quinta-feira, 13 de junho de 2024

Santo António, a mula e o Santíssimo Sacramento

Disputando Santo António com um herege obstinado sobre a verdade do Sacramento, depois que não valeram razões, Escrituras, nem argumentos contra a sua obstinação, veio a um partido, que todos sabeis: que ele fecharia a sua mula três dias sem lhe dar de comer, que ao cabo deles a traria à presença de Santo António, quando estivesse com a Hóstia nas mãos, e que, se aquele animal assim faminto deixasse de se arremessar ao comer que ele lhe oferecesse, por adorar e reverenciar a Hóstia, ele então creria que estava nela o corpo de Cristo. 

Assim o propôs obstinadamente o herege, e assim o aceitou Santo António, não só sobre todas as leis da razão, senão ainda parece que contra elas. O mistério da Eucaristia distingue-se de todos os outros mistérios que confessamos em ser ele por antonomásia o mistério da Fé. Os brutos distinguem-se dos homens em que os homens governam-se pelo entendimento, e os brutos pelos sentidos. Pois, se o Santíssimo Sacramento é o mistério da fé, como deixa Santo António prova dele no testemunho de um animal que se governa só pelos sentidos? Porque era Santo António. 

Antes de Santo António vir ao mundo, era o Santíssimo Sacramento mistério só da fé, e só podia testemunhar nele entendimento; mas, depois de Santo António vir ao mundo, ficou o Sacramento mistério também dos sentidos, e por isso podiam já os sentidos dar testemunho nele: bem se viu nos mesmos dois sentidos de gostar e ver.

Amanheceu o dia aprazado, veio a mula faminta, e após dela toda a cidade de Tolosa, assim católicos como hereges, para ver o sucesso. Posto o bruto à porta da igreja, aparece Santo António com a Hóstia consagrada nas mãos, e o herege, com os manjares do campo, naturais daquele animal, que tinha prevenidos. Mas, oh! poder da divindade e omnipotência! Por mais que o herege aplicava o comer aos olhos e à boca do bruto, ele, como se fora racional, dobrou os pés, dobrou as mãos, e, metendo entre elas a cabeça, com as orelhas baixas, esteve prostrado e ajoelhado por terra, adorando e reverenciando a seu Criador. 

Vede se dizia eu bem que Santo António é o sal e a luz da mesa do Santíssimo Sacramento, e sal para o sentido do gosto, e luz para o sentido da vista. O herege tentava aquele animal pelo sentido da vista e pelo sentido do gosto: pelo sentido da vista, pondo-lhe o comer diante dos olhos; e pelo sentido do gosto, quase metendo-lhe o comer na boca. Mas aqueles dois sentidos, posto que irracionais, estavam tão suspensos e tão satisfeitos no manjar divino, que tinham presente: o sentido do gosto com tal sabor, e o sentido da vista com tal luz, que nem quis ver com os olhos, nem tocar com a boca, o comer que o herege lhe oferecia. Confessando, porém, a mesma boca e os mesmos olhos, confessando o mesmo sentido de gostar e o mesmo sentido de ver, a verdade e presença real de Cristo no Sacramento. Julgai agora se é já o Sacramento mistério dos sentidos. 

Até agora dizia a Igreja: Praestet fides supplementum sensuum defectui (Supra a fé o que falta aos sentidos) mas, à vista de Santo António, mude o hino, e diga: Praestet sensus supplementum filei defectui (Supram os sentidos o que faltar à fé) porque a fé, que faltou ao herege, a supriram os sentidos do animal. O gosto, saboreado naquele sal: Vos estis sal – a vista, alumiada por aquela luz: Vos estis lux.


Oh! que grande passo este para parar aqui o sermão à vista deste bruto e deste herege! À vista deste herege, que dirá quem tem nome de católico? À vista deste bruto, que dirá quem tem o nome de homem? A reverência do bruto e a irreverência do herege, tudo é confusão nossa. O bruto venera sem conhecer, o herege não venera porque não conhece. Se o bruto venera o Santíssimo Sacramento sem conhecer, eu, que sou homem racional, que conheço, por que tenho tão pouca reverência? Se o here­ge não venera porque não conhece, e porque não crê, eu, que creio, e que conheço, porque tenho tão pouca reverência? 

Ah! Portugal! Ah! Espanha! que por este pecado te castiga Deus. Quem viu os templos dos hereges, e o silêncio e respeito que neles se guarda, pode chorar mais esta miséria. Nos templos dos hereges, ainda que exterior, há reverência, e falta o Sacramento; nos templos de muitos católicos há o Sacramento, e falta a reverência. Vede qual é maior infelicidade! Os dois sentidos que no bruto mos­traram maior reverência são os que em nós mostram maior devassidão. Os olhos, onde está o sentido do ver, a língua, onde está o sentido do gostar, que é o que fazem na presença do Santíssimo Sacramento? Que é o que falam aquelas línguas sacrílegas, quando deveriam venerar aquele Sacramento com a oração e com o silêncio? 

Que é o que olham, e para onde, aqueles olhos inquietos e loucos, quando deveram estar enle­vados naquela Hóstia de amor, ou pregados na terra, de modéstia e de confusão. Que fazeis, ó divino sal, e divina luz do Sacramento? Saboreai como sal estas línguas, alumiai como luz estes depravados olhos. Sarai estas línguas como sal, posto que línguas tão sacrílegas mais mereciam salmouradas; alumiai estes olhos como luz, posto que olhos tão descompostos mais mereciam ser cegos.

Padre António Vieira: Sermão de Santo António - São Luís do Maranhão (1653)

in Ad te levavi


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2 comentários:

Maria José Martins disse...


Mais do que atual este Sermão!

Eduardo disse...

Diz o padre e e historiador católico francês Bercastel sobre Sto. António: " Pregou um ano, todos os dias da Quaresma em Pádua, fazendo crescer cada vez mais nos ouvintes a avidez da alimentação evangélica. Multiplicadas turbas corriam das terras circunvizinhas, partindo de noite e impelindo-se umas às outras para acharem lugar. O concurso chegou a ser tão numeroso, que, não cabendo nos templos, foi preciso pregar m campo aberto. Fechavam-se todas as lojas durante o sermão, e o pregador era escutado por trinta mil pessoas, todas tão atentas como as que se achavam colocadas ao pé do púlpito. Era tal o fogo, unção e dignidade com que falava, que parecia mais um serafim que um orador mortal. Precisava, marchando para a cadeira, ir acompanhado de uma guarda de mancebos fortes e vigorosos, que lhe abrissem caminho, forcejando cada um dos da multidão por tocá-lo na passagem, por lhe cortar algum retalho do hábito, por lhe arrancar ao menos alguns fios dele, que eram considerados como relíquias preciosas. Acabado o sermão, os maiores pecadores vinham lançar-se aos seus pés, pedindo-lhe misericórdia, e eram poucos os sacerdotes para lhes administrarem a penitência. Ouvia da sua parte a quantos podia, o ardor da caridade supria-lhe a falta de forças, e os sinais não equívocos que apresentavam de arrependimento indemnizavam-no amplamente do excesso de cansaço. Os inimigos mais figadais reconciliavam-se, os usurários restituíam seu sórdidos lucros, rendiam a liberdade aos devedores que conservavam presos havia longo tempo, e muitas vezes perdoavam as dívidas; as pecadoras públicas, enfim, quebravam os ferros que as retinham vinculadas ao crime, a adoptavam costumes próprios das virgens mais recolhidas." ( in "Sermoes"- Benef. Silveira Malhão)