O que se segue é uma alocução que o então Cardeal Joseph Ratzinger, então o Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, proferiu aos bispos responsáveis pela doutrina da fé nas conferências episcopais europeias, em Maio de 1989 (!).
O seu conteúdo, podemos agora verificar, perante tudo aquilo a que, actualmente, se assiste no mundo secular e na Igreja, foi profético - na medida em que a profecia autêntica é simultaneamente anúncio da verdade e denúncia do erro.
Os temas e conceitos-chave são de uma impressionante actualidade. Se dissermos que as referidas dificuldades se generalizaram, infelizmente, pelo menos a grande parte do mundo ocidental, não será exagero. Por isso, mutilei o título tal qual aparece no site do Vaticano (*).
Aqui fica, sem mais, a tradução que dela fiz para português (parêntesis rectos, negritos e sublinhados, meus).
João Duarte Bleck, médico e leigo Católico
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Enquanto bispos que carregam a responsabilidade pela fé da Igreja nos nossos países, perguntamo-nos [1º] onde residem de modo especial as dificuldades que as pessoas têm com a fé, hoje, e [2º] como podemos nós, rectamente, responder-lhes.
Não precisamos de uma ampla pesquisa em ordem a respondermos à primeira pergunta. Existe algo semelhante a uma ladainha de objecções à prática e ao ensino da Igreja; e, hoje em dia, a sua regular recitação tornou-se como que o cumprimento de um dever para os Católicos de pensamento progressista. Podemos verificar os elementos principais desta ladainha: [a] a rejeição do ensino da Igreja acerca da contracepção, o que significa dizer colocar ao mesmo nível moral qualquer tipo dos meios para prevenir a concepção, sobre cuja aplicação/uso apenas a “consciência” individual pode decidir; [b] a rejeição de qualquer forma de “discriminação” relativamente à homossexualidade e a consequente asserção de uma equivalência moral para todas as formas de actividade sexual, desde que elas sejam motivadas pelo “amor” ou pelo menos não magoem ninguém; [c] a admissão dos divorciados recasados aos sacramentos da Igreja; [d] e a ordenação sacerdotal das mulheres.
Como podemos ver, há questões muito diferentes ligadas nesta ladainha. As duas primeiras exigências [a e b] pertencem ao campo da moral sexual; as duas seguintes [c e d] à ordem sacramental da Igreja. Um olhar mais demorado, contudo, torna mais claro que estas quatro questões, estão, não obstante as suas diferenças, muito vinculadas: brotam de uma única e mesma visão da humanidade, dentro da qual opera uma noção específica da liberdade humana. Quando se têm presentes estes fundamentos, resulta evidente que a ladainha das objecções tem maior profundidade do que parece à primeira vista.
Que aspectos aparecem nesta visão da humanidade - da qual depende a ladainha - numa indagação mais minuciosa? As suas características fundamentais são tão difusas como as exigências que dela derivam e assim podem ser facilmente traçadas. Encontramos o nosso ponto inicial na asserção plausível de que o homem moderno acharia difícil relacionar-se com a moral sexual tradicional da Igreja.
Em vez disso, diz-se, ele abordou/alinhou a sua sexualidade de um modo diferenciado e menos confinado e assim exige uma revisão dos padrões que não são mais aceitáveis nas presentes condições, não importando o quão significativos pudessem ter sido em condições históricas passadas. O próximo passo, então, consiste em mostrar como nós, hoje, finalmente descobrimos os nossos direitos e a liberdade da nossa consciência e em como não estamos já prontos para subordiná-la a nenhuma autoridade externa. Além disso, é tempo para que a relação fundamental entre o homem e a mulher seja reordenada, para que espectativas ultrapassadas de desempenho [masculino e feminino] sejam derrubadas e para que uma completa igualdade de oportunidades seja outorgada às mulheres a todos os níveis e em todos os campos.
O facto de que a Igreja, enquanto a instituição particularmente conservadora que é, não possa alinhar com esta linha de pensamento, não seria propriamente surpreendente. Se, contudo, desejasse promover a liberdade humana, então ela seria enfim obrigada a colocar de lado a justificação teológica de velhos tabus sociais, e o sinal mais oportuno e vital de um tal desejo, no momento presente, seria o seu consentimento para a ordenação sacerdotal de mulheres.
