domingo, 3 de novembro de 2019

Tomás responde: A mentira é sempre pecado?

Parece que nem toda mentira é pecado:

1. Com efeito, é evidente que os evangelistas não pecaram ao escrever o Evangelho. Ora, eles parecem ter dito algo falso, porque as palavras de Cristo, e até mesmo de outros personagens, são registradas de maneira diferente por eles. E daí se pode concluir que um deles há de ter dito uma coisa falsa. Logo, nem toda mentira é pecado.

2. Além disso, ninguém é recompensado por Deus pelo pecado. Ora, as parteiras do Egipto foram recompensadas por Deus, por terem mentido, pois a escritura diz que Deus lhes concedeu uma posteridade. Logo, a mentira nem sempre é pecado.

3. Ademais, a Sagrada Escritura narra os feitos dos santos para a edificação da vida humana. Ora, de alguns grandes santos se diz que mentiram. No Génesis se lê que Abraão disse que sua esposa era sua irmã. Jacob mentiu dizendo que era Esaú, e, apesar disso recebeu a bênção. E Judith, que mentiu para Holofernes, até hoje recebe louvor. Logo, nem toda mentira é pecado.

4. Ademais, às vezes convém escolher um mal menor para evitar um mal maior; é o caso do médico que se vê obrigado a cortar um membro para evitar a infecção do corpo inteiro. Ora, causa menor dano ao próximo quem lhe comunica uma informação falsa do que assassinar ou ser assassinado. Logo, pode ser lícito mentir para impedir alguém de cometer homicídio para preservar alguém da morte.

5. Ademais, quem não cumpre uma promessa, mente. Ora, nem todas as promessas devem ser cumpridas, pois Isidoro diz: se prometeste algo mau, rompe teu compromisso. Logo, nem toda mentira é pecado.

6. Ademais, a mentira é considerada pecado porque a pessoa engana o próximo; o que faz Agostinho dizer: “Quem imagina que pode haver um género de mentira sem pecado, está torpemente equivocado ao se estimar como honesto enganador dos outros”. Ora, nem toda mentira é causa de engodo porque a mentira jocosa não engana ninguém. Na realidade, ninguém conta estas mentiras para que sejam cridas, mas simplesmente para a diversão. E assim de vez em quando se encontram locuções hiperbólicas na Sagrada Escritura. Logo, nem toda mentira é pecado.

EM SENTIDO CONTRÁRIO, o livro do Eclesiástico diz: Recusa-te a proferir qualquer mentira (7, 14).

tomas_respondo Aquilo que é mau por sua própria natureza não pode de maneira nenhuma ser bom ou lícito; porque, para algo ser bom, é preciso que todos os seus elementos o sejam. De onde a célebre sentença de Dionísio: o bem resulta da perfeição total da causa, enquanto que o mal resulta de qualquer defeito. Ora, a mentira é um mal por sua própria natureza porque é um acto cuja matéria

não é o que devia ser, pois como as palavras são sinais naturais do pensamento, é contra a natureza, e ilegítimo que se faça a palavra significar uma coisa que não se tem na mente. E é por isso que Aristóteles diz que “a mentira é por si própria uma depravação a ser evitada, enquanto que a verdade é boa e louvável”. Por conseguinte, toda mentira é pecado, como afirma também Agostinho.

Quanto às objecções iniciais, portanto, deve-se dizer que:

1. Não é permitido dizer que o Evangelho, ou qualquer outro livro canónico da Sagrada Escritura afirmam qualquer coisa de falso, ou que algum de seus autores tenha mentido, pois isto destruiria a certeza da fé que repousa sobre a autoridade dos Livros Sagrados. O fato de as palavras de certos personagens serem registradas de maneiras diversas no Evangelho, ou em outros livros, não constitui mentira. Como diz Agostinho: “Esta questão não deve de nenhuma maneira embaraçar aquele que julga com sabedoria que estes relatos são necessários para o conhecimento da verdade, quaisquer que sejam as expressões empregadas para os transmitir”. E ele acrescenta que “não temos o direito de taxar de mentira a ninguém se fatos que ficaram na lembrança de muitos que os viram ou deles tiveram notícia, nem sempre vêm registrados da mesma maneira ou nos mesmos termos”.

2. As parteiras não receberam a recompensa em razão da mentira delas, mas em razão do temor de Deus e da boa vontade que as levaram a mentir. É o que está dito expressamente no livro do Êxodo: “porque haviam demonstrado temor a Deus, Deus lhes concedeu uma posteridade”. Quanto à mentira que se seguiu, ela não foi meritório.

