Os demónios existem e actuam, mesmo que neles não se acredite. Seja ele um Charlie mexicano, ou francês, o melhor é não lhe dar troco. É “assassino desde o princípio”, alguém em quem “não há verdade".
O princípio do mal é um absurdo, porque o mal absoluto é o nada e o nada não é. O príncipe do mal, pelo contrário, existe e – espantem-se! – é bom. De todos os modos, o melhor é mesmo não acreditar nele …
O diabo está na moda: não só uma reportagem do Observador deu conta de um jogo que está a fazer furor no Twitter e que alegadamente permite contactar Charlie, um espírito mexicano do mal, mas também o i fez recentemente uma grande entrevista a um exorcista português.
Que o demónio existe, não é pacífico. Muitas pessoas o negam, remetendo a sua existência para o imaginário de antigas fábulas ou de inverosímeis mitos religiosos. Aliás, ele próprio, o maligno, também afirma o mesmo, ou seja, que não existe, por uma razão que, segundo Jesus Cristo, lhe é muito própria: ele é, por definição, “mentiroso e pai da mentira” (Jo 8, 44).
Uma coisa é o princípio do mal e outra, muito distinta em termos filosóficos, o príncipe do mal. O mal, como entidade, é uma contradição, porque a realidade do mal é a do não-ser, pelo que o mal absoluto seria o nada e o nada, como diria La Palice, não é. O maniqueísmo afirmava a existência de um princípio do mal, oposto dialecticamente ao princípio do bem, uma tese filosófica a que Agostinho de Hipona aderiu e que depois abandonou, como contrária à razão e, portanto, à religião verdadeira, o Cristianismo.
Outra coisa é o príncipe do mal, ou demónio. Esse sim, existe e – espantem-se! – é bom. Tudo o que existe é bom, ou seja, tem a bondade inerente à sua realidade. Deus não cria coisas más, logo todas a criaturas são ontologicamente boas (Catecismo da Igreja Católica, nº 391). A bondade do diabo, que foi criado anjo bom, é uma evidência metafísica, que só poderia ser negada pela hipótese de um Deus mau, o que seria, mais uma vez, uma evidente contradição.
Que o demónio tenha essa bondade original não impede, contudo, que faça o mal. De modo análogo, todos os seres humanos são bons, mas não assim todas as suas acções. A maldade do diabo, como a dos homens, reside portanto no mal que fazem e não decorre de um erro na sua criação, nem de uma sua perversão essencial.
Negar a bondade do demónio só poderia fazer sentido para quem não reconhecesse a bondade de Deus e a de todas as suas obras, porque também os espíritos malignos são criaturas. Negar a maldade das acções diabólicas não faz sentido, porque implicaria negar também a realidade do mal no mundo.
Os Evangelhos referem, com frequência, o demónio e a sua acção. Cristo foi tentado e libertou muitos possessos, mas evitando sempre o sensacionalismo, que contradiz a deontologia do ministério pastoral. Por isso, também a Igreja católica fez, desde a sua fundação, e continua a fazer, com a necessária descrição, exorcismos, sempre de modo absolutamente gratuito e recorrendo apenas a meios sobrenaturais.
Tanto a ciência médica como a teologia moral distinguem, claramente, o que é do âmbito psiquiátrico e o que é do foro espiritual. “Por isso, antes de se proceder ao exorcismo, é importante ter a certeza de que se trata de uma presença diabólica e não duma doença” (Catecismo da Igreja Católica, nº 1673). Nenhuma causa psíquica pode explicar que uma pessoa, que não sabe latim, se expresse nessa língua, ou que revele dados da consciência de alguém que só o próprio, Deus e, pelos vistos, o demónio conhecem.
Se é verdade a existência do maligno e a sua acção, mais importante é, contudo, afirmar a bondade de Deus e o seu amor por todas as criaturas. O Evangelho é a boa nova e a vida cristã uma experiência felicíssima de amor a Deus e ao próximo. Um cristão coerente não pode negar a existência do diabo, mas também não pode ceder à tentação do temor, porque até essa tenebrosa realidade é razão de alegria e de esperança.
Com efeito, a existência do príncipe do mal é também uma boa notícia: Chesterton ficou muito aliviado quando soube que as ‘suas’ tentações, afinal, não eram dele, mas do diabo. São Paulo, que se sentia por vezes esbofeteado por um anjo de Satanás (cf. 2Cor 12, 7), alegrava-se nas suas fraquezas, porque sabia que nada, nem ninguém, nos pode separar do amor que Deus nos revelou em Cristo (cf. Rom 8, 28-39).
Alguém dizia que não acreditava em bruxas mas … que as há, há! O mesmo se diga dos demónios, que existem e actuam, mesmo que neles não se acredite. Seja ele um Charlie mexicano, ou francês, o melhor é não lhe dar troco, porque é “assassino desde o princípio”, alguém em quem “não há verdade” (Jo 8, 44).
in Observador
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