As raízes desta oposição continuam a emergir sob várias formas e torna-se claro que aquilo com que estamos lidando com a nossa imaginária, mas muito exacta ladainha, é nada menos do que uma reorientação muito coerente.
Os seus conceitos-chave apresentam-se nas palavras “consciência” e “liberdade”, as quais é suposto conferirem uma aura de moralidade a normas de comportamento já alteradas que à primeira vista seriam completamente rotuladas como renúncia à integridade moral e como simplificações [procedentes] de uma consciência laxa.
Não mais a consciência é entendida como aquele saber que deriva de uma forma superior de conhecimento. É, em vez disso, a autodeterminação do indivíduo - que não pode ser orientada por ninguém - a deliberação pela qual cada pessoa decide por ela mesma o que é moral numa dada situação.
O conceito “norma” – ou o que ainda é pior, a lei moral em si – assume sombreados negativos de negra intensidade: uma regra exterior pode fornecer modelos orientadores, mas não pode em caso algum servir como o derradeiro árbitro da própria obrigação. Onde este pensamento domina, a relação do homem com o seu corpo muda também, necessariamente. Esta mudança é descrita como uma libertação - quando comparada com a relação [com o corpo] alcançada até agora - como uma abertura a uma liberdade há muito tempo desconhecida. O corpo, então, vem a ser considerado como algo que se possui, do qual a pessoa pode usar de qualquer das maneiras que lhe pareça mais útil para atingir “qualidade de vida”.
O corpo é uma coisa que se tem e de que se usa. Não mais o homem espera receber uma mensagem da sua corporeidade tal como quem é ele, o que deveria fazer; mas definitivamente, com base nas suas deliberações razoáveis, e com completa independência, ele espera fazer com o seu corpo o que quiser. Consequentemente, não há efectivamente diferença se o corpo for do sexo masculino ou feminino, o corpo não mais exprime, de todo, o ser; ao contrário, tornou-se um torrão de propriedade.
É possível que a tentação do homem tenha sempre assentado na direcção de um tal controle e na exploração de bens. No entanto, na sua raiz, esta maneira de pensar tornou-se primeiramente uma possibilidade real através da separação fundamental – não uma separação teórica, mas prática e constantemente praticada – da sexualidade, da procriação. Esta separação foi introduzida com a pilula [anticoncepcional] e foi levada ao seu cume por engenheiros geneticistas, de tal modo que agora o homem pode “fazer” seres humanos no laboratório. O material necessário para fazer isto, tem que ser buscado por acções deliberadamente realizadas em nome dos resultados planeados, que não mais envolvem vínculos humanos [interpessoais] e decisões, de modo nenhum.
De facto, onde este tipo de pensamento foi completamente adoptado, a diferença entre homossexualidade e heterossexualidade, assim como a diferença entre relações sexuais dentro ou fora do casamento, tornaram-se irrelevantes. Igualmente despojada de todo o simbolismo metafísico, é a distinção entre homem e mulher, que é olhada como o produto forçado de uma expectativa de desempenho.
Seria interessante seguir em detalhe esta revolucionária visão acerca do homem que apareceu por detrás da nossa – inventada muito por acaso - ladainha de objecções ao ensino da Igreja. Sem qualquer dúvida, isto será um dos principais desafios da reflexão antropológica nos anos vindouros. Esta reflexão terá de separar, meticulosamente, das correcções assaz significativas às noções tradicionais, aquelas onde começa uma verdadeira oposição à visão que a fé tem do homem; uma oposição que não admite a possibilidade de compromisso, mas que coloca perante nós com firmeza a alternativa de crer ou não. Tal reflexão não pode ser conduzida num contexto em que se esteja mais interessado em discernir as questões que tivermos que colocar a nós próprios, hoje, do que em buscar as respostas. Por agora deixemos esta disputa; em vez disso, a nossa questão deve ser: como é que acontece que valores que pressupõem tais fundamentos se tornaram correntes entre cristãos?
