sexta-feira, 17 de janeiro de 2020

Carta de Tolkien ao seu filho sobre a relação entre os sexos

Morreu há dois dias Christopher Tolkien, terceiro filho do famoso autor da obra "Senhor dos Anéis", J.R.R Tolkien. Publicamos parte de uma carta que Tolkien escreveu ao seu filho Christopher - entre os dias 6 e 8 de Março de 1941 - sobre a amizade e relações entre homens e mulheres:

Os relacionamentos de um homem com as mulheres podem ser puramente físicos (na verdade não podem, é claro, mas quero dizer que ele pode recusar-se a levar outras coisas em consideração, para o grande dano da sua alma e corpo e delas); ou “amigáveis”; ou ele pode ser um “amante” (empenhando e combinando todos os seus afectos e poderes de mente e corpo numa emoção complexa poderosamente colorida e energizada pelo “sexo”).

Este é um mundo decaído. A desarticulação do instinto sexual é um dos principais sintomas da Queda. O mundo tem “ido de mal a pior” ao longo das eras. As várias formas sociais mudam, e cada novo modo tem os seus perigos especiais: mas o “duro espírito da concupiscência” vem caminhando por todas as ruas, e instalou-se em todas as casas, desde que Adão caiu. 

Neste mundo decaído, a “amizade” que deveria ser possível entre todos os seres humanos é praticamente impossível entre um homem e uma mulher. O diabo é incessantemente engenhoso, e o sexo é o seu assunto favorito. Ele é da mesma forma bom tanto em cativá-lo através de generosos motivos românticos, ou ternos, quanto através daqueles mais vis ou mais animais.

Essa “amizade” tem sido tentada com frequência: um dos dois lados quase sempre falha. Mais tarde na vida, quando o sexo esfria, tal amizade pode ser possível. Ela pode ocorrer entre santos. Para as pessoas comuns ela só pode ocorrer raramente: duas almas que realmente possuam uma afinidade essencialmente espiritual e mental podem acidentalmente residir num corpo masculino e num feminino e ainda assim podem desejar e alcançar uma “amizade” totalmente independente de sexo.

Porém, ninguém pode contar com isso. O outro parceiro(a) irá desapontá-la(-lo), é quase certo, ao “apaixonar-se”. Mas um rapaz realmente não quer (via de regra) “amizade”, mesmo que ele diga que quer. Existem muitos rapazes (via de regra). Ele quer amor inocente, e talvez ainda irresponsável. Ail Ail que sempre o amor foi pecado!, como diz Chaucer. Então, se ele for cristão e estiver ciente de que existe o pecado, ele desejará saber o que fazer a respeito disso.

Há, na nossa cultura ocidental, a romântica tradição cavalheiresca ainda forte, apesar de que, como um produto da cristandade (porém de modo algum o mesmo que a ética cristã), os tempos são hostis a ela. Tal tradição idealiza o “amor” — e, ademais, ele pode ser muito bom, uma vez que abrange muito mais do que prazer físico e desfruta, se não de pureza, pelo menos de fidelidade, e abnegação, “serviço”, cortesia, honra e coragem. A sua fraqueza, sem dúvida, é que ele começou como um jogo artificial de cortejo, uma maneira de desfrutar o amor por si só sem referência (e, de facto, contrário) ao matrimónio.

O seu centro não era Deus, mas divindades imaginárias, o Amor e a Dama. Ele tende ainda a tornar a Dama uma espécie de divindade ou estrela guia — do antiquado “sua divindade” = a mulher que ele ama — o objecto ou a razão de uma conduta nobre. Isso é falso, é claro, e na melhor das hipóteses fictício. A mulher é outro ser humano decaído com uma alma em perigo. Mas, combinado e harmonizado com a religião (como o era há muito tempo, quando produziu boa parte daquela bela devoção à Nossa Senhora, que foi o modo de Deus refinar em muito nossas grosseiras naturezas e emoções masculinas, e também de aquecer e colorir nossa dura e amarga religião), tal amor pode ser muito nobre. Ele produz então o que suponho que ainda seja sentido, entre aqueles que mantêm ainda que um vestígio de cristianismo, como o ideal mais alto de amor entre um homem e uma mulher.

Porém, eu ainda acho que ele possui perigos. Ele não é completamente verdadeiro e não é perfeitamente “teocêntrico”. Leva (ou, de qualquer maneira, levou no passado) o rapaz a não ver as mulheres como elas realmente são, como companheiras num naufrágio, e não como estrelas guias. (Um resultado observado é que na verdade ele faz com que o rapaz se torne cínico.) Leva-o a esquecer os desejos, necessidades e tentações delas. 

Impõe noções exageradas de “amor verdadeiro”, como um fogo vindo de fora, uma exaltação permanente, não-relacionado à idade, à gestação e à vida simples, e não-relacionado à vontade e ao propósito. (Um resultado disso é fazer com que os jovens — homens e mulheres — procurem por um “amor” que os manterá sempre bem e aquecidos num mundo frio, sem qualquer esforço da parte deles; e o romântico incurável continua procurando até mesmo na sordidez das cortes de divórcio).


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2 comentários:

Anónimo disse...

Christopher Tolkien, não Christian. Mas bom post.

João Silveira disse...

Obrigado, caro anónimo.