terça-feira, 12 de março de 2013

A crise terrível – João César das Neves

A Igreja passa por uma crise terrível. Por isso o Papa renunciou. Esse gesto revolucionário abre uma oportunidade para repensar tudo a fundo." Estas são, em resumo, as três teses básicas que, no simplismo habitual, a comunicação social tem divulgado sobre este tema.

Como de costume, a imprensa produz hipóteses, elabora raciocínios e outorga conclusões, sempre com pouca preocupação pela realidade. Por isso é tantas vezes apanhada de surpresa. O seu permanente sobressalto previne-nos para não levar a sério o que os media dizem sobre uma instituição que os ultrapassa espantosamente. Estas teses chegam para mostrar isto.

A suposta "crise terrível" nunca passou de uma invenção de comentadores exaltados. Por acaso a Igreja passa por uma fase particularmente feliz da sua longa história. Uma sequência de papas santos e brilhantes, unidade do clero à volta do magistério, ausência de perseguições abertas nas democracias e enorme aumento de fiéis têm sido raros nos séculos anteriores. Além disso, o vasto e profundo processo de reforma criado pelo último Concílio, sem par em qualquer instituição mundial, torna a Igreja mais ágil, sólida e diligente.

São exactamente estes aspectos, constatáveis numa análise sociológica séria, que levam muitos adversários assustados a apregoar a tese da "crise terrível". O sucesso estrondoso das múltiplas iniciativas de João Paulo II, que manteve o mundo suspenso durante 27 anos, foi continuado pelo sucesso também espantoso das iniciativas de Bento XVI. Com estilo totalmente diferente, ficou provado que a causa não era o inimitável génio pessoal do papa polaco, mas uma força muito mais poderosa que alimenta todos os papas, por serem papas.

Até o escândalo de pedofilia, prova central da tese da "crise terrível", foi mal compreendido. Primeiro porque ao lançar a campanha, os jornais, hostis ou simplesmente oportunistas, fizeram um favor precioso à Igreja, eliminando do seu seio alguns criminosos horríveis. Depois, o truque de suscitar ao mesmo tempo casos muito antigos, de locais muito longínquos, pode impressionar algum tempo, mas acaba por falhar. Qual é o interesse em fazer manchetes de acontecimentos de há 40 anos? Só face à Igreja é que os jornais chamam notícias a coisas acontecidas antes de ter nascido o jornalista que as relata. Hoje, fazendo uma devassa à vida de qualquer clérigo, os jornais prestam um excelente serviço à Igreja, mas maçam os leitores. O que assusta é só atenderem aos poucos casos de pedofilia dentro da Igreja, sem ligar aos de fora, que são a esmagadora maioria.

O outro caso que se diz motivar a renúncia do Papa prova também o oposto do que dizem. Um punhado de criminosos, aliás mais louvados que censurados, entrou na intimidade da Santa Sé sem conseguir encontrar nada de realmente demolidor. Que outro dirigente ou organização, política ou económica (incluindo a administração e a redacção de jornais e televisões), sofrendo uma fuga de informação privada com tal vastidão e detalhe, sairia tão bem quanto o Papa e a Cúria? Qualquer inspecção aos papéis privados de governos e empresas conseguiria provar tão pouco? Se se olhassem ao espelho, aqueles que comentam com ar severo o caso deveriam admitir que, apesar dos pecadilhos revelados, as fugas demonstram antes a virtude da Igreja. A «crise terrível» afinal é outra.

De facto o mundo passa por uma crise terrível. Bento XVI sempre esteve consciente dos verdadeiros dramas, e nunca se distraiu com pormenores secundários, como as tricas que ocupam os comentadores. Consciente da missão central que lhe compete, salvar a humanidade neste momento tão difícil, achou que se deveria dedicar à tarefa fundamental, a oração diante de Deus, entregando a alguém mais jovem a condução dos assuntos operacionais.

O gesto profético de Bento XVI dá a oportunidade à Igreja, não de repensar tudo, como dizem os estranhos, mas de serenamente retomar a função que lhe compete. Essa não precisa de ser repensada pois foi-lhe entregue há muitos anos, junto a um lago.


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