No tempo actual, tornou-se muito evidente que a nossa ladainha de objecções não gira ao redor de alguns conflitos isolados sobre esta ou aquela prática sacramental na Igreja, nem sobre uma aplicação mais ampla desta ou daquela regra. Cada uma destas controvérsias assenta sobre uma mudança de “paradigmas” [change of “paradigms”, no original] de muito maior alcance, isto é, das ideias básicas do ser e dos deveres humanos. Assim acontece, mesmo que só um pequeno número dos que pronunciam as palavras da nossa ladainha, estejam conscientes da mudança envolvida.
Todos eles respiram, por assim dizer, a atmosfera desta visão particular do homem e do mundo que os convence da plausibilidade desta única opinião, enquanto removem da sua consideração outras visões. Quem não seria favorável à consciência e à liberdade e contra o legalismo e a restrição? Quem deseja ser colocado na posição de defender tabus? Se as questões forem formuladas deste modo, a fé proclamada pelo Magistério está já manipulada no sentido de uma posição sem esperança ou saída. Tudo colapsa por si mesmo porque perde a sua plausibilidade de acordo com os padrões de pensamento do mundo moderno, e é olhado pelos progressistas contemporâneos como algo que há muito foi suplantado.
Podemos, então, dar uma resposta significativa às questões levantadas, apenas se não nos deixarmos ser arrastados para a batalha sobre os detalhes e, em vez disso, sermos capazes de expressar a lógica da fé na sua integridade, o bom senso e a razoabilidade da sua visão da realidade e da vida. Nós só podemos dar uma resposta adequada e em detalhe aos conflitos, se mantivermos em vista todas as suas afinidades. Foi o desaparecimento de uma visão assim que roubou à Fé a sua razoabilidade.
Neste contexto, eu gostaria de fazer uma lista de três áreas, dentro da visão que a Fé tem do mundo, que testemunharam uma certa redução nos últimos séculos, uma redução que gradualmente preparou o caminho para outro “paradigma” [another “paradigm”, no original].
1. Em primeiro lugar, temos que apontar o quase completo desaparecimento na teologia da doutrina sobre a criação
Como instâncias típicas, podemos citar dois compêndios da moderna teologia nos quais a doutrina da criação é eliminada como parte do conteúdo da fé e é substituída por vagas considerações de filosofia existencial: a edição de 1973 da obra ecuménica Neues Glaubensbuch publicada por J. Feiner e L. Vischer; e a obra catequética básica, publicada em Paris em 1984, La foi des catholiques. Num tempo em que estamos a ter a experiência da agonia da criação pelas mãos do trabalho do homem e quando a questão dos limites e padrões normativos da criação sobre a nossa actividade, se tornou o problema central da nossa responsabilidade ética, este facto deve parecer muito estranho. Apesar disto tudo, permanece sempre um facto desagradável que a “natureza” deva ser vista como uma questão moral.
Uma ansiosa e irrazoável reacção contra a tecnologia é também associada de perto com a incapacidade de discernir uma mensagem espiritual no mundo material. A natureza ainda aparece como uma forma irracional, mesmo quando, ao mesmo tempo, mostra estruturas matemáticas que podemos estudar tecnicamente. Dizer que a natureza tem uma inteligibilidade matemática é declarar o óbvio; a asserção de que também contém em si mesma uma inteligibilidade moral, contudo, é rejeitada como uma fantasia metafísica. A morte da metafísica anda de mão dada com o deslocamento do ensino sobre a criação. O lugar de ambas foi tomado por uma filosofia da evolução [no sentido de progresso] (que eu gostaria de distinguir da hipótese científica da evolução). Esta filosofia intenta descartar as leis da natureza, de tal modo que a gestão do seu desenvolvimento possa tornar possível uma vida melhor. A natureza, que deveria ser na realidade a mestra neste caminho, é, em vez disso, uma dama cega que combina ao acaso, o que agora o homem é suposto simular com plena consciência.
