quinta-feira, 30 de dezembro de 2021
Considerações sobre o Tempo
Não tenho tempo para nada, é lamento que inúmeras vezes me sai. No entanto não se pode dizer que não faça nada. Mas o que faço, faço-o sem tempo. E como, creio eu, o tempo acaba por ser a medida de todas as coisas, as coisas sem tempo não se podem medir. É como se não existissem.
É paradoxal que tenha sido no tempo finito que a Eternidade infinita Se revelou. Isso diz muito do tempo. O próprio tempo é resgatado da sua finitude, e como que enxertado naquele que não tem ocaso. Como o homem. Um homem sem tempo é um homem sem eternidade.
No Salmo 90 cantamos: "Senhor, Tu tens sido o nosso refúgio de geração em geração(…)Ensina-nos a contar os nossos dias, para que alcancemos a sabedoria de coração".
O tempo da nossa vida precisa de voltar a tornar-se sagrado, de voltar ao ritmo das horas litúrgicas, de voltar a parar ao toque das Avé-Marias, de voltar a ser marcado pela passagem das estações e das festas populares e dos santos.
O nosso tempo tornou-se informe, a nossa vida por isso disforme.
Os avanços tecnológicos, longe de nos pouparem tempo para o ócio que é raiz da nossa civilização, transformaram-nos em máquinas insensíveis e insensatas que correm sem origem e sem destino, com uma única finalidade: a de não parar.
Há uma tendência no homem para a mudança; mas noutro tempo desejavam essa mudança para se aproximarem d’Aquele que não muda, ao passo que hoje querem mudar para se adaptar ao que muda continuamente.
Vamos assim perdendo os laços que o tempo foi construindo e que nos atavam ao nosso lugar e à nossa gente. Ao nosso Deus.
Sem tempo não há raiz que se afunde e que se estenda, perdendo-se o alimento austero mas amoroso que sempre dela corria. Vivemos numa época, como dizia Saint-Exupery, em que o homem morre de sede. E escreveu também: “É belo o movimento que nos leva a alcançar as nossas metas, mas também o é a imobilidade, a estabilidade do património, esse lento costume chamado religião que pouco a pouco dá cor a todas as coisas. É preciso repouso para que a alma se nutra, e o sermão da montanha seja escutado através dos séculos. A mobilidade não é outra coisa que ausência.”
As antigas formas da sociedade, ao impregnar de sagrado quase todas as manifestações da vida temporal, tornavam o tempo permeável ao eterno e a Deus presente na história (Gustave Thibon).Um homem com tempo contempla. E a contemplação leva-nos inevitavelmente a Deus, onde está a nossa origem, onde está o nosso fim.
John Senior– um Pai espiritual que aconselho vivamente nesta época em que tão órfão nos sentimos - deixou dito: “há qualquer coisa de destrutivo – destrutivo do próprio humano – no separar-nos da terra de onde provimos e das estrelas, dos anjos e do próprio Deus para onde vamos”.
Naquele tempo onde havia tempo, era possível que florescesse o amor pela pátria e pela família. Um amor que demorou e que durou séculos. Um amor com tempo que permitia ir fazendo uma casa para várias gerações, que fecundava uma terra onde as nossas raízes se podiam nutrir e espraiar.
Precisamos, meus amigos, de recriar pacientemente e de novo este tempo. Parece-me ser a principal missão de quem, com todo o tempo, tem a dita de participar nestes demorados e tão bem preparados almoços mensais.
Ante os conservadores que criam obstáculos ao futuro e aos progressistas que renegam o passado, devemos ser antes de mais homens do eterno – como mo revelou Gustave Thibon, um outro mestre que descobri neste ano que passou -, os homens que renovam, a partir duma fidelidade atenta e incessante, todos os dias posta à prova e todos os dias renascida, aquilo que há de melhor no passado.
Assim podemos viver no tempo todo, passado, presente e futuro, experimentando a Eternidade onde queremos chegar.
Sancte Michael Archangele, defende nos in proelio
Pedro de Castro Pernas
quarta-feira, 29 de dezembro de 2021
Missa de Natal à porta da igreja
terça-feira, 28 de dezembro de 2021
Como irão contar o Natal aos vossos filhos e netos
Estava Jerusalém inundada de luminárias que faziam da noite, dia, quando sobre ela se abateu uma escuridão sombria, trevas tremendas e pavorosas, das quais se arrancavam guinchos lúgubres, gritos lancinantes, sonoras iras raivosas entoando: glória a lúcifer nas profunduras e prazer irrestrito aos homens de vontade autónoma; anunciamos-vos uma grande dor, nasceu-vos hoje um desprotegedor, que o será para todo o povo; isto vos servirá de sinal, encontrareis um menino, adorado por um homem e pela mulher.
Imediatamente, os sacerdotes do género e os príncipes dos ambientalistas acorreram aos campos até encontrarem num estábulo tudo como lhes tinha sido dito. Os géneristas escandalizados com aquela discriminação claramente homofóbica, logo substituíram o homem por uma mulher, mas ao saberem que a primeira era Virgem, prontamente a vituperaram e expulsaram por constituir um péssimo e devastador exemplo para toda a gente ao renegar tão obstinadamente os ensinamentos dos doutores do género –havia a máxima urgência em retirar a criança àqueles pais, uma vez que era óbvia a sua incapacidade de lhe assegurarem uma formação sexual adequada, livre de preconceitos e discriminações.
Os príncipes dos ambientalistas, por seu turno, ao repararem na vaca, cuja emissão de gazes intestinais constituía um factor alarmante para o aquecimento global e consequente iminente fim do nosso planeta, logo dela se apoderaram para a matar ali mesmo, oferecendo-a como um sacrifício propício à mãe terra, intentando aplacar assim a sua ira – é certo que houve uma grande disputa até tomarem a resolução, pois alguns advogavam que se não se podia matar cães (dentro ou fora de canis), muito menos uma vaca, uma vez que era muito maior pois, de facto, argumentavam, se todos podemos fulminar melgas por serem pequenas, então não se pode aniquilar um bovino por ser muito maior; os sectários da matança do boi (pois, uma vez que a identidade de género não passa de uma construção social, tanto monta uma nomeação feminil como masculina) convenceram, no entanto, os seus adversários, provando que o impacto ambiental do cão era insignificante em comparação com a vaca.
Quanto ao burro, que tinha suportado tão grandes humilhações, sendo compelido violentamente, como se fora uma mísera besta, a percorrer tão longo caminho suportando a intolerável carga daqueles humanos – os terríveis predadores da natureza –, a mãe grávida e seu filho, era absolutamente imperativo reconhecer a sua eminente dignidade divina, para reparar uma injúria tão blasfema e sacrílega. Por isso, encaminhando-o para fora daquele reles presépio, de pronto lhe construíram um altar, adorando-o e ofertando-lhe oblações e sacrifícios dignos de tão magnificente divindade, a qual correspondia aos louvores e adorações com jubilosos zurros.
Imediatamente, os sacerdotes do género e os príncipes dos ambientalistas acorreram aos campos até encontrarem num estábulo tudo como lhes tinha sido dito. Os géneristas escandalizados com aquela discriminação claramente homofóbica, logo substituíram o homem por uma mulher, mas ao saberem que a primeira era Virgem, prontamente a vituperaram e expulsaram por constituir um péssimo e devastador exemplo para toda a gente ao renegar tão obstinadamente os ensinamentos dos doutores do género –havia a máxima urgência em retirar a criança àqueles pais, uma vez que era óbvia a sua incapacidade de lhe assegurarem uma formação sexual adequada, livre de preconceitos e discriminações.
