domingo, 23 de janeiro de 2022

Missa e Memória por Martin Mosebach

No motu proprio Traditionis Custodes, o Papa Francisco deu uma ordem. Fá-lo numa altura em que a autoridade papal está a desmantelar-se como nunca antes. A Igreja há muito que avançou para uma fase ingovernável. Mas o papa continua a batalhar. Abandona os seus mais caros princípios – " escuta", "ternura", "misericórdia" – que recusam julgar ou dar ordens. O Papa Francisco é agitado por algo que o perturba: a tradição da Igreja.

O limitado espaço de respiração que os antecessores do Papa concederam à tradição litúrgica já não é ocupado apenas por nostálgicos senis. A Missa Tradicional Latina também atrai jovens, que descobriram e aprenderam a amar o "tesouro enterrado no campo", como o Papa Bento XVI chamou à antiga liturgia. Aos olhos do Papa Francisco, isto é tão grave que tem de ser suprimido.

A veemência da linguagem do motu proprio sugere que esta directiva chegou tarde demais. Os círculos que aderem à tradição litúrgica mudaram, de facto, drasticamente nas últimas décadas. A Missa Tridentina já não é frequentada apenas por aqueles que sentem falta da liturgia da sua infância, mas também por pessoas que descobriram de novo a liturgia e estão fascinadas por ela – incluindo muitos convertidos, muitos que há muito se encontravam afastados da Igreja. 

A liturgia é a sua paixão e conhecem-na em todos os seus detalhes. Há muitas vocações sacerdotais entre eles. Estes jovens não frequentam apenas os seminários mantidos pelas fraternidades sacerdotais da tradição. Muitos deles seguem a formação habitual para o sacerdócio, e estão no entanto convencidos de que a sua vocação é reforçada precisamente pelo conhecimento do rito tradicional. A curiosidade sobre a suprimida Tradição católica cresceu, apesar de muitos terem retratado esta tradição como obsoleta e sem consistência. Aldous Huxley ilustrou este tipo de assombro no Admirável Mundo Novo, no qual um jovem da elite moderna, sem sentido da história, descobre as riquezas transbordantes da cultura pré-moderna e fica encantado por elas.

A intervenção do papa pode impedir o crescimento da recuperação litúrgica da Tradição durante algum tempo. Mas ele só poderá detê-la durante o resto do seu pontificado. Porque este movimento tradicional não é uma moda superficial. Demonstrou nas décadas da sua repressão anterior ao motu proprio Summorum Pontificum de Bento XVI que subsiste uma devoção séria e entusiástica em relação à inteira plenitude do catolicismo. A proibição do Papa Francisco irá suscitar resistência naqueles que ainda têm as suas vidas pela frente e não permitirão que o seu futuro seja obscurecido por ideologias obsoletas. Não foi bom, mas também não foi sensato, sujeitar a autoridade papal a este teste.

O Papa Francisco proíbe as missas no rito antigo em igrejas paroquiais; exige aos padres que obtenham permissão para celebrar a missa antiga ; exige mesmo aos padres que ainda não celebraram no rito antigo que obtenham essa permissão não do seu bispo, mas do Vaticano; e exige um exame de consciência dos participantes na missa antiga. 

Mas o motu proprio Summorum Pontificum de Bento XVI raciocina num plano totalmente diferente. O Papa Bento XVI não "permitiu" a "Missa antiga", e não concedeu qualquer privilégio para a celebrar. Numa palavra, não tomou uma medida disciplinar que um sucessor possa revogar. O que foi novo e surpreendente no Summorum Pontificum foi o facto de declarar que a celebração da Missa antiga não necessita de qualquer permissão. Nunca havia sido proibida porque nunca poderia ser proibida.

Poder-se-ia concluir que aqui encontramos um limite fixo e insuperável para a autoridade de um Papa. A Tradição está acima do Papa. A antiga Missa, enraizada nas profundezas do primeiro milénio cristão, está, por princípio, para além da autoridade pontifícia de proibir. Muitas disposições do motu proprio do Papa Bento XVI podem ser postas de lado ou modificadas, mas esta decisão magisterial não pode ser tão facilmente abolida. O Papa Francisco não tenta fazê-lo - ignora-a. Ela ainda se mantém depois de 16 de Julho de 2021, reconhecendo a autoridade da Tradição que todo o padre tem o direito moral de celebrar o rito antigo, nunca proibido.

A maioria dos católicos do mundo não se interessará de todo pela Traditionis Custodes. Tendo em conta o pequeno número de comunidades tradicionalistas, a maioria dificilmente compreenderá o que se está a passar. De facto, temos de nos perguntar se o Papa não tinha tarefas mais urgentes – no meio da crise dos abusos sexuais, dos escândalos financeiros da Igreja, dos movimentos cismáticos como o caminho sinodal alemão, e da situação desesperada dos católicos chineses – do que suprimir esta pequena e devota comunidade.

Mas os adeptos da Tradição devem conceder isto ao Papa: Ele leva a Missa tradicional, que data pelo menos da época de Gregório Magno, tão a sério como eles. Ele, contudo, julga-a perigosa. Ele escreve que os papas, no passado, criaram repetidas vezes novas liturgias e aboliram as antigas. Mas o oposto é verdade. Em vez disso, o Concílio de Trento prescreveu o antigo missal dos papas romanos – que tinha surgido na Antiguidade tardia – para uso geral, porque este era o único que não tinha sido desvirtuado pela Reforma.

Talvez a Missa não seja o que mais preocupa o Papa. Francisco parece simpatizar com a "hermenêutica da ruptura" – essa escola teológica que afirma que, com o Concílio Vaticano II, a Igreja rompeu com a sua tradição. Se isso for verdade, então, de facto, qualquer celebração da liturgia tradicional deve ser impedida. Enquanto a antiga Missa latina for celebrada em qualquer garagem, a memória dos dois mil anos anteriores não terá sido extinta.

Esta memória, contudo, não pode ser erradicada pelo exercício tosco do positivismo jurídico papal. Ela voltará uma e outra vez, e será o critério pelo qual a Igreja do futuro terá de se medir a si própria.

Martin Mosebach
(Tradução: Maria Armanda de Saint-Maurice)


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