3. Deve-se dizer com Agostinho que a Sagrada Escritura refere certos feitos que são como que exemplos da perfeita virtude: e não se pode crer que os autores de tais feitos tenham sido mentirosos. E se nas palavras dos protagonistas destes feitos se descobrir alguma coisa que parece mentira, é preciso entender o que há nelas de profético e figurativo. e, em outra passagem Agostinho afirma que “esses homens que se revestiram de autoridade e desempenharam um papel considerável nos tempos proféticos, disseram e fizeram profeticamente tudo o que a Sagrada Escritura lhes atribui”. E Agostinho continua dizendo que, quando Abraão quis fazer passar Sara como sendo irmã dele, quis simplesmente ocultar a verdade, e não propriamente proferir uma mentira: disse que era sua irmã porque era filha do irmão dele. Por isso, o próprio Abraão declarou: “Ela é de fato minha irmã, porque é filha de meu pai, e não de minha mãe”. Ou seja: era sua irmã apenas por parte de pai. Por outra parte, quando Jacob declarou que era Esaú, o filho primogénito de Isaac, ele falou figurativamente, porque os direitos de primogenitura lhe pertenciam legitimamente. Ao fazer esta declaração ele foi inspirado pelo espírito profético, para exprimir o mistério: um povo posterior, a saber, os gentios, haveria de ocupar o lugar do primogénito, ou seja, dos judeus. A Sagrada Escritura faz o elogio de certas figuras não porque essas pessoas tenham sido modelos de perfeitas virtudes, mas por causa dos bons sentimentos que demonstraram possuir e que as levaram a cometer alguns actos indevidos. Neste sentido, Judith é reverenciada não por ter mentido a Holofernes, mas pelo desejo ardente de salvar seu povo que a levou a enfrentar graves perigos. E se pode dizer ainda que as palavras delas contêm uma verdade em sentido místico.

4. A mentira é pecado, por sua própria natureza, não apenas por causa do dano que causa ao próximo, mas ainda por causa da desordem que está contida nela, como foi dito. Não é permitido a ninguém recorrer a um meio desordenado e ilícito, para impedir um dano ou faltas dos outros; assim, por exemplo, não é permitido furtar para dar esmolas (salvo talvez em caso de extrema necessidade, em que todos os bens são comuns a todos). Por conseguinte, não é lícito proferir uma mentira para livrar alguém de algum perigo, qualquer que seja. Embora, como diz Agostinho, seja permitido ocultar a verdade com prudência, recorrendo a alguma dissimulação.

5. Quem promete alguma coisa com a intenção de cumprir o prometido, não mente, porque não fala contra aquilo que tem em sua mente. Se, no entanto, não cumprir o que prometeu, então estará agindo como infiel à promessa porquanto muda de projecto. Ainda assim ele pode ser desculpado, em dois casos, a saber: 1º se tiver prometido algo manifestamente ilícito; neste caso ele terá cometido um pecado ao fazer tal promessa mas age muito bem quando muda de propósito. 2º Se tiver havido uma mudança nas condições de pessoas ou de negócios. Como diz Séneca, para alguém ser obrigado a uma promessa é necessário que todas as circunstâncias permaneçam inalteradas; do contrário, quem fez a promessa não mentiu quando prometeu, porque prometeu o que tinha de fato em mente, subentendidas as condições devidas; e tampouco terá sido infiel ao não cumprir a promessa, pois não subsistem as mesmas condições. Desta forma Paulo não mentiu quando deixou de ir a Corinto, como havia prometido, porque sobrevieram obstáculos imprevistos.

6. Uma acção pode ser considerada tanto em si mesma quanto com referência a quem age. A mentira jocosa é, por sua própria natureza, feita para enganar, mas quem a profere não o faz com o intuito de enganar, e, pela maneira de dizer, não engana ninguém. Mas o mesmo não acontece com algumas locuções hiperbólicas ou figurativas que se encontram nas Sagradas Escrituras. Como diz Agostinho: “o que se diz em sentido figurado nunca é mentira. Toda enunciação se refere ao que é enunciado. Ora, tudo o que é feito ou dito no modo figurativo exprime o que realmente significa para aqueles que o devem entender”.

São Tomás de Aquino in Suma Teológica II-II, q.110, a.3


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