Os príncipes dos ambientalistas, por seu turno, ao repararem na vaca, cuja emissão de gazes intestinais constituía um factor alarmante para o aquecimento global e consequente iminente fim do nosso planeta, logo dela se apoderaram para a matar ali mesmo, oferecendo-a como um sacrifício propício à mãe terra, intentando aplacar assim a sua ira – é certo que houve uma grande disputa até tomarem a resolução, pois alguns advogavam que se não se podia matar cães (dentro ou fora de canis), muito menos uma vaca, uma vez que era muito maior pois, de facto, argumentavam, se todos podemos fulminar melgas por serem pequenas, então não se pode aniquilar um bovino por ser muito maior; os sectários da matança do boi (pois, uma vez que a identidade de género não passa de uma construção social, tanto monta uma nomeação feminil como masculina) convenceram, no entanto, os seus adversários, provando que o impacto ambiental do cão era insignificante em comparação com a vaca.
Quanto ao burro, que tinha suportado tão grandes humilhações, sendo compelido violentamente, como se fora uma mísera besta, a percorrer tão longo caminho suportando a intolerável carga daqueles humanos – os terríveis predadores da natureza –, a mãe grávida e seu filho, era absolutamente imperativo reconhecer a sua eminente dignidade divina, para reparar uma injúria tão blasfema e sacrílega. Por isso, encaminhando-o para fora daquele reles presépio, de pronto lhe construíram um altar, adorando-o e ofertando-lhe oblações e sacrifícios dignos de tão magnificente divindade, a qual correspondia aos louvores e adorações com jubilosos zurros.
Exaustos da cerimónia orgiástica, o frenesim foi diminuindo até que se dirigiram de novo ao presépio onde depararam com gentes esfarrapadas entoando, diante da criança envolta em paninhos, uma estranha antífona: Baixíssimo, impotente, grosseiro escravo, a ti todo o aviltamento, o desprezo, a desonra e toda a maldição. A ti só, baixíssimo, se hão de prestar e todo o ser humano é digníssimo de te nomear.
De súbito, um estardalhaço de trovão ribombante atroou os campos articulando palavras retumbantes: Sou o vosso Deus, o vosso Pai, que vos tem conduzido através da história operando prodígios de amor e Este é o Meu Filho humanado que vos enviei para vos resgatar.
Imediatamente, à uma, os sacerdotes do género e os príncipes dos ambientalistas desataram numa gritaria estridente enquanto tapavam os ouvidos, não fossem escutar blasfémias maiores.
Espumando raivas incontidas e ódios viscerais desenfaixaram a criança e enquanto o faziam os príncipes dos ambientalistas logo pontificaram que a ser verdade ou ao menos que houvesse uma suspeita razoável da criança ser deus incarnado seria então necessário condená-lo, sem demora, à morte, uma vez que esse deus era malvado, um perigo extremo para o desenvolvimento sustentável. Não tinha ele arrasado as fertilíssimas terras de Sodoma e de Gomorra, tornando-as totalmente estéreis e matando toda a fauna marítima no mar, que por isso mesmo se chama morto? A esta indignação se ajuntou a ira descontrolada dos sacerdotes do género, acusando esse deus de homofobia, de discriminação, de coração duro, mente fechada, alheio a qualquer tipo de misericórdia.
Entretanto, desenfaixada a criança, verificaram se tratava de um varão, de um menino. Este horror veio irritar e transtornar ainda mais os sacerdotes do género, que, imediatamente, em cóleras desenfreadas acusaram a divindade de ser uma fraude, um resquício de uma projecção patriarcal, pois era evidente que o verdadeiro deus, caso se fizesse homem traria no seu corpo simultaneamente todas as características da sua identidade, a saber, lgbtqi. Aliás, a única divindade era a terra e os que naquela diversidade a habitavam.
Sem mais hesitações, num arrebatamento de indignação, desfizeram a manjedoura, e aproveitando os pregos e as tábuas da mesma, com ela formaram uma pequena cruz. Unanimemente o consideraram culpado, um engano do maligno, e todos concordaram que deveria ser crucificado. Como os pregos se mostraram demasiado grossos para prender os pulsos e os pés do Menino, arranjaram uns alfinetes especiais que serviam o propósito. Alguns dos que o escarneciam, impacientes com a demora da sua morte, recorreram a um canivete suíço para lhe trespassar o coração, do qual brotou sangue e água.
Verificada a sua morte, todos se regozijaram e a celebraram com um grande banquete, pois tinham conseguido salvar o planeta e o prazer promíscuo sem freio.
De súbito, um estardalhaço de trovão ribombante atroou os campos articulando palavras retumbantes: Sou o vosso Deus, o vosso Pai, que vos tem conduzido através da história operando prodígios de amor e Este é o Meu Filho humanado que vos enviei para vos resgatar.
Imediatamente, à uma, os sacerdotes do género e os príncipes dos ambientalistas desataram numa gritaria estridente enquanto tapavam os ouvidos, não fossem escutar blasfémias maiores.
Espumando raivas incontidas e ódios viscerais desenfaixaram a criança e enquanto o faziam os príncipes dos ambientalistas logo pontificaram que a ser verdade ou ao menos que houvesse uma suspeita razoável da criança ser deus incarnado seria então necessário condená-lo, sem demora, à morte, uma vez que esse deus era malvado, um perigo extremo para o desenvolvimento sustentável. Não tinha ele arrasado as fertilíssimas terras de Sodoma e de Gomorra, tornando-as totalmente estéreis e matando toda a fauna marítima no mar, que por isso mesmo se chama morto? A esta indignação se ajuntou a ira descontrolada dos sacerdotes do género, acusando esse deus de homofobia, de discriminação, de coração duro, mente fechada, alheio a qualquer tipo de misericórdia.
Entretanto, desenfaixada a criança, verificaram se tratava de um varão, de um menino. Este horror veio irritar e transtornar ainda mais os sacerdotes do género, que, imediatamente, em cóleras desenfreadas acusaram a divindade de ser uma fraude, um resquício de uma projecção patriarcal, pois era evidente que o verdadeiro deus, caso se fizesse homem traria no seu corpo simultaneamente todas as características da sua identidade, a saber, lgbtqi. Aliás, a única divindade era a terra e os que naquela diversidade a habitavam.
Sem mais hesitações, num arrebatamento de indignação, desfizeram a manjedoura, e aproveitando os pregos e as tábuas da mesma, com ela formaram uma pequena cruz. Unanimemente o consideraram culpado, um engano do maligno, e todos concordaram que deveria ser crucificado. Como os pregos se mostraram demasiado grossos para prender os pulsos e os pés do Menino, arranjaram uns alfinetes especiais que serviam o propósito. Alguns dos que o escarneciam, impacientes com a demora da sua morte, recorreram a um canivete suíço para lhe trespassar o coração, do qual brotou sangue e água.
Verificada a sua morte, todos se regozijaram e a celebraram com um grande banquete, pois tinham conseguido salvar o planeta e o prazer promíscuo sem freio.
Padre Nuno Serras Pereira
segunda-feira, 27 de dezembro de 2021
O Deus Na Caverna, uma descrição magnífica do Natal – G.K. Chesterton
Este esboço da história humana começou numa caverna: a ciência popular associou o conceito de caverna ao de cavernícola. Nas cavernas descobriram-se desenhos arcaicos de animais. A segunda metade da História humana, que equivale a uma nova criação do mundo, começa, também, numa caverna.
E para que a semelhança seja maior, também existem animais nesta caverna. Porque se trata de uma cova usada como estábulo pelos montanheses que habitavam as terras altas dos arredores de Belém e que, ainda hoje, recolhem, ao cair da noite, os seus gados a esses lugares. A ela chegou, uma noite, um casal sem lar, que teve de compartilhar, com as bestas, daquele refugio subterrâneo, depois de todas as portas das casas da povoação se lhes terem fechado, surdas às suas súplicas.
Foi aí, debaixo da terra pisada pelos indiferentes, que nasceu Jesus Cristo. Mas, nesta segunda Criação havia, sem dúvida, alguma coisa de simbólico como nas rochas primitivas. Deus foi, também, um cavernícola; também Ele desenhou figuras estranhas de criaturas, de caprichoso colorido sobre os muros do mundo, porém, a estas figuras lhe deu Ele vida desde logo.
