quinta-feira, 4 de maio de 2023

Latim, língua da Igreja

Em 25 de Março de 1961, L’Osservatore Romano publicava na primeira página um artigo, assinado com três estrelas, intitulado Latino, lingua della Chiesa, onde se defendia vigorosamente a necessidade que a Igreja tinha de uma língua “universal, imutável e não vulgar“. 

O artigo desenvolvia, em termos amplos e articulados, a afirmação de São Pio X, segundo a qual “a língua latina é considerada, por direito, a língua própria da Igreja“, e a passagem de Pio XI na Epístola Officiorum omnium, de 1 de Agosto de 1922, segundo a qual a Igreja “exige, pela sua própria natureza, uma língua que seja universal, imutável e não vulgar“. Vale a pena recuperar as teses de fundo do referido artigo ao qual nunca foi dada uma resposta convincente:

“O primeiro requisito da língua da Igreja, ensina o Pontífice, é ser universal. Esta língua deve servir, na ordem da instituição eclesiástica, para colocar o centro da Igreja em contato rápido, seguro e igual, com todos os raios que se dirigem a este centro. Se, em discursos proferidos em ocasiões solenes perante este ou aquele povo, os Pontífices não hesitam em usar as respectivas línguas nacionais, já quando se devem dirigir à família católica universal, o uso desta ou daquela língua moderna, própria de uma comunidade singular, seria um favorecimento dessa mesma comunidade, em prejuízo das restantes. 

A Igreja, que, com palavras de São Paulo, proclama ‘ubi non est gentilis et iudaeus […] barbarus et Scyta, servus et liber‘ (Col 3, 11; Gal 3,28; Rom 10,12), não tirará nunca do prato da balança, com o objetivo de favorecer os interesses terrenos de um povo em detrimento de outros, o peso dos valores eternos da qual é a guardiã. Nem em caso algum forçará os povos com menor poder político ou cultural a inclinarem-se diante dos mais fortes, como os feixes no sonho profético de José (Gen 37, 6ss). 

Donde o uso do latim que não é uma língua própria de nenhum povo, nem favorece nem desfavorece parcialmente qualquer deles, cumprindo assim uma condição essencial que tem de ter, na ordem cristã, uma língua universal.

O uso do latim por parte da Igreja não tem apenas a função negativa de eliminar parcialidades e ressentimentos. A facilidade que ele proporciona aos sacerdotes de todo o mundo de compreenderem, prontamente e com precisão e uniformidade, os actos de magistério, de legislação, de exortação do Sumo Pontífice; a possibilidade de seguirem, nos Acta Apostolicae Sedis, as disposições dos dicastérios romanos; a possibilidade de acederem directamente, durante o seu tempo de estudo, e depois, às obras dos Padres e dos grandes mestres; o uso de uma terminologia precisa, imutável, universal; a difusa capacidade que é o fundamento da ciência, de aceder às fontes originais; a rápida compreensão dos textos litúrgicos; e, finalmente, a comunhão numa supercultura que enriquece e não diminui as culturas nacionais; tudo isto constitui um feixe de ligações que contribui para ressaltar a unidade de todos os membros da Igreja, da ordem sacerdotal antes de mais, e, mediante ela, também a de todos os fiéis.

Pio XI (Epístola Officiorum omnium, de 1º de agosto de 1922): ‘É disposição providencial que o latim proporcione aos cristãos mais cultos de cada nação um poderoso vínculo de unidade, permitindo-lhes conhecer mais profundamente aquilo que se refere à Santa Madre Igreja e manter uma coesão mais íntima com o Chefe da família’. E Pio XII resumia e confirmava: ‘A liturgia latina é um vínculo precioso da Igreja Católica.

