domingo, 29 de junho de 2014

Uma Questão de Semântica


Diariamente somos confrontados com questões importantes e que requerem reflexão. Não raras vezes o que sucede é que estamos a analisar o nome que damos à coisa que queremos analisar, em lugar de analisarmos a coisa à qual demos um nome.

Surgiu recentemente - e deu logo azo a discussão – uma notícia sobre uma peça elaborada pelo artista Élsio Menau, antigo aluno da Universidade do Algarve, que foi apreendida pela GNR por alegadamente se tratar de um ultraje à Bandeira Nacional. Trata-se de uma bandeira de Portugal “enforcada” numa estrutura de madeira que esteve exposta num terreno particular há cerca de um ano.

Algumas pessoas aplaudiram a acção da força de segurança ao abrigo do nº 1 do artigo 332 do Código Penal (que sanciona ultrajes e desrespeitos pelos símbolos nacionais). Outros colocaram questões jurídicas e processuais sobre o tema. Mas logo surgiram muitos que vieram defender o artista invocando a liberdade de expressão.

Ora, como não sou jurista, abstenho-me de avaliar a validade jurídica da questão. No entanto, acho que é interessante pensar um pouco sobre a questão da suposta liberdade de expressão do artista.

Permitam-me, antes de mais, fazer aqui um pequeno parêntesis já que estudei do 5º ao 12º ano no Colégio Militar, escola que incute nos seus alunos valores como o patriotismo, o amor à Pátria, o respeito pela hierarquia e outros tantos que, como estes, parecem ter caído em desuso.

No Colégio ensinam-nos desde pequenos que, quando passa o Estandarte Nacional ou se canta o hino, nos devemos colocar-se em “sentido” (um termo militar que designa uma posição de respeito). No Colégio ensinam também que não se usa uma bandeira como saia, como lenço para o cabelo ou como capa à moda do super-homem. Aprendemos que há um procedimento correcto para dobrar a bandeira e todo um conjunto de regras que se devem ao significado que aquele aparente pedaço de tecido encerra.

São habituais os casos em que os alunos mais pequenos abordamos seus superiores  confusos sobre algum desrespeito que puderam observar em relação a esta matéria, por ir contra aquilo que aprenderam nas suas aulas de instrução militar.

Com efeito, poderá provocar estranheza a alguns, mas verifica-se que os alunos sofrem um grande choque quando ao fim de alguns anos de formação rígida reparam que o mundo fora dos muros do Colégio é muito diferente daquilo que lhes ensinaram na sua escola bicentenária.

As pessoas não fazem estas coisas “por mal”, nem são más pessoas por causa disso. No entanto, há muito tempo que em Portugal não existe uma cultura de patriotismo, muito provavelmente devido ao estigma que ainda muita gente tem ao associar patriotismo ao nacionalismo e o nacionalismo ao Estado Novo. Não fomos suficientemente razoáveis para entender que nem todos os traços que caracterizavam o Estado Novo eram negativos e decidimos abolir tudo aquilo que pudesse, de alguma forma, estar relacionado com o antigo regime.

Há um outro factor que agrava este desligar do respeito institucional pelos nossos símbolos: o relativismo em que nos vimos mergulhados e que associamos erradamente à liberdade. Vive-se, pois, um tempo onde tudo é permitido e parece que nada é condenável, porque há sempre um pretexto que legitima aquilo que se quer condenar. Frequentemente esse pretexto é semântico:

Enforcar uma bandeira é arte; abortar é liberdade da mulher; insultar a crença dos outros é liberdade de expressão; ser malcriado é ser hiperactivo e assim por diante.

Assim, sempre que algum tema sensível é discutido, aparece algum opinion maker que trata de mudar a designação daquilo que estamos a discutir e, a partir desse ponto, começa-se a discutir essa designação em vez de se escrutinar aquilo que realmente está em causa.

