Conta-se que um nosso contemporâneo tinha péssima voz e ainda pior
ouvido. Inconsciente das suas incapacidades canoras e auditivas,
arriscava as mais arrojadas escalas, com terríveis resultados. Numa
ocasião, um desesperado ouvinte, com escassa predisposição para o
martírio, não aguentou mais e gritou-lhe:
- Cale-se! Essa nota não existe!
Uma nota inexistente é, como é óbvio, uma contradição nos termos, mas
serve como exemplo de uma hipótese inexistente, como é a tese de que,
negando a divindade de Cristo, também o não quer condenar, afirmando que
era um bom homem. Ora acontece que, em termos meramente racionais ou
lógicos, essa é a única hipótese que não existe.
A historicidade de Jesus de Nazaré não pode ser honestamente posta em
causa, mas só os cristãos estão dispostos a reconhecer-lhe a condição
divina que a sua fé afirma. Ateus, agnósticos e crentes de outras
religiões não o têm por Deus, mas talvez também não por um impostor. Com
efeito, até os mais incrédulos são sensíveis à beleza e à sabedoria dos
seus ensinamentos e à exemplaridade da sua vida e por isso seguramente
estariam dispostos a afirmar que Cristo foi um bom homem, sem se
aperceberem da contradição de uma tal conclusão.
Com efeito, a personagem, que a história sagrada e profana conhece como
Jesus de Nazaré disse ser Deus e, como tal, não só realizou prodígios -
os milagres de que falam os Evangelhos - como aceitou ser adorada pelos
homens. Uma tal afirmação só admite duas possibilidades: ser verdadeira
ou falsa. Em nenhum dos casos, contudo, é compatível com a tal hipótese
de Jesus ser apenas um homem bom.
De facto, se é verdade que Cristo é Deus, Jesus não foi simplesmente um
homem bom, mas o ser divino, o próprio Deus encarnado, como afirma a fé
cristã. A alguém que o chamou bom Mestre, Ele próprio disse que só Deus
é bom. Mas nunca nenhum homem bom se atribuiu a si mesmo a condição
divina. S. Paulo, quando confundido com uma divindade pagã, não permitiu
que lhe fosse prestado culto. E S. João, quando se quis prostrar diante
do anjo que se lhe revelou, foi por este admoestado, porque só a Deus é
devida adoração. A mesma que Jesus de Nazaré recebeu e aceitou dos seus
discípulos, precisamente por ser Deus. Se o não fosse, uma tal
veneração teria sido idolátrica e, como tal, digna da pena capital.
Mas se Cristo não é Deus, tendo dito que o era, só poderia ser um
mentiroso. Não cabe a hipótese de que fosse um alienado e, como tal,
inimputável, porque nesse caso ninguém do seu tempo, ou depois, o teria
tomado a sério, nem para o seguir nem para o condenar. Mas, se fosse de
facto uma pessoa falsa, não seria decididamente um homem virtuoso, mas
um blasfemo. Foi aliás por esta razão que foi condenado à morte pelo
sinédrio. Tinham razão os que exigiram a sua morte, como réu confesso de
tamanha ofensa à verdade e à dignidade divina?!
Ante Cristo, só cabem três atitudes: a indiferença dos néscios, o ódio
ou a adoração. Os primeiros, como as avestruzes, enterram a cabeça na
areia, abdicando da sua condição racional. Os outros, por força da
razão, ou reconhecem que Jesus de Nazaré é Deus ou só podem tê-lo por um
impostor. A cómoda hipótese do Jesus bonzinho, que daria tanto jeito
aos que não se querem comprometer, porque o não querem seguir, nem
condenar, pura e simplesmente não existe, como a desafinada nota do mau
cantor.
Ou se entende que Cristo é um falsário e um mentiroso e,
consequentemente, é justa e razoável a exigência da sua condenação, ou
se aceita a sua divindade e se cai a seus pés, confessando: meu Senhor e
meu Deus! in jornal i
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