A lenda e a literatura, inesgotáveis, repetem, à saciedade, as variantes deste paradoxo: que as mãos que fizeram as estrelas e o sol foram tão pequenas que não alcançaram, sequer, à cabeça das bestas que cercavam o seu berço. Sobre este paradoxo, sobre esta pilhéria, diríamos melhor, se funda toda a literatura da nossa Fé. O gracejo escapa à toda a crítica científica, tem todas as virtudes da verdade, salvo a de não ser verdade.
O contraste entre a criação cósmica e o nascimento infantil e minúsculo foi repetido, reiterado, sublinhado, cantado e salmodeado em centenas de milhares de hinos, de ritos, de cânticos, de poemas, de descrições e de pinturas. Por ele, necessita-se de um espírito crítico muito superior para emancipar-se da sugestão constante da associação de ideias.
Os críticos modernos dão uma grande importância à educação na vida e à psicologia na educação. Estão fartos de dizer-nos que as primeiras impressões são as que fixam o caráter, assinalando, como exemplos angustiosos o do rapaz que perturba seu sentido visual com as cores falsas de um prisma, ou cujos nervos são prematuramente sacudidos por um exterior cacofônico. Nós fundamos, precisamente nisto, a nossa afirmação de que há uma diferença entre o nascer cristão e o nascer judeu, muçulmano ou ateu.
As crianças católicas, em vez disso, aprenderam tudo nos cadernos e nas estampas. As protestantes nas narrativas, e uma das primeiras impressões recebidas pela sua imaginação foi esta combinação terrível de ideias em contraste. Não se trata simplesmente de uma diferença teológica, mas sim de uma diferença psicológica.
Os agnósticos e os ateus, que na sua juventude conheceram o Nascimento, que assistiram a esta festa cristã, não poderão nunca impedir, por maiores esforços que façam, que na sua mente se opere esta associação de ideias: a ideia de um menino e a ideia de uma força desconhecida capaz de sustentar as estrelas. O seu instinto fará, imediatamente, esta associação de ideias, por mais que a sua razão procure convencer-se de que não há necessidade de realizar-la.
Mais ainda: a simples visão de um quadro que representa uma mãe com um filho terá para ele como que um sabor de religião, e, da mesma maneira, experimentará uma sensação de piedade e de ternura com a tão só menção do nome de Deus. Ainda que ambas estas ideias não necessitem estar combinadas. Naturalmente que não seriam associadas para a imaginação de um grego ou de um chinês antigos, fossem eles Aristóteles ou Confúcio.
Não obstante se hão arraigado em nossa mente, porque somos cristãos, e em consequência da Natividade. Quer isso dizer que psicologicamente somos cristãos, ainda que teologicamente não queiramos sê-lo. Há uma grande diferença entre o homem que sabe e o que não sabe. É indispensável que esta diferença exista entre o muçulmano, o judeu e nós mesmos, para que no nosso horóscopo particular se verifique essa cruz de duas luzes particulares, essa conjunção de duas estrelas. Omnipotência e impotência, ou divindade e infância, formam, definitivamente, uma espécie de epigrama que não se pode apagar nem desfigurar por milhões e milhões de vezes que se repita. Belém é, enfaticamente, o lugar onde os extremos se tocam.
Aqui começa — não é necessário dizê-lo — uma nova influência para a humanização do Cristianismo.
Se o mundo necessitasse tomar um aspecto do Cristianismo que não desse lugar a controvérsias, seguramente escolheria o Natal. E não é necessário falar do que se poderia estimar um aspecto controvertível (não quero em um só instante de meu raciocínio imaginar porque): o respeito unânime à Santíssima Virgem. Quando eu era pequeno, uma geração mais puritana opôs-se à colocação de uma estátua, numa igreja paroquial, representando a Virgem e o Menino Jesus. Depois de muitas discussões, transigiu-se em que se suprimisse o Menino. Acreditava-se que a Mãe tornava-se menos perigosa despojando-a do que lhe era uma espécie de defesa.
Tudo inútil. Não se pode arrancar dos braços da estátua de uma Mãe a figura do seu recém-nascido. Não se pode separar dela. Da mesma maneira, não se pode suspender no ar a ideia de um recém-nascido, isola-la, esmiúça-la. A ideia da Mãe vai, forçosamente, unida, associada. Não se pode chegar ao filho senão através da Mãe. Se pensamos em Cristo, neste aspecto, a ideia segue, como segue a história. Não se pode separar a ideia de Cristo da ideia da Natividade, e, como nos quadros antigos, compreender que estas duas sagradas cabeças estão demasiado juntas, demasiado unidas, para que seja possível estabelecer uma separação entre os halos luminosos que as circundam.
O Universo reencontra-se. No meu entender, todos os olhares de poderio e de esforço esparramados por fora, pelas coisas grandes, voltam-se, agora, para dentro, para as coisas menores. As imagens multiplicam ante esta maravilha de múltiplos olhares convergentes que dão às imagens católicas tantas cores como as que tem a cauda do pavão real. Deus, que fora, sempre, uma circunferência, é considerado como um centro, e um centro é infinitamente pequeno. A espiral espiritual vem de fora para dentro não de dentro para fora. É, neste sentido, centrípeta, não centrífuga. A fé se converte, em muitíssimos aspectos, numa religião de coisas pequenas. Mas, as suas tradições, consagradas na arte, na literatura e nas lendas populares, justificam, suficientemente, esse maravilhoso paradoxo que significa a Divindade no berço. Talvez não se tenha concebido, ainda, com tanta clareza, a significação da Divindade na Caverna.
Tem se procurado reproduzir a cena de Belém com a maior pontualidade de tempo e de espaço, de paisagem e de arquitetura. Mas, enquanto todos coincidem em que se trata de um estábulo, poucos sabem que se trata, também, de uma caverna. Alguns críticos têm querido encontrar uma contradição entre estas duas coisas, de forma que demonstram saber muito pouco dos costumes da Palestina. E, como tenham visto diferenças em onde não as há, bom será assinalar essas diferenças onde elas existem.
Porque um crítico bem conhecido disse, por exemplo, que Cristo, nascido numa caverna rochosa, é como Mitra, saindo de uma rocha. Fez, assim, uma paródia de religião comparativa, comparando uma mentira com uma história. Isto, à parte da ideia de Palas saindo amadurecido do cérebro de Zeus, é o que mais se pode opor à ideia de um Deus nascido como um menino qualquer e em situação de dependência absoluta da sua mãe. É estúpido procurar equipará-las apenas pela repetição do conceito pedra. Tão estúpido como comparar o castigo do Dilúvio com o baptismo no Jordão, porque em ambos os acontecimentos intervém a substância água.
O evidente é, como dizia antes, que a caverna não foi interpretada tão comum e claramente como um símbolo, como as demais realidades que cercam a primeira Natividade. A explicação pode ser encontrada na dificuldade que apresenta o achado de uma nova dimensão. Cristo nasceu não só na superfície do mundo, mas, dentro do mundo. O primeiro acto do drama divino desenvolveu-se não no cenário superficial, à vista dos que o olhavam, senão num cenário escondido e escuro, distante da luz; e é esta uma ideia muito difícil de expressar-se de uma maneira artística. Os artistas de todos os tempos, quanto mais sabiam de realismo e de perspectiva, menos podiam pintar, ao mesmo tempo, os Anjos no Céu e os rebanhos nas colinas, e a glória da obscuridade, debaixo e dentro dessas colinas.
Seria inútil procurar dizer nada de original, nada de novo, acerca da concepção de uma divindade nascida como um Jesus Cristo, como um caído sem lar e sem lei, e, precisamente, com os atributos da máxima lei e do máximo dever para os pobres e para os sem lei. Naquele momento é quando adquire profunda e verdadeira significação a verdade de que já não há mais escravos. Haverá, não obstante, gente que carregue com este título legal, enquanto a Igreja não tiver poder suficiente para extirpá-lo; mas, já não existirá o estado de servilismo dos pagãos. O indivíduo adquire uma importância nova. Um homem não pode já ser um simples meio para um fim. De nenhuma maneira, o meio para o fim de outro semelhante.
