domingo, 19 de janeiro de 2020

O celibato no Antigo Testamento


Deus ordenou a Moisés que consagrasse os israelitas “hoje e amanhã” e os instruísse a lavarem suas vestes, a fim de estarem preparados para ver o Senhor descer no Monte Sinai ao terceiro dia. Moisés consagrou e instruiu o povo como Deus havia ordenado e também disse que eles deveriam se abster de relações sexuais (cf. Ex 19, 10-15).
Por que Deus estabeleceu como condição a abstinência sexual? É evidente que a Bíblia não afirma que haja algo intrinsecamente impuro no acto sexual realizado segundo o plano criador de Deus. Quanto a isso, basta lembrar as passagens mais relevantes dos dois relatos da Criação (cf. Gn 1, 27-28; 2, 21-25), às quais a exaltação bíblica da boa esposa (cf. Pr 31, 10-31) e da fecundidade procriadora (cf. Sl 128, 3-4) serve de comentário. Portanto, a relação sexual legítima entre marido e mulher não os tornaria indignos de estar na presença de Deus, depois de se terem purificado.

Por outro lado, o pedido que Moisés faz ao povo de abster-se de relações sexuais antes do encontro com o Senhor pode ser uma alusão à “vergonha” associada à sexualidade humana desde a Queda (cf. Gn 2, 25 e 3, 7-10). A forte inclinação aos pecados sexuais é, decerto, o principal “calcanhar de Aquiles” do homem caído. Por isso, Moisés exigiu que os israelitas exercitassem a continência sexual como um sacrifício de purificação e consagração, preparando-se assim para o acontecimento profundamente sagrado que seria a manifestação de Deus no Sinai: assim como Deus é santo, também eles devem sê-lo.

Assim, de maneira simbólica, Moisés procurou reconduzir o povo a um apropriado estado de inocência “virginal”, isto é, o que existia antes de os olhos humanos se abrirem à rebelião contra Deus (cf. Gn 3, 7). Além de coerente estima pela fecundidade conjugal, o Antigo Testamento parece sugerir aqui que os israelitas viam na virgindade certa pureza condizente com o sagrado (cf. Lv 21, 13-15; Is 62, 4-5).

Por mais que nos pareça estranho, Israel também tratava as suas batalhas militares como acontecimentos religiosos. Afinal de contas, foi sob o comando de Deus que Israel marchou para tomar posse da terra prometida a Abraão e aos seus descendentes. E era a Deus que Israel devia as suas vitórias militares. De facto, no início da conquista [da terra prometida], os sacerdotes levíticos às vezes levavam a Arca da Aliança — o local da presença tangível de Deus entre os israelitas — para o próprio campo de batalha (cf. Js 6).

Mesmo assim, a vitória dependia da fidelidade do povo ao Senhor (cf. 1Sm 4, 1-11). Portanto, Israel precisava de uma pureza virginal em sua relação com Deus para cumprir sua missão e receber o que Ele havia prometido. Por essa razão, os empreendimentos militares de Israel eram precedidos por um rito de purificação: os soldados tinham de se consagrar ao Senhor e aos seus desígnios.

Temos provas disso, por exemplo, num dos episódios em que David foge de Saul. David foi sozinho ao sacerdote Aimeleque, em Nobe (perto de Jerusalém), alegando ter sido enviado em segredo pelo rei, quando estava, na verdade, à procura de algo que comer. Como Aimeleque só tivesse pão sagrado, ofereceu-o a David, mas sob a condição de que o seu séquito — que David alegou estar à sua espera — evitasse contacto com mulheres. David respondeu que, em campanha, a ele e à sua comitiva era proibido ter contacto com mulheres. Após constatar que estavam aptos para comer, o sacerdote deu o pão a David (cf. 1Sm 21, 1-6).

A mesma purificação consecratória aparece novamente no relato do adultério de David com Betsabé, esposa de Urias, o hitita. Num esforço para ocultar a gravidez, fruto do seu pecado, Davi mandou Urias retirar-se de batalha e tentou por duas vezes induzi-lo a ir para casa e dormir com a esposa. Mas Urias, embora fosse um mercenário, era um soldado leal, que insistia em observar a obrigação religiosa da continência durante a campanha militar de que estava participando. Por isso, Davi elaborou um plano a fim de provocar a morte de Urias no campo de batalha. Depois disso, tomaria Betsabé para si, desfazendo qualquer suspeita quanto à gravidez (cf. 2Sm 11).

