Entrava na
sala de aula sem dizer nada, pegava no giz branco e do traço firme das suas alvas
mãos nasciam, sob o escrutínio silencioso de uma turma em suspense, maravilhosos desenhos que exigíamos que se perpetuassem
no quadro negro até ao fim do dia (pelo menos…!). Assim anunciava a sua
presença, seguindo-se a habitual catequese polvilhada de encantadoras histórias,
com a sua voz doce, os olhos de um azul penetrante que pareciam ler-nos a alma
(por certo reminiscências da sua formação em psiquiatria) e o discurso bem-humorado
que lhe era tão característico.
Mas o génio
artístico não cessava no desenho: o Pe. Cardigos tinha também o dom de escrever
numa linguagem poética que, juntamente com a sua imensa cultura literária, faz
com que os seus livros não se leiam, mas se devorem (“E o que mais dói a
Cristo é o afastamento dos crentes do culto eucarístico. Sacrários ignorados,
sacrários que só abrem aos Domingos, sacrários sem o perfume de uma flor[1]…”).
Transmitia-nos a Fé pela razão e pela arte.
A curvatura
abdominal que se adivinhava pela batina era convite certo para, em pequenas, irmos
a correr ao seu encontro e darmos largos abraços, seguidos de um puxão nas
tranças, um beijo na testa e uma bênção, vinda das mesmas mãos que, um dia mais
tarde, nos dariam a Primeira Comunhão.
Veneráveis
mãos que nos fizeram chegar, pela primeira vez, a absolvição e o próprio Jesus;
mas não sem antes nos formar de modo completo e exigente na recta doutrina, e de
nos incutir piedade e amor pela Santa Missa, e uma especial devoção eucarística
que nos marcou de forma indelével.
Ao longo do tempo
fui-me apercebendo que a forma como hoje vivo a Fé, muito a ele devo. Os
pormenores que tinha quando celebrava, a intransigência doutrinal, as orações
que ensinava, as jaculatórias que até hoje nos saem de cor, e as próprias
referências que fazia nos seus textos têm estreita conexão com a familiaridade
que experimento na Missa tradicional e não raras vezes medito nesta
coinci(Provi)dência. Felizmente pude-lhe repetir isto no seu último
aniversário, dando-lhe conta da gratidão eterna que sempre lhe terei.
O Pe. Cardigos
era verdadeiramente mariano, e viveu
sempre sob a égide de Nossa Senhora. Escrevia, nos Mistérios de Maria, “a
nossa vida está ligada a quilómetros de contas passadas pelos dedos de quem nos
quer bem”. Fez de Maria nossa Mãe desde a mais tenra idade, tal como Jesus
a S. João, no Calvário. Calvário que lhe coube em parte com a doença com que
viveu tantos anos, em sofrimento silencioso, mas certamente entregue para a
salvação de muitos.
Encontrar Jesus começa assim: «Tudo aquilo que nos relaciona com Deus é um convite à alegria, à
esperança, ao entusiasmo da juventude. Deste modo o sacerdote ao começar a
Santa Missa segundo o antigo ritual, dirigia-se ao altar dizendo “irei ao altar
de Deus que é a alegria da minha juventude”». Na mesma obra, mais à frente,
a propósito dos Novíssimos acrescenta “ainda
que pareça um paradoxo, a morte dá-nos um grande entusiasmo pela vida. A luz da
morte não se pode esconder sobre debaixo do alqueire da hipocrisia. (…) A morte
reflecte a eternidade sobre a nossa vida presente, mostra o seu valor e
ensina-nos a viver. (…) A nossa maior tentação é não pensar na eternidade, é
encerrar-nos no tempo, num universo fechado, ou pensar que cada um dos nossos
dias é uma ilusão sem sentido. E esquecemo-nos de que no tempo temos de
responder a um chamamento eterno. Não consciencializamos que cada minuto, que
nos foge como água por entre os dedos, tem uma repercussão eterna.” O Pe.
Cardigos será sempre apanágio desta alegria e juventude da alma dos que vivem
em Deus.
“Os
mistérios não se conhecem, reconhecem-se. (…) Há uma diferença entre os
problemas e os mistérios. Defrontamos os problemas para os resolver, não
defrontamos os mistérios porque não podemos. São eles que nos interpelam e nos
comprometem. Hoje em dia, andamos envolvidos e a tentar resolver problemas e
não temos tempo para os mistérios. Vivemos preocupados com o ter, que constitui
um problema e não com o ser, que é um mistério.”[2]
Escrever, em
breves linhas, sobre alguém que nos marcou profundamente a vida é um exercício
injusto e frustrante. Mas um exercício necessário para que nos lembremos da
importância de termos bons e santos sacerdotes, que nos marquem a vida para
sempre, ensinem a reconhecer e contemplar o Mistério e a comprometermo-nos,
unicamente, com o Céu.
Obrigada, Pe.
Cardigos, por ter sido na nossa vida alter
Christus, ipse Christus!
+
Padre António José Serra Cardigos
(15
de Junho de 1937 – 9 de Fevereiro de 2020)
Requiem aeternam dona ei, Domine, et
lux perpetua luceat ei. Requiescat
in pace. Amen.
Catarina Nicolau Campos
9/02/2020
1 comentário:
Que bela partilha e testemunho. Deus receba o padre António Cardigos no Seu Reino.
Sabem indicar onde se pode obter os livros do padre António Cardigos?
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