Este facto popular e fraternal tem sua analogia com a história dos Pastores que se encontraram, tête-a-tête, um dia, falando com o Rei dos Céus. Os homens do povo, os homens humildes, como os pastores, foram, em todas as partes, os criadores dos mitos. Foram eles os criadores das ideias venturosas, da mitologia, que foi bem como um afã de investigação. Souberam decifrar que a alma de uma paisagem é uma história e a alma de uma história é uma personalidade.
O racionalismo destroçara já estes tesouros de imaginação, realmente irracionais, do homem rústico, ao qual se arrancava do lar com um procedimento sistemático de escravidão. Sobre todas estas ingenuidades caiu um crepúsculo de desilusão. As Arcádias desaparecem ao tirarem-nas do bosque. Pan morreu, e os pastores esparramaram-se com as suas ovelhas. E, no entanto, a hora estava próxima em que tudo ia mudar. Ainda que ninguém o ouvisse, estava próxima a hora em que das montanhas partiria um grito de libertação, numa língua desconhecida.
Os pastores encontravam, afinal, o seu pastor. O que encontravam, então, estava de acordo com as coisas que viam todos os dias. O populacho equivocou-se em muitas coisas, mas não se equivocou crendo que as coisas sagradas teriam uma habitação, e que a Divindade não necessita desdenhar dos limites do tempo e do espaço. Os bárbaros que conceberam a fantástica ideia do sol captado e encerrado numa caixa, ou o mito selvagem daquele deus que era resgatado com a pedra com que abatia a seu inimigo, estavam mais aproximados do sublime segredo da caverna e sabiam mais das vicissitudes do mundo que todos os habitantes das cidades que circundavam o Mediterrâneo e que se contentaram com frias abstrações ou com generalizações cosmopolitas; mais que todos os que fiavam delgadíssimo o pensamento na troca do transcendentalismo de Plauto ou do orientalismo de Pitágoras.
Todos sabemos que na representação da história popular dos pastores, em autos e comédias, atribui-se a eles o vestido, o idioma e a paisagem, separadamente das comarcas de Europa e da Inglaterra. Sabemos, também, que, desses pastores, uns falam o dialeto de Somerset, e outros nos dizem que levam o seu gado de Conway para Clyde. Muitos sabemos, não obstante, quanta verdade encerra este erro, quão sábio, quão artístico, quão intensamente cristão e católico é este anacronismo. Por isso é lamentável que alguns críticos modernos vejam só um classicismo forçado no facto de que homens como Crashaw e Herrick concebessem os pastores de Belém sob a forma dos pastores virgilianos. E, não obstante, eles estão certos, e, convertendo sua comédia de Belém em uma égloga latina, não fizeram mais do que unir os dos mais importantes degraus da história humana. Virgílio, como já vimos, representa o paganismo sensato, enfrentando o paganismo insensato que sacrifica o homem; mas, as virtudes virgilianas e o seu paganismo sensato estavam em incurável decadência, delineando um problema cuja solução não chegou a revelar-se aos Pastores.
Se o mundo houvesse feito uma escolha, ao cansar-se de ser demoníaco, se teria curado, simplesmente, com o ser sensato. Mas, também, se tivesse se cansado de ser sensato, o que teria acontecido? O sucesso esperado é o que alegra aos pastores da égloga arcadiana. Uma das églogas é considerada uma profecia do que ia acontecer. Mas onde encontramos maior identificação com o grande acontecimento é no tom e na dicção acidental do grande poeta, e, mais ainda, nas próprias frases humanas dos pastores virgilianos: incipe, parve puer, risu cognoscere matrem… Nele encontram o melhor que existe nas remotas tradições dos latinos. Alguma coisa mais que um ídolo de madeira presidindo para sempre a família humana: um Deus e um Lar. A mitologia tem muitos erros, porém não andou muito mal em ser tão carnal como a Encarnação. Com voz parecida à que se supõe ressoou nas grutas, pode gritar outra vez: “Vimos, Ele nos viu, um Deus visível!”, a cuja voz os pastores dançam alegremente nos cimos sobre a frieza dos filósofos. Mas os filósofos também ouviram o grito.
Entretanto, fica, ainda, outra história estranha e bela. Os filósofos chegaram às terras do Oriente, coroados com a majestade de reis e vestidos com o mistério dos magos. Seu mistério é tão melodioso como seus nomes: Melchor, Gaspar, Baltasar. Acompanha-os toda a sabedoria que tem olhado as estrelas da Caldeia e o sol da Pérsia. Nele vemos a mesma curiosidade que impulsiona a todos os sábios. Anima-os o mesmo ideal humano, como se fossem seus nomes Confúcio, Pitágoras ou Platão.
Eram dos que indagavam, não a lenda, mas a verdade das coisas. A sua sede de verdade, era sede de Deus, e tiveram a sua recompensa. O prémio foi ver completo o que estava incompleto. Nas suas próprias traduções e nos seus próprios raciocínios encontravam confirmado que aquilo era a Verdade. Confúcio teria encontrado uma nova fundação da família na Sagrada Família. Buda veria novas renúncias: de estrelas mais que de jóias, de divindade melhor do que realezas. Buda desceria do seu paraíso impessoal para adorar a uma pessoa. Confúcio deixaria os seus templos de adoração ao passado para vir adorar a uma criança, a um Menino.
O novo cosmos era mais amplo que o velho, porque o Cristianismo é maior que a Criação, tal e como era antes de Cristo, porque nele se incluem as coisas que eram e as que não eram. Vale a pena insistir neste ponto, estabelecendo uma comparação com a crença piedosa dos chineses, que é semelhante à virtude de outras crenças pagãs. Ninguém ignora que forma parte das nossas doutrinas um razoável respeito aos pais, do qual Deus mesmo participou, durante a sua meninice, com respeito aos seus pais da terra. Mas, no respeitante ao amor dos pais, para Ele, a ideia é completamente distinta à da crença confuciana. O menino Cristo nunca é semelhante ao menino Confúcio; o nosso misticismo concebe-o numa eterna infância. A Confúcio não se lhe aparecera nunca o Menino como chegou aos braços de S. Francisco.
A Igreja contém o que o mundo não contém. A própria vida não atende tão bem como a Igreja a todas as necessidades de viver. A Igreja pode orgulhar-se da sua superioridade sobre todas as religiões e sobre todas as filosofias.
Onde têm os estóicos e os adoradores do passado um Menino Jesus? Onde está a Nossa Senhora dos muçulmanos, a mulher que não foi feita para nenhum homem e que está sentada por cima de todos os anjos? Qual é o S. Miguel dos monges de Buda, cavaleiro e clarim que guarda para cada soldado a honra da espada? Quem poderia representar S. Tomás de Aquino na mitologia do bramanismo, ele que restabeleceu a ciência e o raciocínio da Cristandade?
E o mesmo nas filosofias ou heresias modernas. Como passaria Francisco, o Trovador, entre os calvinistas e, ainda, entre os utilitaristas da escola de Manchester? Como passaria Joana d’Arc, uma mulher, esgrimindo a espada que conduzia os homens à guerra, entre os Quakers ou a seita toltoiana dos pacifistas? E, entretanto, homens como Bossuet e Pascal são tão lógicos e tão analistas como qualquer calvinista ou utilitarista, e inumeráveis santos católicos passaram suas vidas predicando a paz e evitando as guerras. Outro tanto sucede com as ultra-modernas tentativas de novas religiões. Nenhuma foi capaz de fazer uma coisa que, ainda em sendo maior que o Credo, não deixasse algo de fora.