Levando em conta o que vimos acima, podemos concluir que, para os homens que participavam numa guerra santa, a observância da continência sexual simbolizava, de um modo físico, o desejo que cada soldado tinha de se entregar plenamente a Deus e aos seus desígnios. Além disso, dadas as inclinações sexuais do homem caído, os soldados com certeza entendiam que a continência sexual realmente os ajudava, de algum modo, nessa consagração especial — mesmo que isso apenas os estimulasse a focar exclusivamente em sua missão designada por Deus e lhes conferisse uma determinação singular para cumprir, em nome do povo, os desígnios de Deus para Israel. 

As suas vitórias militares ajudavam a reforçar o seu próprio senso de identidade — e o do povo — como escolhidos de Deus, ao mesmo tempo que cultivavam a fé no Senhor da sua história. A observância da continência sexual também cultivava entre os próprios soldados um senso de fraternidade e propósito comuns. Urias, o hitita, é um grande exemplo bíblico de solidariedade auto-sacrificial para com os seus companheiros de luta (cf. 2Sm 11, 11).

Em relação à condução da guerra, parece difícil conciliar a consagração a Deus, em período de guerra, a rectidão de intenção e a liderança de Deus na batalha com a aparente inclemência de Deus ao lançar sobre os espólios de guerra — povos, animais e coisas — um “interdito”, isto é, uma “maldição de destruição”. Isso diz respeito à injunção divina que exigia de Israel dar a Deus algumas ou todas as pessoas e coisas capturadas numa batalha, fosse por meio da sua destruição, fosse por meio do seu depósito no santuário (e.g., ouro e prata). A violação do interdito por uma única pessoa era uma ofensa tão grave, que faria a maldição alastrar-se por todo o Israel, que seria considerado culpado de desobedecer a Deus. Assim, Israel infiel seria incapaz de resistir aos seus inimigos. Para remover a maldição imposta ao povo, o responsável pela violação do interdito tinha de ser desmascarado e morto, e os ganhos ilícitos destruídos junto com a família do culpado (cf. Js 6, 17-19; 7, 1-26).

Temos de compreender a brutalidade do interdito em termos daquilo que Israel perderia em troca dos espólios de guerra. Se cobiçasse e retivesse os ídolos de prata e ouro dos povos conquistados, em vez de os queimar e destruir, Israel sucumbiria à ganância e à idolatria. Por isso, Moisés alertou: “Não introduzirás em tua casa coisa alguma abominável, porque serias, como ela, votado ao interdito” (Dt 20, 16-18). O risco que mulheres estrangeiras ofereciam à fé de Israel (cf., e.g., Nm 25) — daí a sua inclusão no interdito — talvez estivesse relacionado à (e enfatizado pela) disciplina da continência sexual durante campanhas militares.

A probabilidade de Israel ceder à cobiça, à luxúria, à idolatria, à hipocrisia e à complacência era tão grande, que estava em jogo nada menos que sua relação de aliança exclusiva com o único Deus verdadeiro. Havia sempre o risco de que Israel perdesse a sua herança na Terra Prometida e perecesse como as outras nações ímpias, a menos que Deus, na sua misericórdia, quisesse redimi-lo (cf., e.g., Dt 4, 23-31; 8, 11-20). O interdito servia para impedir essas ameaças. Foi precisamente por Saul ter desobedecido aos termos do interdito na sua guerra contra os amalequitas, pondo em perigo assim a todo o povo, que Deus tirou dele a realeza e a deu a David (cf. 1Sm 15).

Celibato sacerdotal e batalha espiritual

Como se relaciona o que foi dito acima com a questão do ministério e do celibato sacerdotal sob a Nova Aliança em Cristo? Como nos diz São Paulo, “não é contra homens de carne e sangue que temos de lutar (…), mas contra as forças espirituais do mal” (Ef 6, 12). Por outras palavras, cada um de nós está envolvido numa guerra de tudo ou nada contra inimigos incomensuravelmente cruéis e implacáveis — i.e., as legiões invisíveis, os anjos caídos, que estão sob o comando de Satanás. Eles querem a todo o custo provocar nossa condenação eterna (incitando-nos a pecar), a fim de que percamos a nossa herança na terra prometida do Reino de Deus.

