,21). Quando Ele deu ao homem o sexto Mandamento e ordenou-lhe observar a indissolubilidade do Matrimónio, Deus o deu a todos os homens, sem excepção, e não apenas a uma elite. Já no Antigo Testamento, Deus disse: “O Mandamento que hoje te dou não está acima de tuas forças, nem fora de teu alcance” (Dt 30,11) e “Se quiseres, guardarás os Mandamentos para permaneceres fiel à Sua vontade” (Eclo 15, 16). E Jesus disse a todos: “Se queres entrar na vida, observa os Mandamentos”. Que mandamentos? E Ele mesmo respondeu: “Não matarás; não cometerás adultério” (Mt 19,17s). Do ensinamento dos Apóstolos, recebemos a mesma doutrina: “Eis o amor de Deus: que guardemos Seus Mandamentos. E Seus Mandamentos não são penosos” (I Jo 5,4).
Não há vida verdadeira, sobrenatural e eterna, sem guardar os Mandamentos de Deus: “Eu ordeno que guardem os Seus mandamentos. Ponho diante de ti a vida e a morte. Escolhe, pois, a vida!” (Dt 30,16.19). Não há, pois, vida real e nenhuma verdadeira e genuína alegria de amor sem a verdade. “O amor consiste em viver de acordo com os Seus mandamentos” (II Jo 6). A alegria do amor é a alegria da verdade. A autêntica vida cristã consiste na vida e na alegria da verdade: “Não tenho maior alegria do que ouvir dizer que os meus filhos caminham na verdade” (III Jo 4).
Santo Agostinho explica a íntima conexão entre alegria e verdade: “Pergunto a todos se preferem encontrar a alegria na verdade ou no erro; ninguém hesita em declarar que prefere a verdade, como em dizer que querem ser felizes. É que a felicidade da vida é a alegria que provém da verdade, todos nós queremos a alegria da verdade” (Confissões, X, 23).

