O Natal é o maior hino – o hino de Deus – à vida humana. Apesar de todas as suas limitações, o homem é um ser tão elevado, tão digno, que o Criador não teve pejo em unir a sua natureza à nossa. De facto, o homem e a mulher foram criados à imagem e semelhança de Deus, justamente para participarem da infinita felicidade divina.
Com todas as limitações de criaturas, há em nós uma tal grandeza que nos leva a aspirar ao infinito – ao infinito poder, à omnisciência, à vida eterna, à suprema beleza, ao amor sem fim... A Deus, numa palavra. E o nosso coração não sossega enquanto em Deus não repousa, como dizia Santo Agostinho.
A consciência intuitiva desta grandeza choca, no entanto, com a fraqueza evidente que a toda a hora sentimos: tanto a fraqueza física como a fraqueza moral. E aí está uma das razões pelas quais muitas vezes perdemos a «auto-estima»: queremos ser fortes, e a doença abate-nos; queremos ser bons, e abatem-nos as tentações... Mas a pior tentação é aquela de que tratávamos no boletim anterior: «Afinal, temos de pecar...»
Já vimos que em boa parte essa ideia errada procede de chamarmos pecado ao que não o é; mas também pode nascer de um princípio mal entendido, que invocamos com frequência: o princípio do «mal menor». Por vezes encontramo-nos perante dois males – dizemos - e havemos por força de escolher algum; logo, o menor! Por exemplo, um polícia persegue um ladrão em flagrante delito; só disparando pode capturá-lo; não deve atirar à cabeça nem ao peito, mas às pernas. É um mal menor... Simplesmente, o exemplo não serve: o polícia faz bem, não faz mal, em tentar apanhá-lo. A sua função é a de manter a ordem social com o menor custo possível de vidas e bens. Não escolhe nesse caso entre dois males, mas entre um bem – cumprir o seu dever – e um mal: feri-lo desnecessariamente.
Nunca se deve fazer um mal, nem grande nem pequeno. Nem sequer para que daí venha um bem... Temos ouvido falar das chamadas «mentiras piedosas»: - «Minto para que haja paz...» Parece realmente que obtive um bem, porque as pessoas não se zangaram, mas é um bem enganador, porque, se perdemos a confiança mútua, nunca mais haverá paz «sustentável», como agora se diz. Instalando-se a mentira, instala-se a desconfiança.
Por esse caminho errado também se legitimaria matar uma pessoa inocente «para salvar a Nação», como justificavam os fariseus a condenação à morte de Jesus. Também lhes parecia «um mal menor». Não tem faltado mesmo quem cometa genocídios por esse mesmo (desvirtuado) princípio: para «libertar» o país de um sector incómodo e «menor» da população...
E hoje em dia veja-se o aborto legalizado, pior e muito mais extenso do que todos os genocídios. Não há quem não veja no aborto voluntário um mal, e mesmo um horror, mas há quem o justifique por esse (mal entendido) princípio: «para evitar um mal maior», como seria a sobrepopulação, ou o trauma da mulher, ou a falta de progresso científico, ou até a falta de «qualidade de vida» do nascituro... Acontece, porém, que não há mal maior do que o aborto legal: matar deliberada e legalmente um inocente é a subversão total do direito, da medicina, da ciência, da política, da cultura, da técnica, da civilização, além de ser a destruição deliberada de uma vida humana («inviolável», segundo proclama a nossa Constituição..., violada ela própria por essa lei iníqua). Porque tudo se deve dirigir ao bem do homem, e não ao seu aniquilamento.
Mas, além disso, ainda que nos parecesse um «mal menor», seria um mal; ninguém teria o direito de o cometer. Se não se deve mentir, quanto menos matar - e matar um inocente! Um filho!
Então, que significa esse princípio? Significa, não que possamos cometer um mal, mas sim tolerar algum mal, alheio, para evitar males maiores. É o caso do pai que deixa passar por alto uma impertinência do filho para evitar exasperá-lo, e esperando que se acalme; o caso do professor que tolera alguma indisciplina, esperando que a sua compreensão e amizade acabem por conquistar os alunos; o caso da polícia que não prende todos os carteiristas, porque mais vale conhecê-los e controlá-los do que ignorar os que lhes sucedem nas suas «zonas»; o caso das «toleradas» (assim se chamavam as prostitutas), pela mesma razão; o caso dos juizes que aplicam leves penas ou absolvem as mulheres que abortam, pois sabem que a maior pena delas é a lembrança do filho despedaçado, e para que não façam delas bandeiras políticas; o caso de um empresário, que não expulsa um operário logo ao primeiro abuso registado; o caso dos governos que amnistiam insurreições, para abrir caminho à pacificação do país; etc.
O princípio do «mal menor», portanto, é afinal o princípio da tolerância, que faz parte da prudência doméstica e política. E procede da visão realista da natureza humana: o homem não nasce perfeito: tem de aprender com tempo e esforço, tem de começar e recomeçar; e corrigir-se muitas vezes; e mesmo assim continua fraco, frágil, propenso ao mal... Sejamos pacientes com as fraquezas humanas, inclusive com as nossas; mas não as justifiquemos; não as legitimemos, porque seria um endurecimento da consciência; e não as legalizemos, que é um incentivo ao mal. Não há nenhum «mal menor» que seja bom.
Mons. Hugo de Azevedo in juntospelavida.pt
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