A relação do homem com a natureza (que não é por ele considerada certamente criação) permanece a de quem actua sobre ela; não é de forma nenhuma a de quem aprende com ela. Persiste, então, como uma relação de dominação, baseando-se na presunção de que o cálculo racional pode ser tão inteligente como a “evolução” e possa assim elevar o mundo a novas alturas. Até este ponto o processo de desenvolvimento teve que lutar sem intervenção humana.
A consciência a que se apela é essencialmente muda; tal como a natureza e o mestre é cego. Ela [a consciência] processa apenas a acção que tem as melhores hipóteses de melhoramento. Isto pode (e deve, de acordo com a lógica do ponto de partida) ocorrer de um modo colectivo, para o que é preciso um Partido que, como vanguarda da história, toma a evolução nas mãos enquanto exige a subordinação absoluta do indivíduo. De outro modo, as coisas ocorreriam individualisticamente e a consciência então tornar-se-ia a expressão da autonomia do sujeito o que, em termos do grande quadro mundial, poderia ser considerado absurda arrogância.
É assaz óbvio que nenhuma destas soluções é útil, e isto é a base do profundo desespero da humanidade de hoje, um desespero que se esconde atrás de uma fachada oficial de optimismo. No entanto, ainda existe uma consciência silenciosa da necessidade de uma alternativa que nos leve para fora dos becos sem saída das nossas plausibilidades; e talvez também exista, mais do que pensamos, a esperança silenciosa de que um Cristianismo renovado possa fornecer a alternativa. Isto pode ser realizado, contudo, apenas se o ensino sobre a criação for novamente desenvolvido. Um tal empreendimento, então, deve ser visto como uma das tarefas mais prementes da teologia, hoje.
Temos de tornar evidente, mais uma vez, aquilo que significa que o mundo foi criado “em sabedoria” e que o acto criativo de Deus é algo muito diferente do “bang” de uma primitiva explosão. Só então pode a consciência e a norma entrar numa relação apropriada. Pois então tornar-se-á claro que a consciência não é nenhum cálculo individualista (ou colectivista); antes, é uma “consciens”, um “conhecer com” a criação e através da criação, com Deus Criador.
Então, também, será redescoberto que a grandeza do homem não repousa na miserável autonomia de se proclamar a si mesmo, seu único mestre, mas no facto de que o seu ser permite à mais alta Sabedoria, a verdade em si, brilhar nele. Então tornar-se-á claro que o homem é tanto maior quanto mais ele é capaz de ouvir a profunda mensagem da criação, a mensagem do Criador. Então será patente quanto a harmonia com a criação, cuja sabedoria se torna a nossa norma, não significa uma limitação da nossa liberdade, mas antes uma expressão da nossa razão e da nossa dignidade.
Então ao corpo é dada a devida honra: não é mais algo que se “usa”, mas é o templo da autêntica dignidade humana porque é um trabalho-manual de Deus, no mundo. Então a igual dignidade do homem e da mulher é manifestada precisamente no facto de que eles são diferentes. Então [o homem] começará a perceber outra vez que a sua corporeidade atinge as profundezas metafísicas e é a base de uma metafísica simbólica cuja negação ou negligência não enobrece o homem, mas o destrói.
2. O declínio da doutrina sobre a criação inclui o declínio da metafísica, o aprisionamento do homem no empírico, como dissemos.
Quando isto acontece, entretanto, também ocorre, necessariamente, um enfraquecimento da Cristologia. A Palavra que era no princípio [cf. Jo 1,1] desaparece completamente. A Sabedoria criativa não é mais um tema para a reflexão. Inevitavelmente a figura de Jesus Cristo, desprovida da sua dimensão metafísica, é reduzida a um Jesus puramente histórico, a um Jesus “empírico”, o qual, tal como qualquer facto empírico, contem apenas o que for susceptível de acontecer. O título central da sua dignidade, “Filho”, torna-se vazio, pelo que o caminho da [sua dimensão] metafísica é cortado. Até este título, torna-se ele mesmo sem significado, já que não mais existe a teologia do ser filhos de Deus, pois é substituída pela noção de autonomia [absoluta].
