Teorias recentes da evolução sugerem que a antiga ideia social-darwinista da “sobrevivência dos mais fortes” não podia estar mais enganada. O que fez do homo sapiens a espécie dominante, segundo muitos biólogos actuais, é precisamente a nossa capacidade de cooperar, agir de forma altruísta e de proteger os membros mais fracos da tribo.
Esta teoria torna ainda mais incompreensíveis os actuais esforços da comunidade médica no sentido de purificar a “piscina” genética através da eugenia. Actualmente, por exemplo, 90% dos bebés por nascer diagnosticados com Síndrome de Down são abortados. De facto, há forças poderosas que já anunciaram repetidamente a sua intenção de erradicar as crianças com Síndrome de Down nos próximos anos. Não se referem ao tratamento da condição, querem erradicar as crianças, abortando-as depois de as diagnosticarem.
As mulheres perguntam-me frequentemente se é verdade que a lei as obriga a fazer uma amniocentese, porque os médicos disseram que sim. A resposta a esta pergunta é, (por ora), não. Mas as pessoas insistem que sim por duas razões: primeiro porque se querem defender – isto é, não querem ser processadas se vier ao mundo uma criança que a mãe preferia ter abortado (o termo para isto é “vida injustificada”). Em segundo lugar, talvez queiram juntar-se ao movimento eugenista que está actualmente a tentar erradicar aqueles que considera terem “vidas indignas de serem vividas”.
Este termo, “vidas indignas de serem vividas” (Lebensunwertes Leben), era usado pelos médicos alemães para descrever crianças com atrasos mentais nos anos 30, enquanto desenvolviam métodos de “eutanásia” que seriam o primeiro passo na erradicação de todos estes “indesejáveis”, a caminho da “Solução Final”.
O que é que torna estas crianças tão ameaçadoras que alguns querem que sejam totalmente erradicadas? Porque é que nos incomodam tanto? Permitam-me um pequeno impulso freudiano: Eu acho que é porque nos revemos neles. Isto é, revemos os momentos mais embaraços das nossas vidas: Quando deixámos cair o tabuleiro na cantina e toda a gente se riu e bateu palmas, quando não sabíamos a resposta que toda a gente sabia, quando nos comportámos da mesma maneira de sempre, acabando por descobrir que era muito “pouco fixe” e todos os miúdos fixes reviraram os olhos em desprezo.
Estas crianças somos nós no nosso estado mais fraco, mais vulnerável, mais envergonhado. E ninguém quer parecer ou sentir-se assim. De facto, o medo de passar vergonhas é talvez uma das razões pelas quais, em estudo após estudo, o medo de falar em público ultrapassa em muito o medo da morte nas prioridades dos inquiridos. “Aqueles a quem os deuses pretendem destruir, primeiro envergonham”. Estas crianças ferem-nos no nosso ponto mais fraco e preferimos não olhar para essa parte do nosso ser.
É precisamente por isso que elas são dos maiores dons de Deus para a humanidade. Recordemos Paulo: “Quando sou fraco, então é que sou forte.” Assim é connosco também. Quando conseguimos olhar aquela parte de nós que é fraca, vulnerável e socialmente desajustada e dizer: “Sim, também isto é amado por Deus, também isto é santificado por Deus”, então estaremos finalmente no caminho da saúde e do desabrochar da nossa humanidade.
Eu temo uma cultura que queira erradicar as crianças com Síndrome de Down e os deficientes mentais, e todos os que não são fortes, activos e produtivos. Temo-a porque os promotores de uma tal cultura estão a tentar matar aquilo que é mais humano em nós. Cuidar e viver com crianças com Síndrome de Down humaniza-nos: ensina-nos a amar desinteressadamente, como Cristo nos amou. Ensina-nos a amar-nos a nós mesmos, mesmo aquelas parte de nós que preferíamos que os outros não vissem, que nós mesmos preferimos não ver.
Precisamos destas crianças entre nós. Precisamos delas mais do que precisamos do mais recente iPad ou “smart” phone. Daqui a cem anos ninguém vai querer saber da nossa tecnologia, como os meus alunos se estão a marimbar para a tecnologia francesa do século XVIII ou alemã do século XIX. O que vai mesmo fazer diferença é a forma como tratámos os mais fracos e vulneráveis de entre os nossos.