Os teosofistas edificam um panteon, mas um panteon só para panteístas. Chamam, ostensivamente, Parlamento de Religiões ao que não é mais do que um parlamento de pedantes. Elevou-se um panteon fazem dois mil anos nas margens do Mediterrâneo e convidou-se os cristãos a colocarem a imagem de Cristo ao lado das de Júpiter, de Mitra, de Osíris, de Átis e de Amon. A negação dos cristãos foi o que mudou o curso da História. Se os cristãos tivessem aceitado, eles e o mundo inteiro, teriam caído — se nos permite a grotesca metáfora — no grande caldeirão onde se liquidavam já, em cosmopolita corrupção, todos os outros mitos e mistérios.
Há a registrar o importante facto de que os Magos, que representam no Nascimento o mistério e a filosofia, foram levados pelo desejo de indagar alguma coisa nova, e encontraram, realmente, alguma coisa inesperada. Porque, nesta ideia de investigação e de descobrimento que inspira a Natividade, chega-se, com efeito, à descoberta de uma verdade científica.
Nas outras figuras místicas da milagrosa comédia — no Anjo e na Mãe, nos pastores e nos soldados de Herodes — poderão ver-se os aspectos, às vezes, mais simples e mais sobrenaturais, porém, elementares ou mais emocionantes. Mas, aos Reis do Oriente há que considerá-los no seu desejo de sabedoria; a luz que vão receber dirige-se, directamente, ao intelecto. E a luz é esta: que o credo católico é o único católico e nada mais que católico. A filosofia da Igreja é universal. A filosofia dos filósofos não o é.
Se Platão ou Pitágoras ou Aristóteles houvessem podido receber por um instante a luz saída da pequena cova, se convenceriam, eles mesmos, de que sua própria luz não era universal. O descobrimento desta grande verdade é o que dá a sua tradicional majestade e mistério às figuras dos três Reis; o descobrimento de que a religião abarca mais do que a filosofia, e que esta Religião é a que mais abarca de todas as religiões. O grande paradoxo do grupo que contemplamos na caverna é que, enquanto a nossa emoção tem uma simplicidade infantil, nossos pensamentos enlaçam-se com uma complexidade infinita. Contentemo-nos em dizer que a mitologia apareceu com os pastores, e a filosofia, com os Magos, e que ambas se fundaram no reconhecimento da religião.
Houve um terceiro elemento que não deve ser ignorado. Esteve presente, com efeito, desde as primeiras cenas do drama aquele Inimigo que sujou as legendas com o pecado e congelou as teorias do ateísmo. Este Inimigo não tardou em ter uma intervenção imediata. Herodes, alarmado com os rumores de que surgira um misterioso rival, revive o gesto selvagem dos caprichosos déspotas da Ásia, e ordena o assassinato da nova geração popular. Toda a gente conhece a história, mas nem todos perceberam o seu significado, nem, ainda, o flagrante contraste em que está com as colunas corintias e com as calçadas romanas daquele mundo superficialmente civilizado. Quando o tenebroso plano começou a fazer brilhar os olhos de Herodes, pode-se ele aperceber de que uma sombra pardacenta se lhe projectava por detrás, olhando por cima dos seus ombros. A mirada era a do Moloch dos cartagineses. Era a do demónio que, neste primeiro festival da Natividade queria celebrar, também, a sua própria festa.
Se não compreendemos bem a presença do Inimigo, estamos expostos a falsear a significação da Natividade. A Natividade para nós, no Cristianismo, chegou a ser uma coisa doce, aprazível, singela, quando, na realidade é uma coisa muito complexa. Não é uma nota única, senão o som resultante e simultâneo de muitas notas juntas: a humildade, a alegria, a gratidão, o medo místico; mas, ao mesmo tempo, o alarma e o drama. Não é só uma comemoração para os pacifistas e para os romeiros; não é só uma conferência da paz entre judeus, nem só uma festa de inverno escandinavo.
Há nela, também, algo de luta e de desafio. Alguma coisa que faz com que quando os sinos tangem, à meia-noite, o seu tangido seja horrível como o troar do canhão numa batalha, numa batalha que se acaba de ganhar. A atmosfera de festa que respiramos nas Natividades, como uma reminiscência da festa daquele sagrado dia, não nos pode fazer esquecer que a festa do Nascimento celebrou-se numa masmorra, numa como fortaleza subterrânea adiantada no campo inimigo, cujas hordas pisavam por cima. Herodes, inquieto, sentia que o ataque vinha de baixo da terra e se desmoronava como se desmoronava um palácio. O significado é bem clara: de baixo viria a força que sacudiria e abateria o orgulho das torres e dos palácios.
Os homens, que, até então, tinham dirigido as suas vistas para o alto, hão de olhar para baixo, agora, se quiserem descobrir o Céu. O Olimpo permanecia suspenso no firmamento como uma nuvem branca e quieta de formas suntuosas. A filosofia estava, ainda, encimada mais alto, nos tronos reais, enquanto Cristo nascia numa cova e a cristandade nas catacumbas. A realeza, a majestade hão de ser recuperadas pelo seu verdadeiro possuidor, por alguma coisa que indubitavelmente é uma revolução.
O grande paradoxo da caverna é esse: por um lado, é um buraco, um recanto desprezível onde os sem-pátria se amontoam como escórias; por outro, é como um palácio encantado, algo mui valioso que os tiranos procuram como um tesouro. Os falsos reis mandam para esse recanto os párias, porque não querem recordá-los; mas, também, porque, com pesar seu, querem tê-los sempre presentes. Este paradoxo é a iniciação da vida da Igreja. Era importante ao mesmo tempo que insignificante e impotente. E era importante porque era intolerável, e justo é dizer que era intolerável porque, por sua vez, era intolerante.
Herodes tem o seu papel na comédia milagrosa de Belém, porque significa a ameaça à Igreja militante e no-la apresenta, desde o princípio, perseguida e obrigada a lutar por sua vida. E isto é o que nos propúnhamos neste lugar. Reunir a combinação de ideias que edificam a ideia cristã e católica, e fazer notar que todas elas cristalizaram na bela história da Natividade. Há duas coisas distintas que formam, entretanto, uma só coisa. A primeira é a intenção humana de que um céu há de ser, assim, alguma coisa tão local e tão retraída como um lar. É a ideia que perseguem todos os poetas e todos os mitos pagãos: que uma paragem qualquer pode ser o altar de um deus ou a habitação dum bem-aventurado. Eu não compreendo por que razão o racionalismo se nega a satisfazer esta necessidade. O paganismo é, neste ponto, menos absurdo, pois o caso de Belém e de Jesus está na história de Delos e Delfi, e não está em todo o universo de Lucrécio, nem em todo o universo de Spencer.
O segundo elemento deste estudo é a realização de uma filosofia mais vasta que as outras filosofias: mais vasta que a de Lucrécio e infinitamente mais vasta que a de Spencer. Por ela observamos o mundo através de mil janelas, enquanto que os antigos estóicos e os modernos agnósticos não dispunham senão de uma. Olha a vida com milhares de olhos, correspondentes às mil e mil classes de gente, ali onde os estóicos e os agnósticos não têm mais que um ponto de vista individual. Esta filosofia tem alguma coisa para cada categoria de homem; interpreta os segredos de cada psicologia; é cauta ante as tentações do Demónio; é capaz de distinguir entre as maravilhas autênticas e falsas e resolve os casos mais árduos e mais diversos, tudo com uma multiplicidade e um subjetivismo e uma compreensão de todas as variedades da vida, que nenhuma das filosofias antigas nem modernas foram capazes de alcançar.
O terceiro ponto é que, ao mesmo tempo que reúne a localização da poesia e a maior amplitude da mais ampla filosofia, é, também uma luta e um repto. Porque se deliberadamente está disposta a abraçar qualquer aspecto da verdade, está inflexivelmente disposta a batalhar contra qualquer aspecto do erro. Requer de todo o homem que lute por ela, e toda a classe de armas para essa luta. Proclamava a paz na terra, porém, não esquece nunca porque houve guerra nos Céus. Essa é a trindade de verdades simbolizadas aqui por três personagens da velha história da Natividade: os pastores, os Reis e aquele outro rei que assassinou os meninos.
