- Pst! Já estás a dormir? – perguntou-lhe em tons de sussurro o pai.
Ouviu a resposta do filho que estava deitado e meio estonteado:
- Ainda não, papá...
Já era tarde. O pai, que há quase uma hora estava ali ao seu lado a contar-lhe histórias para lhe preparar o sono, lembrou-se de mais uma, no seu entender a mais importante do seu reportório, e que seria a última daquele dia. No estado ensonado em que o filho já se encontrava, só bastava mais uma para que ele adormecesse.
Durante aquele dia, ainda que tivessem sido regulares as suas visitas a casa, cabia-lhe agora a responsabilidade de tomar conta do menino. A sua mulher tentava descansar um pouco no quarto da frente ainda que permanecesse muito atenta e preocupada com o cachopo. Também ela aproveitava para ouvir as histórias do marido, que a serenavam e encantavam.
A criança, que pouco mais de cinco anos tinha, continuava febril, e isso dificultava-lhe o adormecer.
- Filhote, o pai vai contar-te uma última história para de seguida dormires.
Permanecendo de olhos fechados, o menino ficou a ouvir silenciosamente.
- Certo dia, numa pequena terra, havia um homem de tenra idade, que procurava ser obediente à lei de Deus, como Deus quer que todos os homens sejam. Trabalhava durante o dia ganhando justo dinheiro para as suas despesas e normalmente ao final da tarde orava, entoando salmos, umas vezes na sinagoga outras vezes em sua casa.
Durante aquele tempo e segundo os profetas, um Rei, o Redentor, estaria para nascer o que o deixava, e a grande parte dos habitantes da sua terra, ansiosos. Era solteiro mas já estava comprometido. Os esponsais, que é a cerimónia onde um homem e uma mulher prometem casar um com o outro, já tinha sido celebrada. A noiva era a mulher mais bonita dessa terra, o que lhe era aprazível e não deixava de agradecer essa grande graça a Javé.
Olhando com atenção para os pés da cadeira em que estava sentado e que pareciam tremer, o pai continuou:
- Esta graciosa mulher estava assim noiva dele, usando uma aliança de ouro como forma do seu compromisso, mas ainda não viviam juntos. Também ela, como manda a Torá, era fiel à Lei de Deus, pelo que os dois respeitavam-se escrupulosamente até ao dia do seu casamento. O amor crescia entre os dois e o homem, jubiloso, não queria que viesse a faltar nada à sua futura família, ocupando parte dos seus dias na construção de uma casa acolhedora para habitarem.
Não foi muito tempo depois que a sua noiva o informou que tinha de ir visitar uma prima direita e que vivia longe. O homem da história que te conto não ficou muito agradado. Aliás, ninguém o ficaria na sua situação. Ver a sua amada partir por tempo incerto, ainda para mais a pouco tempo do casamento, é algo doloroso. Mas a vontade dela era tão grande que, pelos seus princípios, nunca se oporia. Pelo contrário, sendo esse o seu desejo, participou activamente na organização da viagem.
Seguiram-se três longos meses de espera, separados. As muitas saudades eram sentidas por ambos e não havia meio de chegar o dia do reencontro.
Interrompido novamente pelo tremer da cadeira em que estava sentado, o pai aproveitou para colocar a sua mão forte na testa do menino para verificar se este ainda estaria com febre. Aparentemente já não estava. O menino, agora desperto e de olhos arregalados, esperava o desfecho da história.
- Bem, continuando, quando a sua noiva chegou da viagem, a alegria que sentiu ao vê-la foi enorme e reciprocamente retribuída. Porém, rapidamente se apercebeu que esta trazia uma criança no seu ventre. A elegância da sua noiva deixava agora sobressair a barriga própria da maternidade. O homem, invadido de tristeza, abalado, não sabia o que fazer. Ele não era o pai da criança. Mantinha-se seguro sobre todos os assuntos relacionados com a pureza e lealdade da sua noiva, mas não entendia o sucedido. Que amor enaltecia por ela e que dor esmagava o seu coração!
Mas o único assunto que o preocupava e lhe ocupava naquele momento o pensamento era sobre que atitude tomar. A sua noiva nada lhe adiantava sobre o tema, e isso dificultava-lhe ainda mais a decisão. A Lei de Moisés impele, nestes casos, a denunciar, mas se assim o fizesse a sua noiva seria acusada de traição e tratada como adúltera, resultando na condenação à morte. E isso ele não queria porque a amava e também confiava nela.
Por outro lado, não podia consumar um casamento e ser pai de uma criança que não era dele. Depois de muito pensar acabou por decidir fugir. Na sua lógica, ao fazê-lo, todos pensariam que ele era o pai da criança mas não assumia a paternidade. Moralmente seria condenado, mas como estaria longe da sua terra, nada lhe iria acontecer e com a sua noiva tudo ficaria bem. Arrumou as suas coisas e durante a noite fez-se ao caminho.
Já longe e com o raiar do sol resolveu descansar e dormir um pouco. Em sonhos apareceu-lhe um anjo que lhe explicou que o bebé que a sua noiva esperava era filho do Altíssimo e que ele devia regressar para junto dela.
Pensativo de como continuar a contar o resto da história ao seu filho, prosseguiu com uma serenidade acrescida:
- Quando o homem acordou, não tinha quaisquer dúvidas. O sonho tinha sido demasiado real para ser fruto da sua imaginação. Ele tinha de regressar para apoiar a sua noiva no que fosse necessário. O menino que ia nascer era O tão esperado Emanuel que o povo judeu aguardava e de quem ele iria ser o pai adoptivo.
A responsabilidade que o esperava não lhe retirava uma felicidade irradiante. Foi então que regressou o mais rápido que pôde, mais rápido ainda do que quando fugia. Encontrou-se com a sua noiva e contou-lhe o sucedido. Também ela lhe confirmou a história sobre O menino que trazia nas suas entranhas.
O pai dirigindo-se ao filho disse-lhe:
- Pronto, hoje ficamos por aqui. Noutro dia conto-te o resto da história.
O filho de forma sábia, enroscado no cobertor, respondeu-lhe agradecido:
- Papá! Gostei muito da história. Se não fosse a mamã e o papá eu nunca iria compreender a minha missão no mundo. Obrigado.
Apreensivo com a resposta do menino, deu-lhe um beijo e despediu-se dizendo:
- Dorme bem filho. Procurarei continuar a ser o melhor pai do mundo.
Soprou a vela que iluminava o quarto e levou consigo a cadeira, com o propósito de a consertar no dia seguinte.
Tiago Rodrigues
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