O perigo de confusão geral com respeito à indissolubilidade do Matrimónio

Já há algum tempo, vimos, em alguns lugares e ambientes da vida da Igreja, o abuso tácito da admissão de casais divorciados e recasados à Sagrada Comunhão sem exigir que eles vivam em perfeita continência. As declarações pouco claras no Capítulo VIII da AL deram um novo argumento aos defensores declarados da admissão de casais divorciados e recasados à Santa Comunhão em casos especiais.
Observamos, actualmente, o fenómeno do abuso começando a se espalhar ainda mais na prática, uma vez que aqueles favoráveis a isto estão se sentindo agora justificados de certa maneira. Há obviamente também alguma confusão no que diz respeito à interpretação das afirmações relevantes no Capítulo VIII da AL. Esta confusão é aumentada pelo facto de que todos, tanto os defensores da admissão dos divorciados recasados à Sagrada Comunhão como os seus oponentes, dizem que “A doutrina da Igreja concernente a esse ponto não mudou”.
Tendo em devida conta as diferenças históricas e doutrinais, a nossa situação mostra alguns paralelos e analogias com a confusão geral causada pela crise causada pelo arianismo no século IV. Naquela época, a Fé apostólica e tradicional na verdadeira divindade do Filho de Deus foi garantida por meio do termo “consubstancial” (homoousios), dogmaticamente proclamada pelo Magistério universal do Concílio de Niceia. A profunda crise da Fé, acompanhada por uma confusão quase universal, foi causada principalmente pelas estratégias de recusa ou de evasão em usar e professar palavra “consubstancial” (homoousios). Em vez disso, o clero e sobretudo o episcopado começaram a propor expressões alternativas que eram ambíguas e imprecisas, como, para exemplificar, “semelhante em substância” (homoiousios) ou simplesmente “semelhante” (homoios). A fórmula “homoousios”, aprovada pelo Magistério universal da época, expressava a plena e verdadeira divindade da VERBO com tanta precisão que não deixou nenhum espaço para interpretação equívoca.
Nos anos 357-360, quase todo o episcopado se tornara ariano ou semiariano, como resultado dos seguintes eventos: em 357, o Papa Libério assinou uma das formulações ambíguas de Sirmium, em que o termo “homoousios” foi eliminado. Além disso, o Papa, num movimento escandaloso, excomungado Santo Atanásio. Santo Hilário de Poitiers foi o único Bispo que se atreveu a censurar o Papa Libério severamente por esses actos ambíguos. Em 359, os sínodos paralelos do episcopado ocidental, em Rimini, e do episcopado oriental, em Selêucia, tinham aceitado as fórmulas exclusivamente arianas, que eram ainda piores do que a fórmula ambígua assinada pelo Papa Libério. Descrevendo a confusão daqueles tempos, São Jerônimo disse: “Todo mundo ficou surpreso ao perceber que eles haviam se tornado arianos” (“Ingemuit totus orbis, et arianum se esse miratus est“: Adv Lucif, 19).
Indiscutivelmente, no nosso tempo, a confusão já está se espalhando no que diz respeito à disciplina sacramental para casais divorciados e recasados. Há, portanto, embasamento muito real para supor de que essa confusão pode chegar realmente a vastas proporções, se alguém deixar de propor e proclamar a seguinte fórmula do Magistério universal e infalível: “A reconciliação pelo Sacramento da Penitência, o qual abriria o caminho para a Eucaristia, só pode ser concedido àqueles que assumem a obrigação de viver em plena continência, isto é, de abster-se dos actos próprios dos cônjuges” (João Paulo II, Familiaris Consortio, 84). Esta fórmula é, infelizmente e incompreensivelmente, ausente na AL. No entanto, a exortação apostólica inexplicavelmente contém a seguinte declaração: “Nestas situações, muitos, conhecendo e aceitando a possibilidade de conviver «como irmão e irmã» que a Igreja lhes oferece, assinalam que, se faltam algumas expressões de intimidade, «não raro se põe em risco a fidelidade e se compromete o bem da prole»” (AL, 298, n. 329). Esta declaração deixa a impressão de uma contradição com o ensino perene do Magistério universal, como formulada na passagem citada da Familiaris Consortio 84.
Há uma urgente necessidade de que a Santa Sé confirme e reproclame a fórmula citada na Familiaris Consortio 84, talvez sob a forma de uma interpretação autêntica da AL. Esta fórmula pode ser vista, em certa medida, como o “homoousios” dos nossos dias. A falta de uma confirmação formal e explícita da fórmula da Familiaris Consortio 84 por parte da Sé Apostólica poderia contribuir para maior confusão no que diz respeito à disciplina sacramental, com as subsequentes repercussões graduais e inevitáveis em matéria doutrinal. Isto conduziria a uma situação em que seria possível, no futuro, aplicar a seguinte asseveração: “Todo mundo ficou surpreso ao descobrir que o divórcio tinha sido, na prática, aceito” (“Ingemuit totus orbis, et divortium in praxi se accepisse miratus est“).
A confusão na disciplina sacramental em relação ao divorciados e recasados, com suas implicações doutrinárias inevitáveis, estaria em contradição com a natureza da Igreja Católica, tal como foi descrito por Santo Irineu no século II: “A Igreja, tendo recebido este ensinamento e esta Fé, embora espalhados por todo o mundo, mantém-los com cuidado, como que habitasse numa única casa, e [neles] crê igualmente, como se tivesse uma só alma e um só coração, e anuncia-os, ensina-os e transmite-os, com voz unânime, como se tivesse apenas uma boca” (Adversus hæreses, I, 10, 2).
A Sé de Pedro, isto é, o Soberano Pontífice, é a sustentadora da unidade da Fé e da disciplina sacramental apostólica. Avaliando a confusão acerca da prática sacramental em relação aos divorciados e recasados e as variadas e divergentes interpretações da AL entre padres e Bispos, pode-se considerar justificado o pedido de explicação ao nosso amado Papa Francisco, o Vigário de Cristo, o “doce Cristo na terra” (Santa Catarina de Sena), para ordenar a publicação de uma interpretação autêntica da AL, que deve conter, necessariamente, a declaração explícita do princípio disciplinar do Magistério universal e infalível relativo à admissão de casais divorciados e recasados aos Sacramentos, de acordo com a formulação na Familiaris Consortio 84.
Na grande confusão ariana do século IV, São Basílio Magno fez um apelo urgente para o Papa de Roma, pedindo-lhe para dar de sua própria boca uma direção clara, de modo a, finalmente, garantir a unidade no pensamento da Fé e da Caridade (cf. Ep. 70).
Uma interpretação autêntica da AL pela Sé Apostólica traria para toda a Igreja (“claritatis lætitia”) a alegria da clareza. Tal clareza garantirá a alegria do amor (“lætitia amoris”), um amor e uma alegria que não seria “de acordo com as mentes dos homens, mas com a de Deus” (Mt 16,23). E isso é o que garante a alegria, a vida e a salvação eterna dos divorciados e recasados, e de todos os homens.
† Athanasius Schneider, Bispo auxiliar da Arquidiocese de Santa Maria em Astana, Cazaquistão
in pelafecatolica.com


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terça-feira, 26 de abril de 2016

A guerra dos mitos - Guerra dos Tronos vs. Senhor dos Anéis

A imersão na corrupção e no mal são mesmo a marca da boa literatura?