Não é verdade que as outras religiões sejam, neste aspecto, suas rivais. Não é verdade, tampouco, que qualquer delas reúna essa combinação de caracteres. O budismo jacta-se de ser místico em igual grau, porém, não aspira ser, em grau igual, militante. O islamismo também se jacta de ser em grau igual militante, porém, não quer aspirar a ser em igual grau metafísico e subtil. O confucionismo jacta-se de satisfazer a sede de ordem e de razão dos filósofos, mas não pode satisfazer a sede dos místicos de milagre e de sacramento e de consagração de coisas concretas. São muitas as seguranças da presença de um espírito ao mesmo tempo universal e único.
Resumindo o que é o símbolo e o tema deste capítulo: que não há nenhum motivo na lenda pagã, nem no anedotário filosófico, nem no acontecimento histórico, capaz de impressionar-nos tão profundamente como a palavra Belém; que nenhum nascimento ou infância de um deus ou de um sábio pôde emocionar-nos como a Natividade. Porque aqueles serão, sempre, ou demasiado frios e frívolos, ou demasiado formais e clássicos ou, ainda, demasiadamente simples e selvagens ou ocultos e complicados. Ninguém, quaisquer que sejam as suas ideias, pode ver esses factos como algo íntimo e próprio.
A verdade é esta: que neste episódio da natureza humana, que é o Nascimento, há um caráter individual e peculiarissímo, psicologicamente substancial que não se pode interpretar como uma mera lenda ou a simples história da vida de um grande homem. Porque não incluía as nossas mentes, sistematicamente, para a grandeza, para essa admiração empolada e exagerada dos reis e dos deuses a que, em todas as idades, encontrou propícia a mente humana, senão que é alguma coisa substancial em nós, que nos surpreende de dentro do nosso próprio ser, como se, explorando a nossa habitação espiritual, déramos, de pronto, com um aposento ignorado, até então, do qual saíra uma clara luminosidade.
Alguma coisa que, ainda aos mais endurecidos corações, atraiçoa, com uma irresistível atração para o bem. Alguma coisa que não está feita com o que o mundo chamaria “matéria forte”. Alguma coisa que é tudo o que existe em nós de ternura eterna. Alguma coisa que é a palavra quebrada e a razão perdida, que se concretizam e se fazem positivas. Alguma coisa, por fim, pela qual os reis exóticos vieram de um país distante, os pastores deixaram as suas correrias na montanha e a noite e a caverna imperaram sós, recebendo algo que era mais humano do que a própria Humanidade.
G.K. Chesterton in 'The Everlasting Man'
domingo, 26 de dezembro de 2021
A árdua tarefa de iluminar a Basílica de São Pedro para o Natal
Festa de Santo Estêvão, Protomártir
Santo Estêvão foi o primeiro que seguiu os passos de Cristo com o martírio; morreu, como o divino Mestre, perdoando e rezando pelos seus algozes (Act 7, 60).
Nos primeiros quatro séculos do cristianismo, todos os santos venerados pela Igreja eram mártires. Trata-se de uma multidão inumerável, a que a liturgia chama «o cândido exército dos mártires».
A sua morte não incutia receio nem tristeza, mas entusiasmo espiritual, que suscitava sempre novos cristãos. Para os crentes, o dia da morte, e ainda mais o dia do martírio, não é o fim de tudo, mas a «passagem» para a vida imortal, o dia do nascimento definitivo, em latim «dies natalis».
Compreende-se então o vínculo que existe entre o «dies natalis» de Cristo e o «dies natalis» de Santo Estêvão. Se Jesus não tivesse nascido na terra, os homens não teriam podido nascer no Céu. Precisamente porque Cristo nasceu, nós podemos «renascer»!
Papa Bento XVI, Angelus (26/XII/2006)
quinta-feira, 23 de dezembro de 2021
Evitar a malícia nos juízos e suspeitas
Da mesma maneira, se a nossa alma tiver uma disposição má, tudo lhe fará mal; até as coisas vantajosas serão por ela transformadas em coisas prejudiciais. Não é verdade que, se deitarmos umas ervas amargas num pote de mel, as ervas alteram todo o conteúdo do pote, tornando amargo o mel? É isso que nós fazemos: espalhamos um pouco do nosso azedume e destruímos o bem do próximo, olhando para ele a partir da nossa má disposição.
Há outras pessoas que têm um temperamento que transforma tudo em bons humores, incluindo os alimentos nocivos. Os porcos têm uma excelente constituição. Comem cascas, caroços de tâmaras e lixo. Contudo, transformam estes alimentos em viandas suculentas. Também nós, se tivermos bons hábitos e um bom estado de alma, tudo poderemos aproveitar, incluindo aquilo que não é aproveitável. Muito bem diz o Livro dos Provérbios: «Quem olha com doçura obterá misericórdia» (12, 13). Mas também: «Todas as coisas são contrárias ao homem insensato» (14, 7).
Ouvi dizer de um irmão que, quando ia visitar outro irmão e encontrava a cela descuidada e desordenada, pensava: «Que feliz que é este irmão, que está completamente desprendido das coisas terrenas, elevando totalmente o seu espírito para o alto, de tal maneira que nem tem tempo para arrumar a cela!»
Quando ia visitar outro irmão e encontrava a cela arrumada e em boa ordem, pensava: «A cela deste irmão está tão arrumada como a sua alma. Tal como a sua alma, assim é a sua cela.» E nunca dizia de nenhum deles: «Este é desordenado», ou: «Este é frívolo.»
Graças ao seu excelente estado de alma, de tudo tirava proveito. Que Deus, na sua bondade, nos dê também um estado bom para que possamos tudo aproveitar, sem nunca pensarmos mal do próximo. Se a nossa malícia nos inspirar juízos e suspeitas, transformemo-os rapidamente. Pois não ver o mal do próximo engendra, com a ajuda de Deus, a bondade.
Doroteu de Gaza in Carta 1
Quem nega a validade da Missa de Paulo VI? Preparem-se para uma surpresa
No seu novo (e impressionante) documento, que aumenta as restrições à Missa Tradicional, a Congregação para o Culto Divino e Disciplina dos Sacramento (CCDDS) acusa muitos católicos tradicionais de não reconhecerem a validade da Missa de Paulo VI (Novus Ordo). Por causa disso, dizem, a adesão à liturgia tradicional representa uma séria ameaça à unidade da Igreja.
Mas a CCDDS não fornece qualquer evidência para apoiar essa acusação contra os "tradicionalistas" - assim como, no motu proprio Traditionis Custodes, o Papa Francisco não forneceu qualquer evidência de que o inquérito dirigido aos Bispos tivesse descoberto uma preocupação generalizada sobre os atritos supostamente causado pelo movimento tradicional.
Pessoas de dentro do Vaticano revelam que, nas suas respostas ao inquérito, a maioria dos Bispos não revelou qualquer dificuldade com os "tradicionalistas". E os católicos familiarizados com o movimento tradicional raramente encontram fanáticos que negam a validade da liturgia nova. Mas, ainda que a acusação da CCDDS fosse verdadeira, as medidas apresentadas no novo documento seriam desproporcionais. Deixem-me explicar.
Os católicos que frequentam regularmente a liturgia tradicional constituem apenas cerca de 1% da população católica geral do mundo. Se 1% desses "tradicionalistas" rejeitarem o Novus Ordo (e acho que essa estimativa seria muito alta), então o problema está confinado a uma minoria quase irrisória.
No entanto, entre os católicos que assistem à Missa regularmente nas paróquias "normais", uma esmagadora maioria rejeita a validade da liturgia Novus Ordo!
Pesquisa após pesquisa demonstra que mais de 70% desses católicos não acreditam que Jesus Cristo Se torna verdadeiramente presente - Corpo, Sangue, Alma e Divindade - na Missa. Mas, se Jesus não estiver presente então a Missa não é válida. Portanto, a maioria dos fiéis numa paróquia católica comum acredita que a Missa é inválida. QED.