A relação de Jesus com Deus é agora expressa em termos tais como, “representante” ou semelhantes; mas no respeita ao que isto significa, temos que procurar uma resposta através da reconstrução do “Jesus histórico”.
Existem hoje dois modelos principais para a alegada figura do Jesus histórico: o burguês-liberal e o marxista-revolucionário. Jesus foi, ou o arauto de uma moral liberal, que lutou contra toda a espécie de “legalismo” e seus representantes; ou então, foi um subversivo que pode ser considerado como o endeusamento da luta de classes e a sua figura religiosa simbólica.
Evidentemente que por detrás estão os dois aspectos da moderna noção de liberdade, vistos como incarnados em Jesus; isto é o que faz dele representante de Deus. O sintoma inconfundível do presente declínio da Cristologia é o desaparecimento da Cruz e, consequentemente, a insignificância da Ressurreição, do Mistério Pascal. No modelo liberal, a Cruz é um acidente, um erro, o resultado de um legalismo de vistas curtas. Não pode assim tornar-se o tema de especulação teológica; de facto, não deveria ter ocorrido e um apropriado liberalismo torna-a de qualquer maneira supérflua.
No segundo modelo, Jesus é o revolucionário fracassado. Deste modo ele pode simbolizar o sofrimento da classe oprimida e assim fomentar o crescimento da consciência de classe. Deste ponto de vista, à Cruz pode ser dado um certo sentido, um significado importante, mas que é radicalmente oposto ao testemunho do Novo Testamento.
Agora, em ambas estas versões corre um fio comum, nomeadamente, que nós devemos ser salvos não pela Cruz, mas da Cruz. Expiação e perdão são mal-entendidos, dos quais o Cristianismo tem que ser libertado. Os dois pontos fundamentais da fé cristã dos escritores do Novo Testamento e da Igreja de todos os tempos (a filiação divina, entendida num sentido metafísico e o Mistério Pascal) são eliminados ou pelo menos desprovidos de qualquer função. É óbvio que com tal reinterpretação básica, tudo o mais do Cristianismo é igualmente alterado – a compreensão do que é a Igreja, a Liturgia, a espiritualidade, etc.
Naturalmente, raramente se fala tão abertamente destas cruas negações que aqui descrevi com toda a gravidade das suas consequências. Os movimentos, todavia, são claros e não se confinam apenas ao reino da teologia. Desde há muito tempo introduziram-se na pregação e na catequese; devido à facilidade da sua transmissão, até são mais salientados nestes campos do que na estrita literatura teológica. Então, torna-se muito claro, que as verdadeiras decisões caem novamente no campo da Cristologia; tudo o mais daí se segue.
3. Finalmente, gostaria de referir brevemente um terceiro campo da reflexão teológica que é ameaçado por uma conscienciosa/completa [thoroughgoing, no original] redução do conteúdo da fé, nomeadamente, a escatologia.
A crença na vida eterna, hoje, dificilmente assume algum papel na pregação. Um amigo meu, recentemente falecido - um exegeta notável – falou-me uma vez sobre uns sermões de Quaresma que ele tinha ouvido no começo dos anos 70s. No primeiro sermão, o pregador explicou aos fieis que o Inferno não existe; no segundo, o Purgatório foi pelo mesmo caminho; no terceiro, ele levou a cabo a difícil tarefa de tentar convencer os seus ouvintes de que até o Céu não existe e de que devemos buscar o nosso paraíso aqui na terra. Para ser exacto, é raro ser-se tão drástico como aquele pregador, mas tornou-se um lugar-comum o receio de falar do além.
