quarta-feira, 9 de março de 2016

O problema do mal


I. A versão lógica

Todos nós conhecemos o problema do mal... desde a queda que o mal afecta o ser humano, quer seja pela utilização indevida da sua liberdade, quer seja através de doenças, catástrofes, e outros problemas que, à partida, parecem não ter nada a ver com os defeitos humanos, mas que causam grande transtorno às pessoas por eles afectadas.

Mas como conciliar este problema com a ideia Católica de Deus? Um Deus Omnipresente, Omnipotente, Omnisciente, Bom e Misericordioso, que nos ama a todos mas, ainda assim, permite que nos aconteçam coisas desagradáveis... não será uma visão um pouco contraditória? Este raciocínio está na base do argumento do mal contra a existência de Deus e, neste pequeno texto, vou abordar a versão lógica deste argumento e explicar porque é que, do ponto de vista racional, a existência do mal não é contraditória com a existência do Deus Católico. Vou parecer um pouco frio, mas essa é a consequência de levar a discussão para o plano da argumentação lógica.

Para começar, quando se coloca o argumento numa forma mais explícita como, por exemplo, "Deus é Bom, Omnipotente e Omnisciente; O mal existe; Logo Deus não existe." notamos que há uma falha no raciocínio, a conclusão não segue das premissas. Na verdade há uma premissa implícita, a de que um Deus Bom, Omnipotente e Omnisciente não permitiria a existência de mal no mundo... e esta premissa é altamente duvidosa.

Para podermos amar a Deus é necessário que sejamos livres. O amor é um acto livre que só é possível quando quem ama tem liberdade para dizer não. Se alguém nos apontasse uma pistola à cabeça e pedisse para dizermos que a amávamos, até poderíamos dizer isso, mas o sentimento não seria amor pois não é possível obrigar alguém a amar.

Posto isto, é necessário que o Homem seja livre mas, com esta liberdade, vem também a possibilidade de negar Deus e cair no pecado.

A partir do momento em que existem seres livres, apesar de haver a possibilidade teórica de eles fazerem sempre as escolhas correctas, não é fazível criar um Universo no qual o mal não exista. A única forma de isto acontecer seria não existirem seres livres mas, nesse caso, não existia amor nem, consequentemente, salvação (por não ser possível amar Deus). Além disso, é possível que certos males sejam requisito para que um Bem maior possa ocorrer.
Daqui tiramos que a versão lógica do argumento do mal é falaciosa, uma vez que, existindo seres livres, é possível a existência do mal no mundo, mesmo com um Deus Bom. Por este motivo trata-se de um mau argumento contra a existência de Deus.

II. Tipos de mal

Apesar de termos visto que a existência do mal não implica a não existência de Deus, há ainda algumas questões que podemos colocar sobre o mal.

À primeira vista podemos catalogar dois tipos de mal, o mal que vem dos seres livres e o mal natural, que inclui catástrofes naturais, doenças, entre outros. A existência do primeiro é bastante óbvia, como foi dito na parte I deste texto, a existência de seres livres permite automaticamente este tipo de mal...

O problema aqui é o mal natural. Já que o outro tipo não se pode evitar, porque permitiria Deus a existência do mal natural? É algo que não vem, na maioria das vezes, da liberdade do Homem mas da própria natureza e que apenas parece piorar as coisas.

Esta questão daria bastante que falar, contudo gostaria de salientar apenas um ponto, nada nos garante que o mundo teria, no total, menos mal se existisse apenas o mal da liberdade, basta olharmos para a nossa história recente.

No século XX vários milhões de pessoas foram mortas pelo regime Nazi e pelos regimes Comunistas da União Soviética e da China, entre outros. Neste período histórico qualquer catástrofe natural de grandes dimensões que tenha ocorrido é practicamente desconhecida para o público em geral, uma vez que a sua gravidade é “desprezável” quando comparada com os genocídios destes governos.