Claro que poucos desses católicos “comuns” diriam que a Missa é inválida, porque não reconheceriam o o silogismo que fiz no parágrafo anterior. As mais recentes gerações de catequeses miseráveis deixaram milhões de católicos apenas com uma vaga ideia do que é a Eucaristia, do que realmente acontece na Missa. Ainda assim, é evidente que a maioria dos católicos rejeita - ou talvez, mais precisamente, seja indiferente a - esse dogma central da Fé. Se são indiferentes, mais uma razão pela qual se afastam da Igreja. Se rejeitam a doutrina católica, minam a unidade dos fiéis.
Felizmente, a maioria incrédula está enganada, como qualquer tradicionalista que negue a validade da nova liturgia. O Novus Ordo é válido; a Eucaristia é a presença real de Jesus Cristo. Mas, para o bem da unidade da Igreja - para não falar da clareza da doutrina - o facto de que mais de 70% dos fiéis negarem efectivamente os ensinamentos da Igreja sobre a Eucaristia, a "fonte e ápice da vida cristã", é certamente um preocupação mais urgente do que a alegação de que 0,01% nega a validade da nova liturgia.
Phil Lawler in Catholic Culture
quarta-feira, 22 de dezembro de 2021
Bispo tenta acabar com Missa Tradicional mas IBP resiste
Quem estudou Direito sabe que uma das formas de injustiça é a arbitrariedade; uma decisão por parte da autoridade que não tem em conta os seus deveres e os direitos dos súbditos. Infelizmente, hoje em dia na Igreja Católica, o Direito é atropelado a torto e a direito pelos que o deveriam fazer cumprir.
Foi o caso do Arcebispo de Curitiba, que decidiu, sem mais nem ontem, acabar com um apostolado sólido cujos bons frutos estão à vista de todos. O Instituto Bom Pastor decidiu não acatar a ordem injusta, que vai contra a salvação das almas, e resistir à tirânica, com base na Lei da Igreja. Esperemos que outros sigam esse exemplo.
Comunicado do Superior do Distrito da América Latina
Brasília/DF, 20 de Dezembro de 2021
1. Informamos a existência de um decreto extrajudicial de Sua Excelência, Dom José Antônio Peruzzo, Arcebispo de Curitiba, proibindo o exercício de todo o ministério sacerdotal ao reverendíssimo Padre Thiago Bonifácio, IBP, no território dessa mesma Arquidiocese. Consideramos o decreto inválido e nulo segundo o direito canónico e a lei natural. Foi interposto o devido recurso canônico suspensivo do decreto.
2. Asseguramos aos fiéis de nosso apostolado em Curitiba de que não serão abandonados pelo Instituto Bom Pastor.
Permanecemos na fidelidade à Igreja Católica, ao Santo Padre, e à hierarquia católica. O Bom Pastor não abandona as suas ovelhas.
Pe. Daniel Pinheiro, IBP Superior do Distrito da América Latina
Abaixo-assinado pela manutenção do Apostolado do Instituto Bom Pastor em Curitiba-PR: https://chng.it/gyLZV64Z
segunda-feira, 20 de dezembro de 2021
Santa Missa no ponto mais alto do continente Africano
sábado, 18 de dezembro de 2021
Mais um ataque inaceitável contra a Missa Tradicional
Foi hoje publicado um documento interpretativo do motu proprio Traditionis Custodes (TC). O autor do mesmo foi o Arcebispo Artur Roche, que se tem mostrado bastante diferente do seu predecessor - Cardeal Sarah - como prefeito da Congregação para o Culto Divino e Disciplina dos Sacramentos (CCDDS). Muito resumidamente, eis os 8 pontos mais relevantes:
1. Um Bispo pode dar uma dispensa do TC, de modo que a Missa Tradicional seja celebrada regularmente numa paróquia, no entanto tem de o pedir expressamente à Santa Sé.
Esta indicação contradiz o Cân. 87 do Código de Direito Canónico, que diz:
Cân. 87 — § l. O Bispo diocesano, sempre que julgar que isso contribui para o bem espiritual dos fiéis, pode dispensá-los das leis disciplinares tanto universais como particulares promulgadas pela autoridade suprema da Igreja para o seu território ou para os seus súbditos
Como se vê, o TC não vem reconhecer a (suposta) legitimidade dos Bispos em termos de regular a liturgia nas suas dioceses, antes os torna mais dependentes da CCDDS.
2. O Rituale Romanum, usado em cerimónias como o Baptismo ou a bênção de objectos, apenas pode ser usado em paróquias pessoas de Rito Tradicional. Quanto ao Pontificale Romanum, o livro que tem as cerimónias litúrgicas do Bispo, incluindo o Crisma e a Ordenação Sacerdotal, não pode ser usado.
Isto quereria dizer que o Pontificale Romanum foi abrogado. Mas quando? Como? Por quem? Não é dito. É mais uma afirmação profundamente anti-jurídica que não cria qualquer força de lei. Os Bispos devem continuar a Crismas os fiéis em Rito Tradicional e a ordenar os sacerdotes nesse mesmo Rito, sempre que julgarem que o devem fazer.
3. Qualquer sacerdote que não aceite concelebrar o Rito Novo, especialmente na Missa Crismal (na qual o Bispo abençoa os Santos Óleos, Quinta-Feira Santa de manhã) deve ter revogada, pelo Bispo, a "faculdade" para celebrar o Rito Tradicional.
Esta imposição vai directamente contra o direito a não concelebrar a Missa, consagrado no Cân. 902.
4. Um Bispo tem de ter autorização da Santa Sé para conferir a um sacerdote a "faculdade" para poder celebrar o Rito Tradicional.
Mais uma vez a autoridade do Bispo está dependente da CCDDS.
5. Se o sacerdote que celebrar a Missa Tradicional regularmente estiver ausente, por exemplo por doença, o sacerdote que o substituir tem também de pedir a "faculdade" ao Bispo.
6. Os diáconos e outros ministros que participem na Liturgia Tradicional têm também de pedir a "faculdade" ao Bispo para o poderem fazer.
7. Um sacerdote que celebre o Rito Novo diariamente não poderá celebrar uma segunda Missa no mesmo dia se essa Missa for segundo o Rito Tradicional.
8. Um sacerdote que tenha a "faculdade" de celebrar Rito Tradicional não o poderá fazer duas vezes no mesmo dia para dois grupos diferentes, ainda que estes estejam ambos autorizados e sejam reconhecidos pelo Bispo.
Conclusão:
Mais um texto violento, que persegue abertamente os fiéis que frequentam a Liturgia Tradicional como nenhum outro grupo - católico ou não-católico - é perseguido pela Hierarquia da Igreja.
Este documento, à semelhança do TC, sofre de graves incoerências internas e externas, colidindo com várias leis e normas da Igreja Universal que lhe são superiores. É profundamente anti-jurídico e injusto, por isso não deve ser obedecido.
Como explicou o Papa Bento XVI na carta que acompanhou o motu proprio Summorum Pontificum:
«Aquilo que para as gerações anteriores era sagrado, permanece sagrado e grande também para nós, e não pode ser de improviso totalmente proibido ou mesmo prejudicial.»
sexta-feira, 17 de dezembro de 2021
Vida e morte na Cartuxa
Os cartuxos não têm medo de deixar este mundo. O cemitério fica no meio do grande claustro. Todos os dias, a partir do noviciado, os padres caminham ao lado desse local para chegar à igreja.
Quando morre um cartuxo, toda a comunidade se reúne na cela do falecido para o levantamento do corpo. O corpo é conduzido em procissão para a igreja. No coro, o falecido já não está sozinho. Perto do corpo, deitado no chão, os monges rezam por ele.
Os próprios cartuxos cavam as sepulturas que acolhem os seus próprios corpos. O falecido é preso a uma tábua simples baixada para o solo. O cemitério não é grande; regularmente, os monges têm que esvaziar as antigas sepulturas manualmente para haver espaço para os defuntos mais recente. Os crânios e os ossos são primeiro colocados de lado antes de serem colocados de volta na sepultura, ao mesmo tempo que o novo corpo.