Além do requisito da aptidão para a universalidade étnica e geográfica, a língua da Igreja deve possuir, afirma o Sumo Pontífice, o atributo da imutabilidade: ‘A Igreja, que está destinada a durar até o fim dos séculos, exige pela sua natureza própria, uma língua que seja imutável.’ É um fato que as línguas vivas estão em permanente mutação; e, quanto mais os povos que as falam participam dos movimentos da história, tanto mais as suas línguas se alteram. […]

O terceiro requisito da língua da Igreja, prossegue o Sumo Pontífice, é que não seja vulgar. Não seria natural que a Igreja, a quem o Senhor pede que ‘olhe propícia para as tribulações da plebe, os perigos dos povos, os gemidos dos prisioneiros, a miséria dos órfãos, as privações dos desterrados, o abandono dos fracos, o desespero dos doentes, a decadência dos velhos, os anseios dos jovens, os votos das virgens, os lamentos das viúvas’ , e que aplica a esta humanidade sofredora as palavras do seu Divino Fundador: ‘Vós sois todos irmãos’, e o comentário de Paulo: ‘Em Cristo, não há judeus nem grego, nem escravo nem homem livre’, a ninguém ocorrerá pensar que a Igreja se deixe tomar por um horaciano desígnio em favor do ‘profanum vulgus‘. 

O vulgus são as massas imensas da vida quotidiana, com os seus interesses e as suas paixões. E a Igreja, se por um lado aprende e usa também o obscuro dialecto de uma pequena tribo do Congo ou da Amazónia, a fim de evangelizar estes filhos que Cristo lhe confiou, por outro lado sente a necessidade e o dever de confiar o sagrado depósito das suas verdades a uma língua que não se identifique com esta ou aquela de um povo singular, nem esteja genericamente ao nível de paixões e de interesses particulares. 

E também estes requisitos de elevação vai encontrá-los no latim, que, por isso, é ‘uma arca de incomparável excelência’ (Pio XII, discurso Magis quam) para as verdades eternas e imutáveis. Se o latim lhe não tivesse sido oferecido pela Providência no começo da sua longa história, ela ter-se-ia visto forçada a procurar uma língua que possuísse os três requisitos que o Papa Pio XI especificou: ‘Dado que o latim realiza plenamente esta tríplice exigência’, conclui o Pontífice, ‘consideramos ter sido disposto pela Divina Providência que ele se tivesse admiravelmente colocado ao serviço da Igreja docente’

Roberto De Mattei in 'O Concílio Vaticano II – Uma história nunca escrita'


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5 comentários:

João Baptista disse...

Na verdade, o latim faz muito pouco sentido para a Igreja, ao contrário que do que se pensa. É uma importação e um resquício do Império Romano, como outros ficaram na Igreja. E o primeiro problema é que as Escrituras não foram escritas em latim, mas sim em hebraico, aramaico e grego (todo o Novo Testamento foi escrito em grego). É estranho que uma religião do livro afinal tenha a necessidade de o ler… em tradução ou em traduções.
Mais: quem quiser ler grande parte dos textos da Patrística, fundadores da dogmática cristã, terá que ler em grego; os grandes concílios ecuménicos desde Niceia 325 até ao século VIII tiveram as suas conclusões escritas em grego.
Por outro lado, dificilmente o latim cumpre esses três requisitos.
Não é universal, pois era a língua oficial do Império Romano e, como tal, simboliza precisamente a dominação dos outros povos a quem foi imposta pela força. E não, São Paulo, não proclamou ‘ubi non est gentilis et iudaeus […] barbarus et Scyta, servus et liber‘, pois São Paulo não escreveu uma linha que fosse em latim…
Não é imutável. Quem sabe latim sabe também que há imensas diferenças entre o latim de Cícero e o latim medieval, seja ao nível da sintaxe, do vocabulário e da pronúncia.
Vulgar de facto não é, como o não é o grego. Aliás, as elites romanas falavam grego para os registos mais elevados, não o latim. O latim era uma língua de dominação, a língua da cultura e da arte era o grego, que preservou em muito a herança helénica.
Mais facilmente o esperanto cumpriria tais requisitos, sendo uma língua verdadeiramente universal e insusceptível de mudança.
Creio, pois, que a tese do latim como língua mais adequada à Igreja é tudo menos evidente.

Rafael Pauli - rafael.pessoal@gmail.com disse...