"Chegou a altura de espetar uma faca no coração de J.R.R. Tolkien e de O Senhor dos Anéis". Foi isto que disse Dana Jennings em 2011 no New York Times, a frase mais explícita numa guerra literária que já há muito tempo fugiu dos caminhos normais do mundo da fantasia para a consciência popular.

"Mr. Martin [não é] o Tolkien americano, como alguns dizem", continua Jennings, "Ele é muito melhor que isso." Quem é que lidera a voz autêntica da fantasia moderna: J.R.R. Tolkien ou George R. R. Martin? O grito de guerra, "Tolkien está morto, longa vida a George Martin", diz muito sobre o estado da nossa cultura e o papel da fantasia na sociedade.

Martin tem sido aclamado pelos críticos como um novo paradigma cultural. Como escreveu Anne Hobson no The American Spectator, Martin "está a iniciar um género de neo-fantasia para milhões de leitores". Apesar de ter publicado pela primeira vez em 1976, Martin tornou-se verdadeiramente famoso na década passada com a publicação da sua série de fantasia A Song of Ice and Fire e a sua posterior transformação nos fenómenos de sucesso da série Game of Thrones da HBO TV.

A acção passa-se em Westeros, um mundo mitológico envolvido numa guerra feroz. Na cultura popular dos dias de hoje, tornou-se tão familiar como a Terra Média. Quando nasceu o Príncipe de Cambridge, o filho do Príncipe Harry e de Kate Middleton, o Twitter encheu-se com nomes como Joffrey e Tyrian, duas das personagens de Martin que são respectivamente detestadas e amadas.

Passagens dos livros, como as palavras assustadores de Ned Stark, "winter is coming", tornaram-se tão conhecidas no léxico moderno como as palavras de Gandalf "You shall not pass". O Iron Throne, a sé de poder do mundo de Martin, tornou-se um símbolo de tirania e crueldade, usado em críticas e sátiras ao governo em editoriais por todo o mundo. O Game of Thrones é a série de TV com mais downloads na história e está agora a caminho da quarta temporada, assegurando a Martin uma audiência de milhões [NT: confirma-se].

E ele ainda nem acabou a série nos livros! Com uma indústria por trás dele e um culto que o segue, Martin é o mais invejado no mundo literário.

Apesar de Martin saber contar uma boa história, tecendo brilhantemente os seus complexos enredos com histórias familiares (sem se tornar simplório), o seu apelo depende de mais coisas do que simplesmente uma prosa de qualidade. Crueldade brutal, sexo e infidelidade são as grandes marcas do mundo de Martin. Isto torna-o, dizem, bem mais realista do que Tolkien. Como diz Lev Grossman, o autor de fantasia que chamou pela primeira vez a Martin "o Tolkien americano", 

"O que ... distingue Martin, e o marca como uma força principal na evolução da fantasia, é a sua recusa em abraçar a visão do mundo como a luta maniqueia entre o Bem e o Mal. A obra de Tolkien tem uma força imaginativa enorme, mas têm que ir procurar a outro lado para encontrar uma complexidade na moral."

Claramente que não há "bonzinhos" em Westeros. As personagens ou são honráveis ou traiçoeiras conforme o dia da semana. Os bons ficam em último e os que se regem por princípios nobres são manipulados e/ou decapitados. Simpatizamos com os personagens imorais como os incestuosos Lannisters, Varys o Eunuco e uma variedade de assassinos, violadores e sadistas. Nada é tabu.

A narrativa de Tolkien permitida para pais e filhos, dizem os críticos, sobrecarregou o género da fantasia com uma "Disneyland da Idade Média". Martin é mais significativo porque é moralmente ambíguo.

Apesar de ser um admirador de Tolkien, Martin nota que "todo o conceito de Dark Lord, e dos tipos bons a lutar contra os tipos feios, o Bem versus Mal ... tornou-se uma espécie de desenhos animados." A fantasia não precisa mais de Dark Lords ou inimigos terríveis, porque "na vida real, o aspecto mais difícil da batalha entre o bem e o mal é determinar qual é qual."

"Sempre gostei de personagens cinzentas", disse Martin numa entrevista em 2001, "E quanto aos deuses, nunca fiquei satisfeito por nenhuma das respostas que são dadas. Se de facto existe mesmo um Deus que é amor, porque é que o mundo está cheio de corrupção e violência? Porque é que nós até temos dor? ... Porque é que a agonia é uma boa forma de lidar [com a morte]?"

A "guerra dos tronos" é uma visão cínica da política com os seus ataques pelas costas, luxúria desenfreada, aliados inconstantes e famílias traiçoeiras. O mundo anárquico de Westeros é fundamentalmente definido pela escada para o poder. "A alguns é dada a oportunidade de subir mas agarram-se ao seu mundo ou aos deuses ou ao amor - ilusões! Só a escada é que é real; a subida é tudo o que existe", diz o imoral e calculista supremo Lord Baelish.