Tradicionalmente, o último noviço a entrar no mosteiro segura a cruz processional, colocada ao pé da sepultura. É ele quem vê com mais clareza o corpo do mais velho e o capuz abaixado sobre o rosto.
Segundo as directivas de Guigues, quinto prior do Grande Chartreuse e legislador da ordem, autor do “Estatuto dos Cartuxos” no início do século XII, a cabeça do defunto fica dirigida para a igreja conventual. O jovem monge observa os quatro cartuxos designados pelo prior para despejarem a terra com as pás. Ele ouve o som abafado dos torrões de terra que caem sobre o corpo. O verbo “enterrar” assume todo o seu significado. A comunidade espera até que a sepultura esteja preenchida.
Desde a fundação da Ordem, os dias fúnebres são considerados momentos de celebração. Nesse dia os cartuxos comem, excepcionalmente, no refeitório e não sozinhos nas celas. Se o funeral calhar em dia de jejum, isso não será observado. À noite terão uma refeição completa na sua cela.
Após o enterro, a comunidade reúne-se na sala capitular. O prior faz um sermão e relembra a vida do falecido. Em geral, durante a recreação que se segue ao funeral, os cartuxos falam do irmão que acabou de falecer.
Eles podem entrar na capela dos mortos para reflectir perto dos ossos dos primeiros cartuxos dos séculos XI e XII. A poucos passos das celas, os companheiros de São Bruno dormem neste oratório triste e sombrio. O seus crânios repousam sob o altar-mor. Nos dias de caminhada, os cartuxos vêm a este lugar para rezar antes de partir para percorrer os trilhos da montanha.
No cemitério não há nomes nas sepulturas. De um lado, cruzes de madeira finas e pretas indicam os túmulos dos sacerdotes e dos irmãos leigos. Do outro lado, as cruzes de pedra são reservadas para a última habitação terrena dos priores. Os cartuxos optam primeiro por desaparecer dos olhos do mundo e, depois, dos seus próprios irmãos. Frequentemente, são incapazes de encontrar o túmulo preciso de um monge no cemitério. Os eremitas morrem sem deixar vestígios. O esquecimento segue imediatamente a morte.
No século XIX, os monges fizeram uma descoberta surpreendente. Enquanto cavavam uma cova, ao lado dos mais velhos, encontraram um cadáver perfeitamente preservado. A sua preservação, após décadas no solo, foi um milagre. Os monges correram para o reverendo prior. A sua resposta foi: “Fechem a sepultura, cavem próximo dela e não contem isto a ninguém”.
Da mesma forma, em meados do século XVII, no cemitério do antigo mosteiro cartuxo de Paris, no local do actual jardim de Luxemburgo, os milagres multiplicavam-se no túmulo de um irmão leigo que morrera em odor de santidade. Dom Inocêncio diz que o prior veio ao local para falar com o falecido: “Em nome da santa obediência, proíbo-vos de fazer milagres”. Os fenómenos extraordinários cessaram imediatamente.
Nicolas Diat in 'A Time to Die' (2018)
quinta-feira, 16 de dezembro de 2021
Da Igreja útil à Igreja inútil
Quando a Igreja, em relação ao mundo, se considera apenas útil, depressa acaba por ser considerada inútil. Naturalmente, neste caso, a sua Doutrina Social chegou ao fim.
Na encíclica Caritas in veritate lemos que o Cristianismo não só é útil mas é necessário para o desenvolvimento do homem (n. 4), porque «sem Deus o homem não sabe para onde ir e nem sequer pode compreender quem é» (n. ° 4). 78). Necessário significa que não pode faltar; útil, em vez disso, significa uma presença acidental que, existindo, produz algum efeito positivo mas não essencial e, se não estiver presente, não causa dano. De acordo com Augusto Del Noce (ele diz isso em 'The Problem of Atheism') o modo de pensar da modernidade transformou o Cristianismo de necessário em útil, porque fez do pecado um simples acidente que a dialética histórica ou a práxis humana são capazes de superar por si mesmas. A secularização do pecado e, acima de tudo, a negação do pecado original, produziu um Cristianismo útil, mas não indispensável.
Um mundo sem pecado original é capaz de se fazer por si mesmo e de se dar a salvação ao seu próprio nível, é autónomo e não precisa de Deus nem da Igreja. Mesmo um mundo aniquilado pelo pecado original - como acontece na visão protestante - não precisa de Deus e também nesse caso a religião e a Igreja não têm função essencial e insubstituível. No primeiro caso porque o mundo pensa que faz tudo por si mesmo, no segundo porque o mundo pensa que nada pode fazer de forma alguma, em ambos os casos o mundo é autónomo, adulto, adulto, senhor de si mesmo.
Na Igreja Católica, há muito tempo testemunhamos o seu afastamento do mundo e, ao mesmo tempo, a sua imersão no mundo. A retirada diz respeito à sua crença de que não tem mais algo decisivo e indispensável para trazer ao mundo; a imersão no mundo deriva dessa mesma convicção, pela qual já não acredita ter especificidade (ou missão) própria em relação ao mundo.
A Igreja considera-se apenas útil, mas existem muitas coisas úteis que o mundo usa, mas realmente não precisa de nenhuma delas. A Igreja torna-se um dos tantos instrumentos úteis, mas também, por isso mesmo, inúteis. Se a sua presença no mundo falha, ninguém percebe, nem mesmo os homens da Igreja.
Temos muitas evidências de que isso só pode ser considerado útil, especialmente nos últimos anos e mesmo nos últimos dias. A Igreja que já não defende o direito natural, que já não defende a sua própria doutrina sobre questões morais decisivas, que já não defende a vida, o casamento, a gestão correcta da sexualidade, que aceita fechar igrejas por decreto governamental, que não quer nada mais "católica" na sociedade...é uma Igreja que, depois de se ter considerado útil, passa a considerar-se inútil.
Hoje a Igreja quer tornar-se útil na defesa do meio ambiente colaborando com as agências internacionais, quer trabalhar para defender a democracia do perigo do populismo, pretende ser muito "constitucional" em defesa da Constituição republicana, pensa ser útil por não condenar mais leis injustas, mas trabalhar arduamente para melhorá-las. A Igreja quer ser útil derrubando muros e abençoando tudo o que a sociedade exprime. Para ser útil para o acolhimento ou a reconciliação renuncia para especificar a sua própria doutrina, diante de todos os problemas, não se mostra mais interessada em quê, mas em como, propondo apenas caminhos úteis de diálogo, comparação e unidade.
Mas uma Igreja tão útil já é inútil. Ser “útil para ...” sem especificar o quê, significa deixar o mundo esclarecer, segundo as suas próprias categorias, para que pode e deve ser útil. A Igreja, para ser útil, optou por renunciar à exclusividade dos fins últimos, que dão sentido a todos os fins intermediários. Desta forma, tornou-se inútil. Uma agência entre outras dedicada ao diálogo, fraternidade, hospitalidade, acompanhamento, proximidade, solidariedade, tolerância, caminhar juntos, inclusão, sustentabilidade.
Advogado do Diabo
Aqui temos o famoso "advogado do Diabo" (advocatus Diaboli) ou, oficialmente, "Promotor Fidei" que tinha o dever de preparar e anunciar todos os argumentos possíveis contra a elevação de alguém à dignidade dos altares (i.e. canonização) Esse ofício foi estabelecido pelo Papa Sisto V (séc. XVI).
Nesta imagem, o advogado do Diabo é levado até ao trono do Papa para anunciar o caso contra a canonização. Após a canonização ser concluída, o advogado era trazido de volta ao trono Papal, onde retira publicamente o caso.
Este cargo, tal como existia até então, foi extinto na reforma do processo das canonizações feita pelo Papa João Paulo II.
quarta-feira, 15 de dezembro de 2021
terça-feira, 14 de dezembro de 2021
Cardeal Burke volta a celebrar Missa publicamente
Subscrever:
Mensagens (Atom)