segunda-feira, 7 de fevereiro de 2022

Servos ou escravos?

A palavra servo foi muitas vezes mal compreendida porque se confundiu a servidão, própria da Idade Média, com a escravatura que foi a base das sociedades antigas e da qual não se encontra qualquer rasto na sociedade medieval... 

Ora, a condição do servo é totalmente diferente da do escravo antigo: o escravo é uma coisa, não uma pessoa; está sob a dependência absoluta do seu dono que possui sobre ele direito de vida e de morte; qualquer actividade pessoal é-lhe recusada; não conhece nem família, nem casamento, nem propriedade.

O servo, pelo contrário, é uma pessoa, não uma coisa, e tratam-no como tal. Possui uma família, uma casa, um campo e fica desobrigado em relação ao seu senhor logo que pague os censos. Não está submetido a um patrão, está ligado a um domínio: não é uma servidão pessoal, mas uma servidão real. 

A restrição imposta à sua liberdade é que não pode abandonar a terra que cultiva. Mas, notemo-lo, essa restrição não deixa de ter uma vantagem, já que, embora não possa deixar a propriedade, também não podem tirar-lha; esta particularidade não estava longe, na Idade Média, de ser considerada um privilégio... 

O rendeiro livre está submetido a toda a espécie de responsabilidades civis que tornam a sua sorte mais ou menos precária: se se endivida, podem confiscar-lhe a terra; em caso de guerra, pode ser forçado a tomar parte nela, ou o seu domínio pode ser destruído sem compensação possível. O servo, esse, está ao abrigo das vicissitudes da sorte; a terra que trabalha não pode escapar-lhe, da mesma maneira que não pode afastar-se dela.

Esta ligação à gleba é muito reveladora da mentalidade medieval, e, notemo-lo, a este nível, o nobre está submetido às mesmas obrigações que o servo, porque ele tampouco pode em caso algum alienar o seu domínio ou separar-se dele de qualquer forma que seja: nas duas extremidades da hierarquia encontramos essa mesma necessidade de estabilidade, de fixação, inerente à alma medieval, que produziu a França e de uma maneira geral a Europa ocidental. 

Não é um paradoxo dizer que o camponês actual deve a sua prosperidade à servidão dos seus antepassados; nenhuma instituição contribuiu mais para o destino do campesinato francês; mantido durante séculos sobre o mesmo solo, sem responsabilidades civis, sem obrigações militares, o camponês tornou-se o verdadeiro senhor da terra; só a servidão poderia realizar uma ligação tão íntima do homem à gleba e fazer do antigo servo o proprietário do solo. 

Se a condição do camponês na Europa oriental, na Polónia e noutros lugares, permaneceu tão miserável, é porque não houve esse laço protector da servidão; nas épocas de perturbação, o pequeno proprietário, entregue a si próprio, responsável pela sua terra, conheceu as mais terríveis angústias que facilitaram a formação de domínios imensos; donde um flagrante desequilíbrio social, contrastando a riqueza exagerada dos grandes proprietários com a condição lamentável dos seus rendeiros. 

Se o camponês francês pôde desfrutar até aos últimos tempos de uma existência fácil, em relação ao camponês da Europa oriental, não é apenas à riqueza do solo que o deve, mas também e sobretudo à sabedoria das nossas antigas instituições.

Régine Pernoud in 'Lumiére du Moyen Age' (Edit. Grasset et Fasquelle, 1981)


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