Vemos assim que o mal que causamos com a nossa liberdade consegue ser muito pior que o mal vindo da natureza. Nada nos garante, por isso, que um mundo sem catástrofes naturais seria, em geral, um mundo melhor do que aquele que temos. É bastante razoável acreditar que este tipo de mal, ao mudar as condições em que as pessoas se encontram, permita que muitas mudem a forma como vivem, despertando o desejo por ajudar os outros e tornar o mundo melhor... vemos isto quando se levantam ondas de solidariedade para apoiar as vítimas de terramotos e outros cataclismos.

É, então, bastante provável que, mesmo com catástrofes naturais, este mundo seja melhor do que seria sem estas.

III. O mal e a Salvação

Uma das grandes dificuldades quando lidamos com o problema do mal é o facto de nos focarmos demasiado nas coisas deste mundo.

O grande objectivo das nossas vidas deve ser a Santidade, a nossa ida para junto de Deus após a nossa morte. A presença de Deus terá um efeito incomparavelmente superior a todo o mal deste mundo. Além disso, uma vez que a salvação é para toda a eternidade, a sua "duração" (se é que se pode usar esta palavra neste contexto) também excede por uma margem mais que confortável a duração da nossa vida sofredora. Deste ponto de vista, os males que sofremos neste mundo não passam de alguns bagos de areia numa imensa praia...

Tendo em conta que Deus quer que O escolhamos de livre vontade para nos poder salvar, possibilidades que podemos conceber para o melhor mundo seria aquela em que, desde o início até ao fim dos tempos, o maior número possível de pessoas opta livremente por amar Deus e seguir o Seu caminho.

Como vimos na parte II, nada nos garante que um mundo sem o mal natural fosse melhor deste ponto de vista e, como tal, não temos forma de saber se tal mundo conduziria a um maior número de almas salvas no fim dos tempos... há simplesmente demasiadas variáveis que não conhecemos.

Mas há ainda outro aspecto a notar... nunca devemos tirar da mente que Jesus Cristo, Deus feito Homem, veio ao nosso mundo e sofreu pelos nossos pecados... também Ele se sujeitou ao mal... Aquele que, pela Sua Perfeição e ausência de pecado menos merecia ser exposto ao sofrimento, entrega-Se por amor... para nos salvar... assim, apesar de ser difícil gerir emocionalmente, devemos, através da oração, unir os nossos sofrimentos à Cruz redentora de Nosso Senhor e oferece-los como forma de Santificação das nossas almas.

IV. O mal como argumento para a existência de Deus

Para terminar esta série de reflexões sobre o problema do mal gostaria de fazer uma pequena referência à forma como é possível dar a volta à questão e usar a existência do mal para argumentar a favor da existência de Deus.

Se Deus não existe então tudo o que temos são interacções cegas entre partículas... não existe uma referência absoluta sob a qual julgar o certo e o errado, o mal e o bem, e tudo não passam de sensações para os nossos sentidos. Pessoas diferentes podem ver o mundo de formas diferentes e, não havendo um termo de comparação absoluto, nenhuma delas tem um ponto de vista mais válido do que a outra. Assim, se discordarem quanto a certa coisa ser boa ou má, não há forma de confirmar... não existe objectivamente forma de fazer esta classificação.

Assim, se Deus não existe, então o mal não existe... não há forma de o definir... o problema é que, como todos concordamos, o mal existe... o que, seguindo as regras da lógica, nos permite concluir que Deus existe.

Nota: Pessoalmente não concordo a 100% com este argumento, pelo menos se passarmos para o plano da moralidade, pois mesmo admitindo a não existência de Deus, é possível argumentar para uma moralidade partindo das causas finais de Aristóteles. Esta via parte do princípio que um acto moral é aquele que respeita as causas finais das entidades intervenientes. Gostava só de acrescentar que, admitindo a existência de causas finais, já se está no caminho para admitir a existência de Deus (ver 5ª via de Santo Tomás de Aquino).

Gonçalo Andrade
Finalista do Mestrado de Física, Instituto Superior Técnico


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