segunda-feira, 6 de janeiro de 2014

Ano novo, vícios velhos: o abandono dos idosos - Henrique Raposo

Tenho há anos um hábito meio macabro: recolher recortes de jornais relativos a velhos abandonados pelas famílias. Os melhores, ou melhor, os piores são aqueles que dizem "idosos abandonados nas férias". Dado que é um pouco chato colocar um velho no porão do avião ou na mala do carro, muitas famílias abandonam os seus familiares nos hospitais durante o período das férias. É como se o hospital fosse um hotel para cães gratuito. Durante as mini-férias de Dezembro, o efeito do abandono costuma ser o aumento dos suicídios entre os idosos. Amanhã, quando começar a ler os jornais da semana, aposto que irei encontrar muitas referências aos suicídios de réveillon.


O regime (jornalismo incluído) adora justificar o abandono dos velhos com a habitual regurgitação económica: "Ai, então, as pessoas fazem isto porque são pobres, coitadinhas". Esta pose submarxista dá-me uns certos calores e merece três respostas. Em primeiro lugar, quem diz isto nunca foi pobre, nunca conheceu um pobre, nunca passou tempo num bairro popular. Em segundo lugar, os betinhos progressistas que desenvolvem este "pensamento" não percebem que estão a transformar o pobre(categoria material) numa antecâmara da falta de carácter (categoria moral); é como se um indivíduo pobre fosse - necessariamente - um pulha em potência. Em terceiro lugar, este "pensamento" está errado, factualmente errado. Os picos dos abandonos ocorrem nas férias, quando as famílias abandonam as suas casas para fazerem uma mijinha turística algures no país ou no estrangeiro. Ou seja, há dinheiro. A causa do abandono dos velhos nos hospitais é a presença de dinheiro usado numa estirada turística. Prioridades.

Além de serem desprezados em vida, muitos velhos são abandonados depois da morte. Há uns tempos, Paulo Paixão fez uma bela reportagem no Expresso sobre o abandono dos mortos nos cemitérios de Lisboa: mais de metade dos restos mortais são votados ao abandono; 59% em Benfica, 80% nos Olivais, 56% no Alto de São João, 46% na Ajuda. Digam-me lá qual é a causa económica que explica esta barbaridade em câmara lenta? Eu ajudo: não há qualquer causa económica, a crise material não é para aqui chamada.


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