A acusação marxista de que os cristãos justificam as injustiças deste mundo com a consolação do mundo que há-de vir está profundamente enraizada, e os problemas sociais são agora tão sérios que requerem todo o poder de um compromisso moral. Esta exigência moral não será de todo posta em questão por quem vê a vida cristã na perspectiva da eternidade, pois a vida eterna não pode ser preparada senão na presente existência. Nicholas Cabasilas [Νικόλαος Καβάσιλας: n. 1320, em Tessalónica e + 1390; foi um teólogo ortodoxo bizantino], por exemplo, expressou esta verdade numa maravilhosa reflexão, no século XIV. Somente aqueles que são já [aqui] seus amigos (isto é, da vida futura) e têm ouvidos para ouvir, a atingem. Pois não é no além que tem início a vida eterna, que o ouvido é aberto, que o traje para a boda é aprontado e tudo o mais preparado; antes, é esta vida presente que é o lugar onde tudo isso é trabalhado. Pois tal como a natureza prepara o embrião, enquanto ele leva uma vida confinada e escura [no seio da mãe], para viver na luz, e lhe vai dando a forma de acordo com o tipo de vida que está para chegar, assim acontece justamente com os santos.
Apenas a exigência da vida eterna confere a esta vida [aqui] uma absoluta urgência do dever moral. Se, porém, o Céu é apenas algo que está “à frente” de nós e não já “acima” de nós, então a tensão interior da existência humana e a sua responsabilidade comunitária, afrouxam. Pois nós, certamente, não estamos “à frente”; e se esta expectativa do que está à frente é um céu para esses outros que nos parecem ter ido já “à frente”, não estamos em posição de o determinar, já que eles foram tão livres e sujeitos às tentações como nós.
Aqui encontramos a decepção inerente à ideia do “mundo melhor”, a qual, no entanto, aparece hoje em dia entre os cristãos como o verdadeiro objectivo da nossa esperança e a genuína norma-padrão da moralidade. O “Reino de Deus” foi quase completamente substituído na consciência geral, tanto quanto posso ver, pela Utopia de um mundo futuro para o qual trabalhamos e que se torna o verdadeiro ponto de referência da moralidade – uma moralidade que se mescla de novo com a filosofia da evolução [do progresso] e da história e que cria normas para si mesma, calculando aquilo que pode oferecer melhores condições de vida.
Não nego que é exactamente desta maneira que as energias idealistas da juventude se soltam e com resultados que são frutuosos em termos de novas aspirações para actividades altruístas. Contudo, como norma abrangente para os esforços humanos, o futuro não é suficiente. Onde o Reino de Deus é reduzido ao “mundo melhor” de amanhã, o presente acabará por reivindicar direitos contrários ao futuro imaginado. A fuga para o mundo das drogas é a consequência lógica da Utopia idolatrada. Já que esta tem dificuldade em chegar, o homem arrasta-a para si mesmo ou então precipita-se de cabeça para ela. É, portanto, perigoso, se a terminologia do mundo melhor predominar em orações e homílias, substituindo inadvertidamente a fé por um placebo.
Tudo o que aqui foi dito pode parecer a muitos [de vós, «bispos que carregam a responsabilidade pela fé da Igreja»], ser demasiado negativo. Não se pretendeu, claro, descrever a situação da Igreja como um todo, com todos os seus elementos positivos e negativos; antes, foi ocasião para expor os obstáculos à fé no contexto europeu.
Dentro deste limitado tema, não me foi exigido apresentar uma análise exaustiva. A minha única intenção foi examinar, para lá dos problemas particulares que constantemente vêm à tona, os motivos mais profundos que fazem emergir as dificuldades em formas que estão sempre a mudar.
Apenas aprendendo a compreender essa característica fundamental da existência moderna - que recusa aceitar a fé, antes de discutir todo o seu conteúdo - estaremos nós capacitados para retomar a iniciativa, em vez de simplesmente responder às questões levantadas. Só então podemos nós revelar a fé como a alternativa que o mundo aguarda, após a falência das experiências liberalista [(?) liberalistic, no original] e marxista. Este é, hoje, o desafio do Cristianismo; aqui reside a nossa grande responsabilidade como cristãos no tempo presente.
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* Difficulties confronting the faith in Europe today / Dificuldades que a fé enfrenta na Europa de hoje, Joseph Card. Ratzinger, Prefect: Meeting with the Doctrinal Commissions of Europe, (Laxenburg, 2 May 1989). Em: http://www.vatican.va/roman_curia/congregations/cfaith/incontri/rc_con_cfaith_19890502_laxenburg-ratzinger_en.html; ou Communio (US) 38 (2011), p. 728-737.
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