Se cumprirmos fielmente esse chamamento, então a nossa será uma cultura que merece ser recordada. Se valorizarmos a nossa capacidade tecnológica acima de tudo o resto, e tivermos tal sucesso nesse campo que não deixamos espaço nas nossas vidas para os mais desfavorecidos, seremos recordados da forma como recordamos a Alemanha dos anos 30: puseram os comboios a andar a horas – depois usaram-nos para transportar seis milhões de judeus e outros “indesejáveis” para os campos de concentração.
No fim de contas Deus é o nosso único verdadeiro espectador e comparado com ele, o Criador do Universo, temos a capacidade intelectual de uma minhoca. Mas Ele consegue amar-nos apesar disso. Nunca estamos mais próximos dele, do que quando abraçamos aquela parte de nós que podemos ver nas crianças com Síndrome de Down: Simples, cheio de alegria, vulnerável.
Estas crianças precisam da nossa ajuda, mas nós precisamos mais delas. Elas tornam-nos humanos. O maior presente que Deus dá àqueles que estão cheios de presunção é o dom da humildade. Como disse, e bem, o poeta T.S. Elliot: “A única sabedoria que podemos esperar alcançar é a humildade: a humildade é infinita.”
Randall Smith in 'The Catholic Thing'
5 comentários:
Caro autor,
acho o seu post extremamente egoísta mas se me disser quantas crianças com algum tipo de deficiência estão integralmente ao seu cargo, talvez mude de ideias.
No Reino Animal não teriam hipotese de sobrevivência (seriam abandonadas) e o homem é um animal, ainda que muitas vezes nos esqueçamos.
Obrigada pela oportunidade de comentar.
A eugenia levanta profundas questões éticas, não obstante acreditar que num futuro chegaremos à manipulação da pessoa humana. Há bebés em condições vegetativas. É legítimo, exigir a alguém que o saiba antecipadamente prossiga com um processo que lhe trará a ela e à criança maioritariamente sofrimento por toda a vida? Acresce o facto que uma grande maioria dessas mulheres são abandonadas pelos parceiros e dispõem de reduzidas ou nulas ajudas. Mas ainda assim paira a pergunta: Há estados indignos de serem vividos? Quem lhes confere essa indignidade? Muitos não são abortados, mas são colocados em lares. Por isso ficamos surpresos se convivemos com uma ou outra pessoa que nunca falou no filho deficiente que nos parece escondido num lar. Medo de ser injustamente julgado, de o parecer ter depositado? É preciso recursos técnicos específicos que nem sempre o comum do mortal dispõe. É preciso investimento monetário e humano. Todos tem direito à vida, mas nem todos a podem viver com a dignidade desejável. Muitos poderiam viver a vida com mediana qualidade, mas isso iria baixar a qualidade expectável daqueles que numa sociedade egoísta não estão dispostos ao sacrifício. A sociedade não é abstracta somos todos nós! Eu, tu, ele... Porque quem não é fiel nas pequenas coisas não é nas grandes. Ora muitos sabem falar dos filhos que nunca terão, mas por exemplo não fazem os pequenos sacrifícios desejáveis do dia a dia: Não se sacrificam por amor ao próximo, não possuem sensibilidade, não são justos… se não são nada disto como podem indignar-se por uma mulher querer abortar um filho? Ele que exigirá à mãe, mais do que a vida diária lhes exige e em menor escala? Disser ao outro dá-te é fácil, dar-me é que é mais difícil…
Se tenho de cuidar de alguém que é dependente de mim para o resto da vida o que temo? Temo não possuir vida própria, vida para os meus interesses, a minha carreira, até os meus tempos de lazer. Temo não dispor de verbas e nem de recursos adequados. Temo não saber ou chegar ao conhecimento no mais íntimo de mim, de que não quero ser cuidadora dessa criança, por mais que possa escandalizar. Temo que todas as lógicas não ressoem em mim como razões de eu querer viver essa vida. Ao aceitar uma vida dependente, temo perder a minha vida, e o que a anima, ou não. E no entanto em muitos casos estes receios podem ser infundados, e ao invés ser um dom. Mas só porque somos católicos e somos ou devemos ser pela vida, não tenhamos a pretensão que todas as pessoas que experienciam estas situações as vivam como um dom. Muitas não a viverão, tanto que muitas nem se sentem na obrigação moral de defender a vida, pois que nem conhecem a Deus.
