Em
Traditionis Custodes, o Papa Francisco deu uma ordem. Fá-lo numa altura em que
a autoridade papal está a desmantelar-se como nunca antes. A Igreja há muito
que avançou para uma fase ingovernável. Mas o papa continua a batalhar.
Abandona os seus mais caros princípios – " escuta",
"ternura", "misericórdia"
– que recusam julgar ou dar
ordens. O Papa Francisco é agitado por algo que o perturba: a tradição da
Igreja.
O limitado
espaço de respiração que os antecessores do Papa concederam à tradição
litúrgica já não é ocupado apenas por nostálgicos senis. A Missa Tradicional
Latina também atrai jovens, que descobriram e aprenderam a amar o "tesouro
enterrado no campo", como o Papa Bento XVI chamou à antiga liturgia. Aos
olhos do Papa Francisco, isto é tão grave que tem de ser suprimido.
A
veemência da linguagem do motu proprio sugere que esta directiva chegou tarde
demais. Os círculos que aderem à tradição litúrgica mudaram, de facto,
drasticamente nas últimas décadas. A Missa Tridentina já não é frequentada
apenas por aqueles que sentem falta da liturgia da sua infância, mas também por
pessoas que descobriram de novo a liturgia e estão fascinadas por ela – incluindo muitos convertidos, muitos que há
muito se encontravam afastados da Igreja. A liturgia é a sua paixão e
conhecem-na em todos os seus detalhes. Há muitas vocações sacerdotais entre
eles.
Estes jovens não frequentam apenas os seminários mantidos pelas
fraternidades sacerdotais da tradição. Muitos deles seguem a formação habitual
para o sacerdócio, e estão no entanto convencidos de que a sua vocação é
reforçada precisamente pelo conhecimento do rito tradicional. A curiosidade
sobre a suprimida Tradição católica cresceu, apesar de muitos terem retratado esta
tradição como obsoleta e sem consistência. Aldous Huxley ilustrou este tipo de
assombro no Admirável Mundo Novo, no qual um jovem da elite moderna, sem
sentido da história, descobre as riquezas transbordantes da cultura pré-moderna
e fica encantado por elas.
A
intervenção do papa pode impedir o crescimento da recuperação litúrgica da
Tradição durante algum tempo. Mas ele só poderá detê-la durante o resto do seu
pontificado. Porque este movimento tradicional não é uma moda superficial.
Demonstrou nas décadas da sua repressão anterior ao motu proprio Summorum
Pontificum de Bento XVI que subsiste uma
devoção séria e entusiástica em relação à inteira plenitude do catolicismo. A
proibição do Papa Francisco irá suscitar resistência naqueles que ainda têm as
suas vidas pela frente e não permitirão que o seu futuro seja obscurecido por
ideologias obsoletas. Não foi bom, mas também não foi sensato, sujeitar a
autoridade papal a este teste.
O Papa
Francisco proíbe as missas no rito antigo em igrejas paroquiais; exige aos
padres que obtenham permissão para celebrar a missa antiga ; exige mesmo aos
padres que ainda não celebraram no rito antigo que obtenham essa permissão não
do seu bispo, mas do Vaticano; e exige um exame de consciência dos
participantes na missa antiga. Mas o motu proprio Summorum Pontificum de Bento
XVI raciocina num plano totalmente diferente.
O Papa Bento XVI não
"permitiu" a "Missa antiga", e não concedeu qualquer
privilégio para a celebrar. Numa palavra, não tomou uma medida disciplinar que um
sucessor possa revogar. O que foi novo e surpreendente no Summorum Pontificum
foi o facto de declarar que a celebração da Missa antiga não necessita de
qualquer permissão. Nunca havia sido proibida porque nunca poderia ser
proibida.
Poder-se-ia
concluir que aqui encontramos um limite fixo e insuperável para a autoridade de
um Papa. A Tradição está acima do Papa. A antiga Missa, enraizada nas
profundezas do primeiro milénio cristão, está, por princípio, para além da
autoridade pontifícia de proibir. Muitas disposições do motu proprio do Papa
Bento XVI podem ser postas de lado ou modificadas, mas esta decisão magisterial
não pode ser tão facilmente abolida. O Papa Francisco não tenta fazê-lo -
ignora-a. Ela ainda se mantém depois de 16 de Julho de 2021, reconhecendo a
autoridade da Tradição que todo o padre tem o direito moral de celebrar o rito
antigo, nunca proibido.
A maioria
dos católicos do mundo não se interessará de todo pela Traditionis Custodes.
Tendo em conta o pequeno número de comunidades tradicionalistas, a maioria
dificilmente compreenderá o que se está a passar. De facto, temos de nos
perguntar se o Papa não tinha tarefas mais urgentes – no meio da crise dos abusos sexuais, dos
escândalos financeiros da Igreja, dos movimentos cismáticos como o caminho
sinodal alemão, e da situação desesperada dos católicos chineses – do
que suprimir esta pequena e devota comunidade.
Mas os
adeptos da Tradição devem conceder isto ao Papa: Ele leva a Missa tradicional,
que data pelo menos da época de Gregório Magno, tão a sério como eles. Ele,
contudo, julga-a perigosa. Ele escreve que os papas, no passado, criaram
repetidas vezes novas liturgias e aboliram as antigas. Mas o oposto é verdade.
Em vez disso, o Concílio de Trento prescreveu o antigo missal dos papas romanos
– que tinha surgido na Antiguidade tardia –
para uso geral, porque este era o único que não tinha sido desvirtuado
pela Reforma.
Talvez a
Missa não seja o que mais preocupa o Papa. Francisco parece simpatizar com a
"hermenêutica da ruptura" – essa escola teológica que afirma que, com
o Concílio Vaticano II, a Igreja rompeu com a sua tradição. Se isso for
verdade, então, de facto, qualquer celebração da liturgia tradicional deve ser
impedida. Enquanto a antiga Missa latina for celebrada em qualquer garagem, a
memória dos dois mil anos anteriores não terá sido extinta.
Esta
memória, contudo, não pode ser erradicada pelo exercício tosco do positivismo
jurídico papal. Ela voltará uma e outra vez, e será o critério pelo qual a
Igreja do futuro terá de se medir a si própria.
Publicado em: First Things
(Tradução: Maria Armanda de Saint-Maurice)
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