domingo, 10 de agosto de 2014

Como a Universidade discrimina os pobres

Laurent Lafforgue é um matemático célebre e relativamente jovem. Começou a receber prémios mundiais de Matemática nos últimos anos do liceu e depois continuou a somar: a Clay Research Award e, mais recentemente, a medalha Fields, o máximo galardão das matemáticas. Fora do âmbito científico, Lafforgue ficou conhecido pela defesa da qualidade do ensino. Só essa qualidade permite que as crianças pobres cheguem ao topo da cultura, só ela integra os filhos dos imigrantes, só ela democratiza a sociedade. 

Quando o ensino se degrada, como aconteceu em França a partir dos anos 30, alguns dos mais ricos conseguem escapar, mas a sociedade, no seu conjunto, é enganada: sem se perceber porquê, no topo da universidade aparecem quase só os ricos. Esta exclusão não acontecia quando o ensino tinha qualidade, mas passou a verificar-se quando se degradou. O problema que Laurent Lafforgue reconheceu em França, está a verificar-se em Portugal e posso testemunhar esta experiência com muitas histórias.

Desde há muitos anos, o Técnico elabora relatórios acerca do sucesso dos alunos. Uma vez, a responsável desse gabinete tentava identificar as circunstâncias que favorecem o êxito escolar e eu disse, ingenuamente, o que vem nos manuais: a variável que melhor correlaciona é o nível de escolaridade da mãe. Por exemplo, se a mãe tem um curso superior os filhos têm, estatisticamente, melhor aproveitamento. Ainda hoje me lembro da resposta: normalmente é assim, mas no Técnico esse critério dificilmente se aplica, pois mais de metade das mães dos alunos têm um curso superior.

Quem trabalha no Técnico sabe perfeitamente que são raros os alunos oriundos de famílias com um nível cultural pouco elevado, ou com dificuldades económicas. É uma boa notícia, o problema é que a sociedade tem sobretudo famílias de poucos recursos e o facto de não estarem representadas significa que há uma discriminação efectiva e não estamos a promover a ascensão social dessas pessoas. Como é sabido, o Técnico procura apoiar os alunos com dificuldades económicas, psicológicas, ou outras. Mas a verdade é que a percentagem de alunos realmente pobres é ínfima. Basta percorrer os olhos pela turma e contabilizar quem anda de automóvel ou passa férias no estrangeiro.

Na altura em que se permitiu às faculdades cobrar uma propina um pouco maior, o Técnico optou, sem hesitar, pelo escalão superior. A Associação de Estudantes protestou energicamente e lançou um inquérito, muito participado pelos alunos, a perguntar: tiveste dificuldade em pagar? A propina limitou-te? A resposta esmagadora foi: não tive dificuldade, nem me privei de nada. A Associação afixou os resultados nos placards e nunca mais houve protestos por causa das propinas.

As universidades têm todo o interesse em que ninguém fique excluído de uma formação mais completa por motivos económicos. O problema é que os alunos cujas famílias têm menos posses não estão a ser excluídos por falta de bolsas, mas por não terem notas suficientes. Quer dizer, de um modo geral, o péssimo funcionamento do ensino primário e secundário é disfarçado graças à inflação das notas e à passagem dos alunos mal preparados... até chegarem aos exames nacionais e não conseguirem entrar nas faculdades exigentes.

As famílias desafogadas têm meios para escapar a esta ratoeira. Podem aproveitar umas turmas escolhidas de certas escolas estatais e, inclusivamente, podem colocar os filhos em escolas não estatais. O resultado é que uns ficam em condições de aceder às melhores universidades e os outros ficam sistematicamente de fora.

Uma exclusão por motivos económicos choca sempre a sensibilidade democrática, mas a actual é particularmente dolorosa porque, em certo sentido, as coisas pioraram nos últimos 50 anos. Antes, o acesso ao ensino era mais restrito, mas havia mais mobilidade social e uma criança pobre podia chegar ao topo de uma carreira universitária.

Não podemos fechar os olhos à injustiça de obrigar as famílias mais pobres a porem os filhos nas escolas estatais. É dever do Estado pagar substancialmente o custo da educação, mas cativar essa verba contra a vontade das famílias é um abuso que penaliza (um pouco) os ricos e expulsa os mais pobres da universidade e de tudo o que isso significa, perpetuando as desigualdades sociais.

É da maior relevância social apoiar as famílias, sem as obrigar a escolher uma escola estatal.


José Maria C. S. André in «Expresso», 18-I-2014


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