Pelo comentário anterior demonstra-se o grande problema de autoridade dos dias atuais. Deixamos de ouvir nossos pais, que sabem o que é bom para nós e passamos a ter as nossas egoístas opiniões. Por isso o papado não é mais o que era antigamente, há uma clara crise de autoridade, impulsionada principalmente pelo CVII, colégio de Cardeais etc. Hoje todos questionam e criam suas verdades, menosprezam santos papas e com uma soberba maligna dizem o que é certo ou errado. Esses são os tempos atuais.

Anónimo disse...

Muito bem observado, caro anônimo.

Maria José Martins disse...


Em latim, sem latim, ou noutra língua qualquer a Palavra de Deus é IMUTÁVEL!

Diz -nos Jesus, aquando da explicação sobre a necessidade de mandar escrever a GRANDE OBRA, tão menosprezada pela SUA Igreja: "O Evangelho como me foi revelado" de, Maria Valtorta", precisamente, para ESTES TEMPOS, pois, melhor do que ninguém ELE sabe do que a VAIDADE, o INTELECTUALISMO EXACERBADO, a ARROGÂNCIA HUMANA, de alguns dos Seus SEGUIDORES...são capazes!


Diz-nos Jesus: (...) "Afim de combater o MODERNISMO, que se deteriora cada vez mais, apresentando doutrinas SEMPRE MAIS PERNICIOSAS, à Santa Igreja, e para que o Meu Santo Vigário tenha matéria para combater contra aqueles que negam:
A Sobrenaturalidade dos Dogmas.

A Divindade de Jesus Cristo de ser Homem real e Perfeito, tanto na Fé, como na História, e que nos é transmitido pelo Evangelho, pelos Atos dos Apóstolos, pelas Epístolas Apostólicas e pela TRADIÇÃO.

A DOUTRINA de PAULO--e quem tiver ouvidos para ouvir, que ouça...--de João, e A dos Concílios de Niceia, Éfeso, Calcedónia, como MINHA E VERDADEIRA DOUTRINA, por MIM, verbalmente ensinada, Minha Ciência ILIMITADA por ser DIVINA e PRFEITA!

A Origem DIVINA dos Dogmas, dos SACRAMENTOS, da Igreja UNA, SANTA, CATÓLICA e APOSTÓLICA.
A UNIVERSALIDADE do Evangelho por Mim ensinado e PARA TODOS OS HOMENS!

A Natureza PERFEITA, desde o INÍCIO da Minha Doutrina e que não Se formou através de sucessivas transformações, MAS NOS FOI DADA ASSIM: Doutrina de Cristo, do Tempo da Graça, do Reino dos Céus e do Reino de Deus em vós, Divina, Perfeita, IMUTÁVEL, uma Boa Nova, para TODOS os que têm sede de Deus! (...)"

(...) "Eu vos digo que, se tivessem sido escritas todas as Minhas Ações, todas as Minhas lições particulares, penitências e orações para SALVAR uma alma, seriam necessárias as salas todas de uma vossa Biblioteca, e das MAIORES!
Mas também, em verdade Eu vos digo, que seria muito mais útil para vós, JOGAR NO FOGO TANTA CIÊNCIA INÚTIL, POEIRENTA E VENENOSA a fim de de DAR LUGAR AOS MEUS LIVROS, para que ficásseis a saber MAIS SOBRE MIM, em vez de adorardes tanto essa imprensa quase sempre SUJA de SENSUALIDADE OU HERESIA! (...)"

Eduardo disse...

Muitas razões há para o latim se utilizar, há tanto tempo, na oração litúrgica católica e uma delas é, sem dúvida, porque sendo uma língua morta não pode ser submetida a "retraduções" tendenciosas. Também porque nos lembra, aos nossos corações e às nossas mentes, a distinção sagrada entre a Palavra de Deus e as nossas línguas vernáculas tão falhas de Louvor e Adoração. Também nos dizem os exorcistas que aquilo que os demónios mais temem são as orações de libertação e...também porque o Concílio Vaticano II decretou que o cântico latino e gregoriano têm que que ser mantidos. apesar dos "pretextos de pastoralidade" permitirem o contrário