Neste nevoeiro moral não há espaço para a nobreza e a beleza. "De todas as bonitas mentiras cruéis que vos dizem, a mais cruel de todas é a que se chama amor", escreveu Martin na sua short story "Meathouse" em 1976. Mas a fantasia "realista" está limitada às dimensões mais básicas da experiência humana. É como ler um jornal que só tem artigos sobre Ariel Castro, o violador de Cleveland, os bombistas suicidas da al-Qaeda e as torturas de Guantanamo. É difícil de imaginar alguém a querer viver para sempre no Westeros brutal e sádico.

Mas será que Tolkien é mesmo menos realista?

Tolkien zangava-se com a ideia de que as suas Free Peoples [NT: os seres que se opuseram a Sauron] eram inequivocamente boas e sem falhas: "preguiça e estupidez entre os Hobbits, orgulho... entre os Elfos, rancor e cobiça nos corações dos Anões e loucura e maldade entre os "reis dos Homens", e traição e desejo de poder mesmo entre os 'Feiticeiros'", disse ele.

Nem sequer a vitória é sempre certa. Existe uma tristeza assombrosa em O Senhor dos Anéis que, com a queda de Beleriand em o Silmarillion, foi mal interpretada pelos críticos como sendo derrotista. De facto, a sua obra até inclui tortura e brutalidade, assim como indícios de violação e chacinas, especialmente na saga Os Filhos de Húrin. Eu diria que a sua representação do mal está entre as melhores na literatura fantástica, mesmo sendo discreta. Enfeitar o mal com selvajaria e depravação não o faz necessariamente mais assustador ou até mais convincente.

A Terra Média mostra "a beleza contra um horror cruel, a tirania contra a dignidade dos reis, uma liberade moderada com um consentimento contra a compulsão que há muito perdeu qualquer finalidade a não ser o mero poder"; ela cobre todo o tipo de experiências de vida, incluindo a nobreza, a bondade e a lealdade.

Na verdade, chamar "maniqueu" ao tratamento que Tolkien faz do mal é uma tolice. 

Tolkien estava profundamente preocupado com a questão das qualidades corruptoras e viciantes do mal e do poder. "O bem e o mal não mudaram desde o ano passado; nem são uma coisa entre os elfos e os anões e outra entre os homens. Compete ao homem distingui-los" diz Aragorn, a quem Eomer responder "como é que um homem pode decidir o que fazer em tais alturas?".

Martin e Tolkien divergem porque a fantasia não é apenas um género de literatura, mas uma visão da vida. O propósito da literatura é revelar os segredos do coração humano. As histórias míticas ajudam-nos a perceber a mortalidade do homem e as suas limitações. Quais são os segredos de Martin? Que o mal é mais "realista" que o bem? Martin defende que a fantasia é "escrita na linguagem dos sonhos" - mas quais são exactamente os sonhos de Martin?

Tolkien, que perdeu os seus melhores amigos na carnificina de Somme, na 1ª Guerra Mundial, percebeu bem melhor a complexidade moral do que o seu duplicado americano imagina. Ao contrário de Martin, Tolkien consegue cantar a escala toda, desde os baixos aos sopranos. Criar um mal convincente não é mais difícil do que ler os jornais todos os dias; criar um bem convincente é bem mais difícil. Tolkien foi capaz de encher as suas obras com um objectivo transcendente - algo que é raro na literatura.

Mais importante, este desejo [do bem] não é um fraco encanto pós-moderno, mas pode mesmo ser satisfeito. A fantasia de Tolkien está centrada neste final feliz a que ele chamou "eucatástrofe", uma "alegria súbita". O Senhor dos Anéis, como exemplo mais conhecido, é conduzido pela esperança - uma negação de uma "derrota final universal", dando "um vislumbre de alegria, alegria por trás das paredes do mundo, cheias de tristeza". Martin é um materialista, cuja maior proximidade com a guerra e a depravidade humana são os jogos de computador e livros de banda-desenhada. O seu enredo e personagens são complexos e cheios de viravoltas sangrentas e sexuais, mas arrastam-se como uma telenovela negra e desesperante. Mas será que, sem a bondade e a beleza, o seu mundo é realista?

Toda a literatura que permanece é realista, porque reflecte a verdade da condição humana geração atrás de geração. O meu palpite é que Tolkien, independentemente do que disserem os críticos, vai estar sentado no trono da fantasia daqui a cem anos enquanto que George Martin vai ser despedido como um praticante de uma moda de um pessimismo sujo do início século XXI.

Originalmente da Terra Média (Nova Zelândia), Rowan Light está a estudar história na Universidade de Sydney.

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