quinta-feira, 27 de março de 2025

O espírito da Quaresma nos anos jubilares

A maior parte das pessoas ignora ou esqueceu o que é a Quaresma. No entanto, o Catecismo Maior, de São Pio X, era muito claro, definindo-a como «um tempo de jejum e de penitência instituído pela Igreja por tradição apostólica». No parágrafo seguinte, São Pio X explica a sua finalidade: «Dar-nos a conhecer a obrigação que temos de fazer penitência ao longo de toda a nossa vida; imitar, de algum modo, o rigoroso jejum de quarenta dias que Jesus Cristo fez no deserto; preparar-nos, por meio da penitência, para celebrar santamente a Páscoa» (n. 36).

Muitas vezes, porém, para os bons católicos que não esquecem a Quaresma, esta reduz-se a algumas práticas ascéticas: jejum, mortificações, esmola, certamente louváveis e sempre recomendadas pela Igreja, mas não suficientes para nos transmitir o espírito da Quaresma, que é, sobretudo, desapegarmo-nos mais profundamente do pecado e abraçarmos com maior generosidade a vontade de Deus.

Bento XVI, na sua Mensagem para a Quaresma de 2009, recorda que, nas primeiras páginas da Sagrada Escritura, o Senhor ordena ao homem que se abstenha de consumir o fruto proibido: «Podes comer o fruto de todas as árvores do jardim; mas não comas o da árvore da ciência do bem e do mal, porque, no dia em que o comeres, certamente morrerás» (Gn 2, 16-17). Comentando a ordem divina, São Basílio observa que “o jejum foi ordenado no Paraíso” e “o primeiro mandamento neste sentido foi dado a Adão”. Portanto, ele conclui: “O ‘não comas’ e, portanto, a lei do jejum e da abstinência” (cf. Sermo de jejunio: PG 31, 163, 98).» «Portanto, se Adão desobedeceu ao mandamento do Senhor “de não comer o fruto da árvore da ciência do bem e do mal”, com o jejum o crente deseja submeter-se humildemente a Deus, confiando na sua bondade e misericórdia.» (Mensagem de 11 de Dezembro de 2008).

O espírito de penitência manifesta-se, antes de qualquer outra prática, no esforço de nos conformarmos com a vontade de Deus em todos os momentos, mesmo dolorosos e humilhantes da nossa vida. A 26 de Março de 1950, por ocasião da Quaresma do Grande Ano Santo, Pio XII dirigiu-se aos fiéis nos seguintes termos: «Saber suportar a vida! É a primeira penitência de todo o cristão, a primeira condição e o primeiro meio de santidade e de santificação. Com aquela dócil resignação que é própria de quem acredita num Deus justo e bom, e em Jesus Cristo mestre e guia dos corações, abraçai com coragem a cruz quotidiana, muitas vezes dura. Levando-a com Jesus, o seu peso torna-se leve».

O esforço de unir a nossa vontade à vontade de Deus precede toda a prática ascética. É por isso que Jesus sublinha a razão profunda do jejum, estigmatizando a atitude dos fariseus, que observavam escrupulosamente as prescrições rituais impostas pela lei, mas cujo coração estava longe de Deus. O verdadeiro jejum, explica o Divino Mestre, consiste antes em fazer a vontade do Pai celeste, que «vê no segredo e recompensar-te-á» (Mt 6, 18). Ele mesmo dá o exemplo, respondendo a Satanás, no final dos quarenta dias passados no deserto, que «nem só de pão vive o homem, mas de toda a palavra que sai da boca de Deus» (Mt 4, 4). «O verdadeiro jejum – conclui Bento XVI – tem, portanto, como finalidade comer o “verdadeiro alimento”, que é fazer a vontade do Pai» (cf. Jo 4, 34).

Aquele que ama a vontade do Pai detesta o pecado, que é a violação da lei divina. E assim, neste tempo de Quaresma do Jubileu de 2025, como não fazer nossas as palavras que Pio XII dirigiu aos fiéis de todo o mundo para os preparar para a Quaresma no Jubileu de 1950: «Medi, se os vossos olhos e o vosso espírito o suportam, com a humildade de quem talvez deva reconhecer-se em parte responsável, o número, a gravidade, a frequência dos pecados no mundo. Obra do próprio homem, o pecado polui a terra e desfigura a obra de Deus como uma mancha impura. Pensemos nos inumeráveis pecados privados e públicos, ocultos e evidentes; pecados contra Deus e a Sua Igreja; contra nós próprios, na alma e no corpo; contra o próximo, especialmente contra as criaturas mais humildes e indefesas; pecados contra a família e a sociedade humana. 

Alguns deles são tão inauditos e hediondos, que são necessárias novas palavras para os indicar. Pese-se a sua gravidade: dos cometidos por mera leviandade e dos premeditados e friamente perpetrados, dos que arruínam uma única vida ou se multiplicam em cadeias de iniquidade até se tornarem a maldade de séculos ou crimes contra nações inteiras. Comparai, à luz penetrante da fé, este imenso amontoado de baixeza e de cobardia com a santidade resplandecente de Deus, com a nobreza do fim para que o homem foi criado, com os ideais cristãos pelos quais o Redentor sofreu a dor e a morte; e depois dizei se a justiça divina pode ainda tolerar tal deformação da Sua imagem e dos Seus desígnios, tal abuso dos Seus dons, tal desprezo da Sua vontade e, sobretudo, tal escárnio do sangue inocente do Seu Filho.

Vigário daquele Jesus que derramou a última gota do Seu sangue para reconciliar o género humano com o Pai celeste, Cabeça visível daquela Igreja que é o Seu Corpo Místico para a salvação e santificação das almas, exortamos-vos a sentimentos e obras de penitência, para que seja dado por vós e por todos os Nossos filhos e filhas do mundo inteiro o primeiro passo para a efectiva reabilitação moral da humanidade. Com todo o ardor do Nosso coração paterno, pedimos-vos o arrependimento sincero dos pecados passados, a plena detestação do pecado e a firme resolução de vos arrependerdes; suplicamos-vos que alcanceis o perdão divino pelo sacramento da confissão e pelo testamento de amor do divino Redentor; suplicamos-vos, enfim, que alivieis a dívida da pena temporal devida aos vossos pecados pelas múltiplas obras de satisfação: orações, esmolas, jejuns, mortificações, de que o próximo Ano Santo oferece fácil oportunidade e convite».

Professor Roberto de Mattei in Corrispondenza Romana (publicado em atrevimentos.pt)


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