terça-feira, 23 de junho de 2015

Os direitos dos caracóis - Pe. Gonçalo Portocarrero

Não obstante a iminente encíclica papal sobre a questão ambiental e a muito cristã sensibilidade ecológica – quem não recorda o amor de Francisco de Assis por todas as criaturas?! – confesso que ainda não logrei sentir-me interpelado pelo lancinante apelo dos defensores dos caracóis: “Gostava de ser cozido vivo? Ele também não”.

Em época de santos populares e de arraiais em abundância, houve quem contabilizasse a quantidade de sardinhas que estes festejos acarretam. Só no presente mês de Junho, segundo o mesmo estudo, são consumidas 48 mil sardinhas por hora, 800 por minuto e 13 – número aziago, este! – por segundo. Quase cinquenta mil sardinhas por hora é – desculpem-me a incongruência gastronómica – muita fruta! Não sei mesmo se uma tão monstruosa cifra não permitirá considerar este facto como um autêntico genocídio.

Talvez nunca como agora se exaltaram tanto os animais, em detrimento dos seres humanos: ao mesmo tempo que se promove o aborto e a eutanásia, pretende-se alargar aos seres irracionais os direitos próprios dos cidadãos. Também não falta quem entenda que a diferença entre os animais não humanos e os seres racionais é apenas acidental porque, na realidade, todos são, igualmente, seres vivos. Já não são poucos os bichanos que recebem nomes de pessoas, embora talvez ainda não haja seres humanos chamados Lassie, Fiel, Bóbi, Tejo, Rin-tim-tim, ou coisa que o valha.

A polémica questão dos direitos dos animais baseia-se num preconceito: o de que eles são como nós. É o que está na base do slogan contra a cozedura de caracóis vivos. É verdade que algumas pessoas, de tão brutas, parecem meros animais e alguns animais, ditos irracionais, parecem espertos e afectuosos. Mas são aparências que iludem, porque a distância que vai do mais apto dos símios para o mais estúpido dos homens é infinitamente superior à que dista entre o mais evoluído dos primatas e o mais básico ser vivo. Mais uma vez a ciência confirma o que a Bíblia ensina: enquanto os seres humanos são imagem e semelhança do Criador, os outros seres vivos são apenas criaturas de Deus.

Com efeito, qualquer homem ou mulher, qualquer que seja a sua idade, é um ser dotado de inteligência e vontade e, portanto, essencialmente distinto de todos os outros seres vivos. Alguns animais irracionais têm conhecimento, mas meramente sensitivo, como também os seus sentimentos não são livres, mas instintivos: um cão identifica o dono, mas não conhece a sua natureza, nem é capaz de um acto de verdadeiro amor ou ódio. Alguns seres irracionais sentem, mas não amam, não odeiam, nem sofrem em sentido próprio, porque o amor, o ódio e o sofrimento implicam uma certa consciência, que só é possível em quem está dotado de razão e vontade. Um animal canceroso tem certamente as dores físicas que são próprias da doença, mas não o sofrimento que um ser humano, nessas circunstâncias, padece.

Quer isto dizer, então, que se pode fazer o que se quiser com os animais irracionais? Alguns defensores dos seus alegados direitos entendem que alguns bichos – como os caracóis, por exemplo – não têm quaisquer direitos, mas que os que são sensíveis, como alguns primatas, deveriam ser respeitados, quase como se fossem da nossa espécie. Há até quem fale, paradoxalmente, dos direitos humanos dos animais …

O Cristianismo, muito antes de se falar de ecologia ou de aparecerem os partidos dos verdes, já ensinava a bondade de todos os seres vivos, que são obras de Deus e património da humanidade. Como ensina o Catecismo da Igreja Católica, “o homem deve respeitar a bondade própria de cada criatura, para evitar o uso desordenado das coisas, que despreza o Criador e traz consigo consequências nefastas para os homens e para o seu meio ambiente” (nº 339). Portanto, não é moralmente aceitável a sua indiscriminada destruição. É também eticamente condenável causar dor, por hedonismo ou absurda diversão, aos seres irracionais porque, embora nenhum deles sofra como nós, alguns são sensíveis e, todos, um bem a preservar. Mas é legítimo que se use ou até elimine, de forma razoável, algum ser vivo, vegetal ou animal irracional, sempre que assim o exija o bem comum da humanidade.

Embora seja muito louvável a extrema sensibilidade dos defensores dos caracóis, não é razoável a sua propaganda. Nestas causas, como em todas, não bastam as boas intenções, é preciso também ter razão, sob pena de se cair numa argumentação fanática ou absurda. Foi o caso de um revisor que, ao questionar um passageiro incorrectamente sentado, se era desse jeito que se comportava em casa dele, obteve uma resposta certamente impertinente, mas com carradas de razão: - E  o senhor revisor, no seu lar também pica bilhetes?!

Pe. Gonçalo Portocarrero in Voz da Verdade


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