quinta-feira, 7 de maio de 2020

Cardeal Müller: Nenhum Bispo tem o direito de proibir as Missas públicas

Este vírus representou uma tragédia para muita gente. Esta é exactamente a razão pela qual a Igreja tem o dever de propor uma visão do sofrimento e da existência humana, na perspectiva da vida eterna, à luz da Fé. A suspensão das Missas públicas é uma demissão desta missão, é a redução da Igreja à dependência do Estado. É inaceitável”. Em chamada telefónica para La Nuova BussolaQuotidiana, o Senhor Cardeal Gerhard L. Müller, ex-Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, é muito claro no seu juízo sobre o que acontece agora em Itália e muitos outros países.

Eminência, para muitos fiéis o sofrimento da doença significou o sofrimento adicional da proibição de assistir à Missa e das exéquias, e, sobretudo, a sua justificação pela hierarquia eclesiástica.

É muito grave, é o pensamento secularista que entrou na Igreja. Uma coisa é tomar precauções para minimizar o risco de contágio, outra é banir a liturgia. A Igreja não é um cliente do Estado, e nenhum Bispo tem o direito de banir a Eucaristia dessa forma. Mais ainda, vimos sacerdotes serem punidos pelos seus Bispos por celebrar Missa para grupo reduzido, o que significa que eles se concebem como funcionários do Estado. O nosso Supremo Pastor, porém, é Jesus Cristo, não Giuseppe Conte ou qualquer Chefe de Estado. O Estado tem a sua função, e assim também a Igreja.

Parece que para muitos é difícil reconciliar o seu dever para com o Estado com a necessidade do culto público a Deus.

Devemos rezar também publicamente porque sabemos que tudo depende de Deus. Deus é a causa universal, depois há a causa secundária que passa pela nossa liberdade. Nós, criaturas finitas, não sabemos quanto do que acontece depende da causalidade de Deus e quanto depende de nós mesmos: este é o propósito da oração. Temos de rezar a Deus para ultrapassar os desafios da nossa vida pessoal e social, mas sem esquecer a dimensão transcendental, aquela visão da vida eterna e íntima união com Deus e com Jesus Cristo, até no nosso sofrimento. Somos chamados a tomar aos ombros, todos os dias, a nossa cruz, mas, aos fiéis, deve ser também explicado o seu sofrimento com as categorias do Evangelho. Proibir a participação na liturgia vai na direcção oposta. Tomar certas medidas externas é tarefa do estado, a nós cumpre-nos defender a liberdade e a independência da Igreja; e a superioridade da Igreja na dimensão espiritual. Não somos uma agência subordinada ao Estado.

Muitos, entre os quais sacerdotes e Bispos, apercebem-se de que há um elevado risco de perder o sentido da liturgia, dada a proliferação de Missas na televisão e Internet.

Estas formas não podem ser consideradas como substituição da Missa. Evidentemente, se se está numa prisão ou campo de concentração, ou outras circunstâncias excepcionais, pode participar-se espiritualmente na Eucaristia, mas esta não é uma situação normal. Deus criou-nos corpo e alma. Deus acompanhou o Seu povo através da História, libertou-o da escravidão do Egipto realmente, que não virtualmente. Jesus, Filho de Deus, fez-Se carne, nós cremos na ressurreição da carne. É por isto que a presença física é absolutamente necessária para nós. Para nós, não para Deus. Deus não precisa dos Sacramentos, somos nós quem precisamos. Deus instituiu os Sacramentos para nós. O matrimónio não funciona só espiritualmente, é necessária a união do corpo e da alma. Não somos idealistas platónicos, não se pode seguir a Missa de casa, a não ser em circunstâncias particulares. Não, deve-se ir à Igreja, reunir-se com os outros, comunicar a Palavra de Deus. Até o vocabulário da Igreja indica esta necessidade: a “Sagrada Comunhão”, comunhão é reunir-se; a Igreja é o Povo de Deus convocado, junto. Diz o salmo: “Como é bom e agradável que os irmãos vivam juntos”.

Há teólogos e Bispos para quem a Eucaristia é sobrevalorizada e não é necessária a Missa Dominical.

Até há um Bispo como Victor Fernandez, que diz orgulhosamente ser um ghost writer do Papa Francisco, que defende que o dever de ir à Missa ao Domingo é um preceito introduzido pela Igreja. É mais um exemplo de desastrosa formação teológica. O terceiro mandamento funda-se no direito divino: obriga os Judeus a santificar o Dia do Senhor. Para nós Cristãos, é o Dia da Ressureição. É também o mandamento de Jesus: “Fazei isto em memória de mim”. E S. Paulo diz “Todas vezes, pois, que comerdes este pão e beberdes este cálice, anunciareis a morte do Senhor” (1 Cor 11:26). Esta é a representação real e sacramental da morte salvífica de Jesus e da Sua ressurreição. Na Missa participamos no Mistério Pascal. O Concílio Vaticano II deixou-o claro na Sacrosanctum Concilium e Lumen Gentium (Nr. 11). E ainda assim há Bispos que dizem que alguns fiéis estão demasiado fixados na Eucaristia. É absurdo. A Eucaristia é a única verdadeira adoração de Deus por meio de Jesus Cristo. Não é só uma entre as tantas formas litúrgicas, mas antes todas as formas litúrgicas têm a sua razão de ser na Eucaristia. Tudo recebe força e consistência da Eucaristia.