Guerras humanas, como as que estão registradas no Antigo Testamento, não são apenas símbolos dessa guerra invisível e espiritual: são manifestações visíveis dela. A nossa submissão ao pecado por causa do estímulo realizado pelos espíritos malignos sempre causa algum tipo de divisão, e finalmente a guerra, tão logo nossos pecados tenham atingido um nível crítico, pois pouquíssimos de nós estamos dispostos a nos arrepender, a fazer penitência e a emendar de vida com o auxílio da graça de Deus. Isso significa que a guerra é um sinal claro da revolta generalizada contra Deus.

Portanto, seguindo o exemplo da radical maldição de destruição veterotestamentária, temos de nos dedicar à guerra espiritual “pondo um interdito” em todos e em tudo o que poderia resultar em nossa separação eterna de Deus e das suas promessas. Se não o fizermos, nós mesmos sofreremos a maldição do interdito por meio do pecado. Esse é precisamente o sentido do ensinamento de Cristo segundo o qual deveríamos arrancar o nosso olho ou cortar a nossa mão, se um deles nos levasse a pecar. Antes isso do que ser lançado no inferno para sempre (cf. Mc 9, 43-48). Jesus está a exortar-nos, de forma hiperbólica, a que nos afastar radicalmente do pecado e de tudo o que nos poderia levar a pecar, pois o que está em jogo é nossa salvação eterna. Ao contrário do interdito antigo, no entanto, nós não entregamos a Ele ninguém para que seja destruído, mas apenas na esperança de que seja salvo.

Todas as batalhas físicas descritas no Antigo Testamento foram efémeras, pois Israel tentava obter controle sobre a sua herança terrena. Aos soldados que lutavam para garantir as promessas de Deus (e, nesse sentido, eram mediadores dessas promessas) cabia simbolizar apenas temporariamente, enquanto durasse a batalha, a sua consagração a Deus por meio da observância da continência sexual. A autodisciplina desses homens permitia-lhes voltar sua atenção e energia exclusivamente para o propósito de obter a vitória em nome do Senhor.

Permanecem sempre activos, porém, os mesmos seres espirituais e malévolos que se escondiam nas batalhas de Israel. Actualmente, são muitas as manifestações visíveis de sua actividade rebelde — todas elas focadas na degradação e na destruição da própria vida humana. Para nos dedicarmos à batalha espiritual enquanto tal — isto é, para pegar em armas e lutar contra nossos inimigos poderosos e invisíveis — precisamos de soldados que estejam espiritualmente equipados para liderar o restante de nós nesta batalha violenta e implacável e, portanto, que se consagrarem a Deus de modo permanente, com esse único propósito. A natureza permanente dessa guerra de soma zero requer bispos e sacerdotes fiéis ao celibato, cuja missão indispensável é agir como mediadores da verdade do Evangelho e da salvação, dons sacramentais da graça que Deus Pai nos oferece em, e por, meio de Jesus Cristo, seu Filho eterno. Quando agem in persona Christi capitis, eles intermedeiam para nós nada menos do que a promessa de vida eterna em Cristo.

Como os bispos e os sacerdotes têm a obrigação de lutar pela salvação das almas, a sua dedicação a Deus — e o cumprimento da missão dada por Ele — deve ser exclusiva. Pois o único objetivo dos nossos inimigos invisíveis é frustrar essa missão. Pelo exposto, exige-se do clero católico desapego extraordinário em relação às preocupações terrenas e, portanto, um foco decidido, ao qual se presta a continência sexual permanente do celibato (cf. 1Cor 7, 28.32-33) e para cuja observância Deus jamais deixa de conceder graças.

O Matrimónio e a família requerem um tipo de morte absoluta para si. O ministério sacerdotal requer outro. O mesmo homem não pode morrer simultaneamente das duas formas. Para o sacerdote, é crucial que recaia um “interdito” sobre o Matrimónio. Ele deve desapegar-se de tudo e de todos, excepto de Jesus Cristo, para que não seja tentado a transigir com o inimigo implacável em detrimento das almas. Ao mesmo tempo, a sua fidelidade à vida celibatária serve como um sinal indispensável da vida ressuscitada em Cristo e do poder da graça de Deus.

