quarta-feira, 17 de setembro de 2025

Quando São Francisco de Assis recebeu os estigmas

Francisco e um jovem companheiro, nas suas andanças costumeiras, passaram por um grande castelo todo iluminado devido às comemorações relativas à honra de cavaleiro atribuída a um filho da casa. Eles entraram nessa mansão aristocrática, que tomou seu nome do monte Feltro, à sua maneira bela e casual, e começaram a dar o seu próprio tipo de boa-nova. 

Ao menos algumas pessoas ouviram o santo “como se fosse um anjo de Deus”; entre elas estava um cavalheiro chamado Orlando de Chiusi, proprietário de muitas terras na Toscana, que decidiu brindar São Francisco com uma singular e pitoresca cortesia. Ele deu ao santo uma montanha, uma dádiva um tanto fora do comum entre as muitas possíveis.

Pode-se supor que a regra franciscana, que proibia aceitar dinheiro, não previra detalhadamente como agir com respeito à aceitação de montanhas. E é claro que São Francisco só a aceitou como aceitava tudo: como uma conveniência temporária, e não como uma posse pessoal. Então, transformou-a numa espécie de refúgio para a vida eremítica, não para a vida monástica, e se recolhia lá quando desejava uma vida de oração e de jejum, que não pedia nem aos amigos íntimos. Era o Monte Alverno, parte dos Montes Apeninos, monte encimado sempre por uma nuvem escura dotada de uma extremidade ou halo de glória.

Talvez nunca se possa saber o que de facto aconteceu ali. Imagino que a questão tenha sido objeto de controvérsias entre os mais devotos estudiosos da vida santa e entre estes e os estudiosos mais seculares. Talvez São Francisco nunca tenha falado com ninguém sobre o assunto, o que seria bem típico dele. Seja como for, o certo é que, de todo modo, ele falou muito pouco a esse respeito; acho que, pelo que dizem, ele só tratou disso com um único homem. Embora sujeito a essas dúvidas verdadeiramente sagradas, confesso que, para mim, esse relato solitário e indireto que chegou até nós parece bem com um relato de algo real, de algo mais real do que as chamadas realidades quotidianas. 

Até mesmo algo de duplo sentido e de imagem surpreendente, por exemplo, pode dar a impressão de uma experiência capaz de abalar os sentidos – como é o caso da passagem do Apocalipse sobre as criaturas sobrenaturais cheias de olhos. Ao que parece, São Francisco viu o céu acima de si ocupado por um grande ser com asas, semelhante a um serafim, que formava a figura da cruz. Não se sabe ao certo se a figura estava crucificada ou na posição da crucificação, ou se simplesmente a estrutura das suas asas incluía um enorme crucifixo. 

Mas parece claro que havia dúvidas sobre a possibilidade da crucificação, porque São Boaventura diz com todas as letras que São Francisco duvidava que um serafim pudesse ser crucificado, visto que esses principados não estavam sujeitos a passar pela Paixão. São Boaventura sugere que a aparente contradição deve ter significado que São Francisco seria crucificado como espírito, dado que não seria crucificado como homem. 

Seja qual for o significado da visão, contudo, a sua ideia geral é bem vívida e bastante intensa. São Francisco viu acima de si, ocupando todo o espaço do céu, alguma força inconcebível imemorial, antiga como o Ancião dos Dias (cf. Dan 7), cuja calma os homens tinham concebido na forma de touros alados ou de querubins monstruosos, e todo esse prodígio alado estava sofrendo dores como um pássaro ferido. Esse serafim sofredor, afirma-se, perfurou o coração de São Francisco com uma espada de pesar e piedade; pode-se deduzir que uma espécie de crescente agonia acompanhou o êxtase. Por fim, de alguma maneira o Apocalipse desapareceu do céu e a agonia interior cessou; e o silêncio e o ar natural tomaram conta das primeiras luzes do dia e se assentaram lentamente nos precipícios e nas profundas fendas dos Apeninos.
 
A cabeça do solitário afundou, em meio a todo o relaxamento e tranquilidade em que o tempo pode fluir com a sensação de algo encerrado e completo; e, ao olhar para baixo, ele viu as marcas dos pregos nas suas próprias mãos.

Gilbert Keith Chesterton in Saint Francis of Assisi


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1 comentário:

Anónimo disse...

E é essa a maior honra, que Jesus pode conceder aos Seus predilectos: marcá - los, com os Seus Estigmas...porque se adocica tanto a Cruz, nos dias de hoje?
Não somos TODOS escolhidos e amados de igual forma?
Porém, há que beber do mesmo cálice, não é?
Então, façamos da nossa vida uma constante oferta, pois, sendo ela difícil para todos, com Jesus tudo se torna mais fácil...e, assim, mesmo escondidos, cada um receberá os Estigmas à sua medida....