Poderá haver alguém que reveja as suas fraquezas nelas e as queira banir da consciência. Mas e quando fazemos o percurso e nunca deixamos cair o tabuleiro na cantina? E quando fomos nós que rimos dos que não souberam dar a resposta? Quero dizer, o único motivo que encontramos é a exacerbação do nosso egoísmo onde não há lugar para abrirmos mão de nós para o outro, ainda que o outro seja parte de nós, e todos parte de Deus. E quando não há vergonha, mas também não há disponibilidade para parar num percalço da vida, que não é mais sentido do que um estorvo e eu tenho de seguir por onde tinha planeado, e se não o tinha, sei que não quero seguir por ali? Somos então aqueles que não encontram em si a fraqueza para que sejamos fortes à semelhança de Paulo….Somos os fracos! Fracos mas livres. Fracos mas acorrentados… Por isso o que é mais humano em nós, não está a ser erradicado pelos promotores de uma cultura nazista, porque muitos de nós já estamos em parte desumanizados. Vejamos no dia a dia… Uma pessoa caída na plataforma do comboio ou no passeio e ninguém pára. Alguém é assaltado ninguém vê. O padre é desumanizado, a policia é corrupta, Acha que ainda somos humanos? Não. Não criem novos seres humanos perfeitos, recriem aquele que foi feito por Deus e se perdeu há muito, algures no tempo…
Voltando ao tema, devo dizer que nem sempre cuidar humaniza, por vezes dessensibiliza, dependendo de variadíssimos factores. Só cuidar unido a Cristo é promissor, mas também não é garantia. Não é Ele que não é garantia, somos nós, evidente.
O que precisamos ou deixamos de precisar é muito incerto, se amanhã conseguíssemos evitar a alteração de cromossomas, já não precisaríamos.
Para abraçarmos essa parte de nós é preciso a muitos a reencontrarem, lá atrás onde ficou perdida.
Para ser humilde é preciso também ao presunçoso encontrar Deus em si. Como vai ver a criança com Down se perdeu Deus em si ou nunca o achou?
Cara Joana Veiga permita-me a seguinte observação. Em parte tem razão no seu comentário, à qual já chegarei. No entanto a Verdade não deixa de o ser porque quem a comunica não a coloca em prática. O maior egoismo é não permitir a vida de outro ser humano e a maior virtude dar a vida pelo outro. Cristo veio para nos dar a Vida e elevar-nos à dimensão Divina, já não ficamos pela medida humana, muito menos pela medida animal.
Como o caro João Silveira já referiu num post anterior como católicos não somos perfeitos, somos sim pecadores em busca da perfeição de filhos de Deus. Por isso se vir um católico a errar corrija-o com caridade, é uma obra de misericórdia que faz.
No seu comentário quando fala de egoismo em geral tem razão, faz-nos bem lembrar esse aspecto. Como o Papa Francisco nos lembra, devemos sempre atender às situações concretas de cada vida, de cada pessoa, para não cairmos apenas num enunciar de regras. Ao anunciar com uma mão a Verdade do Evangelho, que valoriza a Vida porque a eleva à dignidade de filhos de Deus, devemos na outra mão apresentar a Caridade, que é um amor especial porque leva Deus ao nosso próximo.
Nestes casos, por exemplo no aborto, não podemos apenas indicar que é errado, que não devem existir leis que o permitam. Temos de apresentar também a Caridade, o que podemos fazer pelo outro que está em risco de cair em pecado. E aqui principalmente bispos e sacerdotes mas também leigos na medida do que possam fazer devem apresentar sempre juntas a Verdade e a Caridade, a Justiça e a Misericórdia.
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