Vamos levar esta questão ao ridículo para que, sem perda de generalidade, se compreenda melhor o que quero dizer. Imagine o leitor que um determinado indivíduo decide pegar numa pedra e atirar à cabeça de outro indivíduo. Qualquer pessoa no seu perfeito juízo sabe que aquela atitude não é correcta. Legalmente não é permitido agredir outras pessoas; moralmente também sabemos que devemos respeitar a integridade física do outro ser; até culturalmente somos educados a não chatear as outras pessoas. Imagine-se então que há um opinion maker na rua a testemunhar o incidente que depois descreve na sua crónica dizendo que, ao contrário do que os “ultraconservadores” andam a dizer, aquilo não se trata de uma agressão, mas sim da liberdade do primeiro indivíduo atirar o que bem entender para onde quiser e que aquele que ficou lesionado não tinha nada que estar a passar no momento em que foi atirada aquela pedra num exercício exemplar de liberdade e livre arbítrio.

Inspirado nesta crónica, um grupo de activistas decide criar uma página de Facebook a defender o lançador de calhaus e a censurar todos aqueles que o querem privar do seu exercício de liberdade.

Enfim, não vale a pena desenvolver mais esta história porque todos conseguimos facilmente imaginar um desfecho curioso.

Este conto não tem sentido nenhum (ou era esse o meu objectivo), mas ilustra bem aquilo que repetidamente acontece sem nos apercebermos. Apliquemos este método a uma situação mais próxima da realidade:

Legalmente não se pode matar um ser humano; moralmente (acredito) ninguém coloca a questão e culturalmente, pelo menos em Portugal, matar vai contra qualquer costume ou tradição. Dito isto seria de esperar que  qualquer atentado à vida de uma criança, para além de ilegal, fosse punível. Mas o que é que se verifica na realidade?

Verifica-se que alguém decidiu dizer que a mulher tem o direito a não querer ter filhos e rapidamente,  ficou decidido que se podem matar bebés.

É um exemplo de algo conseguido à custa de um raciocínio falacioso e manipulador de se tão simples quanto dar um nome diferente a uma determinada realidade. A partir deste ponto analisa-se se uma mulher tem o direito a querer ou não ter um filho e facilmente se convence uma percentagem significativa de pessoas a votarem favoravelmente esta matéria num referendo. Afinal, é de um “direito” que se trata.

A verdadeira questão, essa, ficou para trás, junto de todo um conjunto de elementos que perante a força da palavra “liberdade” ou “direito” são esquecidos.

Por simplificação até podemos considerar a hipótese académica de uma mulher ter o direito de, estando grávida, não querer ser mãe. Mesmo assumindo isto como verdade, continua a ser verdade que matar não é correcto nem moral, nem cultural nem legalmente. Além disto, podem ainda colocar-se questões como “se não está disposta a ser mãe, por que é que está disposta a ter relações conjugais?”. Ao fazer esta pergunta, reparamos que já está instituído na sociedade que é lícito ter relações sexuais com qualquer pessoa, porque alguém decidiu que  isso se trata de “liberdade de escolha”.

Continuando a aprofundar a análise, chegamos a um ponto em que percebemos que questões fundamentais da nossa identidade estão camuflados por toda uma engenhosa quantidade de supostas liberdades e designações um tanto ou quanto genéricas que ao longo do tempo foram relativizado aquilo que durante vários séculos definiu o nosso ethos como humanos.

Onde é que entra o artista nesta análise? É que, até podemos concordar que a mulher tem o direito de decidir se quer ter um filho ou não, tal como podemos considerar que o enforcamento da bandeira é arte. O que não nos podemos esquecer é do exemplo do sujeito que decidiu atirar a pedra à cabeça do outro: onde até pode ser verdade que ele tem a liberdade de arremessar objectos na rua, mas isso não deixa de fazer com que a sua atitude – além de um exercício de liberdade – seja uma agressão premeditada, o que todos assumimos que está errado. Logicamente, daqui se segue que matar uma criança também é errado e ultrajar uma bandeira igualmente, porque uma bandeira não é exactamente a mesma coisa que um pano de cozinha.

Estamos habituados a discutir a forma e assim o conteúdo acaba por ser esquecido. Tenhamos pois o cuidado de procurar entender quando é que numa discussão estamos a analisar o objecto e quando é que estamos a analisar a sua designação.

Bernardo Serrão Brochado

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1 comentário:

João Burgo disse...

Veja este video, explica bem essa questão de semântica ;)
http://youtu.be/YGGgCbM0tWg