Vossa Eminência também vê a manifestação de um claro ataque à Eucaristia, coração da Igreja?

Sim. Basta a pensar naqueles que antes e durante o Sínodo da Amazónia afirmavam veementemente que os povos indígenas tinham absoluta necessidade da Eucaristia e por isso era necessário ordenar sacerdotes entre os homens casados. Agora as mesmas pessoas, sem pudor, defendem o exacto oposto: que não temos necessidade da Eucaristia. Pensam como os protestantes, ignorando que, desde o princípio da Reforma Protestante, é precisamente a Eucaristia o ponto central da controvérsia. E agora temos Bispos que se dizem Católicos que não compreendem o valor central da Eucaristia. É um verdadeiro escândalo: são estes os verdadeiros rígidos, os verdadeiros clericais, não aqueles que levam a sério a palavra de Jesus e a doutrina da Igreja. É uma verdadeira perversão do pensamento. Mas este Catolicismo “moderno” é uma ideologia autodestrutiva. Há necessidade, sobretudo em Itália, de Bispos da estatura de S. Carlos Borromeo, e quem está na Cúria deveria ter como exemplo o Cardeal Roberto Bellarmino.

Nestes meses, ouvimos os vértices da Hierarquia da Igreja afirmar frequentemente que o primeiro dever é salvaguardar a saúde.

É uma Igreja burguesa, secularizada, não uma Igreja que vive da Palavra de Jesus Cristo. Jesus disse “procurai primeiro o Reino de Deus”. De que vale a vida, todos os bens deste mundo, incluindo a saúde, se depois de perde a própria alma? Esta crise mostrou-nos que tantos dos nossos pastores pensam como o mundo, concebem-se mais como funcionários de um sistema religioso social que como pastores de uma Igreja que é comunhão íntima com Deus e com os Homens. Devemos sempre conjugar Fé e Razão. Obviamente que não somos fideístas, não somos como aquelas seitas cristãs que dizem que não temos necessidade da medicina, que confiamos só em Deus. De facto, confiar-se a Deus não contradiz a valorização de todas as possibilidades oferecidas pela medicina moderna. Mas a medicina moderna não substituiu a oração: são duas dimensões que não devem ser separadas nem sequer sobrepostas.

Para justificar a suspensão das Missas com povo, alguns dizem que, se infectamos os outros, somos nós os responsáveis da sua eventual morte.

Os médicos também correm este risco, um risco que existe em toda a actividade humana. Devemos estar atentos a não colocar em perigo a vida e a saúde dos outros, mas este não é o valor supremo. Infelizmente esta situação fez-nos ver que há muitos sacerdotes e Bispos de boa qualidade a quem faltam as bases teológicas para reflectir sobre esta situação e oferecer um juízo coerente com o Evangelho e a doutrina da Igreja.

Talvez também seja por isso que tantos Bispos tenham esnobado o pedido dos fiéis para a consagração ao Imaculado Coração de Maria. No caso italiano, este tornou-se acto de dedicação, e ao final foi realizado de forma negligente e fraudulenta.

Há uma subvalorização do aspecto sobrenatural. Estamos imersos numa concepção naturalista que vem do Iluminismo. Não se pode explicar a Igreja, a Graça, os Sacramentos, na dimensão natural. O coração da nossa Religião Cristã é o Deus transcendente que se faz imanência na nossa vida, é Cristo verdadeiro homem e verdadeiro Deus pela Incarnação.

Parece quase que nos resignámos a seguir um mundo que pensa só em termos naturais, e chamamos a isto realismo.

É a ideologia do pragmatismo. Hoje, por exemplo, prevalece na Igreja a ideia de que necessitamos de Bispos que sejam só pastores, i.e., pragmáticos. Mas o Bispo é ministro da Palavra, deve reflectir sobra a Palavra. S. Paulo e S. Pedro não eram idiotas, os Padres da Igreja não foram só pragmáticos, reflectiram sobre a Fé Cristã e as suas implicações. Um bom Mestre da Fé deve ser capaz de explicar uma situação como a que atravessamos a partir da Fé, no seu sentido sobrenatural, não com o naturalismo. Mais uma vez se deve considerar juntamente as duas dimensões: não podemos reduzir a existência humana à mera natureza, e ao mesmo tempo também não podemos pensar – como sustentam os marxistas – que o Cristianismo tenha que ver só com o além. Em Jesus Cristo temos a unidade entre o além e a imanência da vida. Um bom cristão deve saber ser um óptimo médico e cientista, mas tal não contradiz a confiança em Deus. Há uma integração entre Fé e Razão, entre confiança em Deus e competência nas ciências naturais.


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