E a escassez de sacerdotes? Não deveríamos fortalecer as fileiras com homens casados? Concluamos com dois pontos a respeito desta questão.

Sobre o número de vocações

Em primeiro lugar, Deus não precisa de números por si mesmos. Dentre trinta e dois mil homens, Deus fez Gideão escolher apenas trezentos — os mais destemidos e atentos do grupo — para derrotar um exército enorme e muito superior. Isso mostrava com clareza que a vitória era de Deus (cf. Jz 7, 1-23).

Do mesmo modo, Jesus Cristo é a cabeça da Igreja militante. Se necessário, ele pode liderar a Igreja na vitória contra o pecado, a morte e o demónio com um pequeno número de sacerdotes dedicados e consagrados exclusivamente a Ele e à missão que lhes foi confiada. Essa exclusividade implica o celibato.

Quando aceito com alegria, por meio da graça, ainda hoje o celibato sacerdotal significa — e produz verdadeiramente — uma pureza sagrada que conforma e une de modo mais perfeito o sacerdote a Cristo, a quem e em cujo serviço ele é livre para se doar incondicionalmente. Sacerdotes desse tipo formam um poderoso grupo de irmãos. Sempre atentos às artimanhas do demónio, eles combatem sem medo e com eficácia, usando os meios espirituais que Deus lhes deu para defenderem a si mesmos e ao seu povo. Desta forma, pastor e rebanho triunfam juntos sobre os ataques violentos do inimigo infernal.

Em segundo lugar, não faltariam homens respondendo ao chamamento de Deus para se tornarem sacerdotes celibatários dedicados, se a Igreja resgatasse, enfatizasse e treinasse os homens de acordo com a analogia militar esboçada acima (cf. também Ef 6, 13-20). Isso atrairia os homens viris, que são naturalmente inclinados e dispostos, pela graça de Deus, a se sacrificar de modo supremo para defender a Esposa de Cristo. Os nossos melhores sacerdotes vivem segundo essa perspectiva, que é ao mesmo tempo marcial e marital.

Em contrapartida, os “modelos” eclesiais afeminados aos quais somos apresentados actualmente — e.g., a Igreja politicamente correta, a Igreja calada que só escuta, a Igreja que aceita e abençoa o pecado mortal, a Igreja “sinodal” ou feita sob medida — podem facilmente dissuadir muitos homens fiéis e moralmente íntegros de seguir o chamado ao sacerdócio. Embora eles tenham a vocação sacerdotal e estejam dispostos, voluntariamente, a canalizar o seu natural instinto de protecção (ou de paternidade) para combater o bom combate da fé (cf. 1Tm 6, 12), em vez de canalizá-lo para a formação de uma família, é legítima a preocupação que eles manifestam com a possibilidade de serem removidos da batalha e “desarmados” por bispos e sacerdotes infiéis que não têm interesse algum em entrar no combate. O intuito destes, muito ao contrário, é introduzir na Igreja aquilo que Deus interditou irrevogavelmente. Eles conspiram para eviscerar os mandamentos de Deus e a lei natural; para admitir à Sagrada Comunhão católicos divorciados e “recasados”, pecadores impenitentes e não católicos; para reconhecer e abençoar “uniões” sodomitas; para ordenar mulheres; e assim por diante, ad nauseam.

O demónio prospera por meio desses inimigos da cruz: “para quem a própria ignomínia é causa de envaidecimento, e só têm prazer no que é terreno” (Fl 3, 19). Embora preservem a aparência da religião, eles negam o seu poder (cf. 2Tm 3, 5). Parece que o “que domina até este momento é o orgulho, o ódio, a desordem e a cólera” (1Mb 2, 40).

Em vez de se sentirem desencorajados, os homens que se sentem chamados ao sacerdócio — e também todos os soldados cristãos, independentemente do estado de vida — podem inspirar-se na derradeira exortação de Matatias, pai da revolta dos Macabeus: “Sede, pois, agora, meus filhos, os defensores da Lei e dai a vossa vida pela Aliança dos nossos pais (…). Todos os que esperam em Deus não desfalecem” (1Mb 2, 50.61).

Jeffrey Tranzillo in Crisis Magazine
Tradução: FratresInUnum.com


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