sábado, 2 de janeiro de 2016

O Ano Internacional da Astronomia e o conhecimento de Galileu

2009 foi um ano de duas importantes comemorações. A nível mundial, por iniciativa da Organização das Nações Unidas, celebrou-se o Ano Internacional da Astronomia, aproveitando a ocasião dos quatrocentos anos sobre o início das célebres observações telescópicas realizadas por Galileu (1609); a uma escala nacional, assinalaram-se os 250 anos da expulsão da Companhia de Jesus dos territórios portugueses, em 1759. Talvez muitos dos que acompanharam estas iniciativas não se tenham dado conta da ironia subtil que a simultaneidade das duas comemorações representa para o nosso país: é que, se houve instituição a quem se ficou a dever a divulgação das ideias de Galileu em Portugal, foi a Companhia de Jesus.

Relembremos os factos essenciais. Nos últimos meses de 1609, Galileu Galilei (1564-1648) iniciou a observação sistemática dos céus com um telescópio. Pouco depois, em Março de 1610, publicava em Veneza o Sidereus Nuncius, o «Mensageiro das Estrelas», um primeiro relato dos factos extraordinários que observara. O livro foi um sucesso imediato e Galileu passou, de um dia para outro, de professor sem distinção na Universidade de Pádua para o mais importante cientista da Europa.

As observações telescópicas de Galileu são talvez o acontecimento mais dramático nesse denso complexo de factos a que se convencionou chamar a “revolução científica” do século XVII. Essencialmente, ele observou cinco novos factos: i) a aparência rugosa e acidentada da superfície lunar; ii) o muito maior número de estrelas, para lá das que são visíveis a olho nu; iii) os satélites de Júpiter; iv) a configuração peculiar de Saturno; v) as fases do planeta Vénus. Se bem que nenhuma destas observações sirva como prova do sistema heliocêntrico que Copérnico havia desenvolvido no De revolutionibus (1543), elas constituem golpes muito sérios nas ideias tradicionais da filosofia natural aristotélica e da astronomia ptolomaica. Galileu estava consciente de não possuir, em rigor, uma prova do sistema heliocêntrico, mas percebeu que estas novidades celestes poderiam ser usadas como armas na campanha que então iniciou em favor do sistema heliocêntrico. Por isso se pode dizer que o grande debate cosmológico que ocupará todo o século XVII até à síntese newtoniana, teve o seu verdadeiro começo com as observações telescópicas de Galileu.

Convém ter presentes as enormes dificuldades que o cientista italiano teve de transpor. Uma delas, por exemplo, era relativa ao próprio instrumento com que levara a cabo essas descobertas. Os telescópios do início do século XVII são instrumentos muitíssimo rudimentares, com parâmetros ópticos muito deficientes -- poderes de ampliação e resoluções medíocres -- gerando imagens afectadas por vários tipos de aberrações e distorções ópticas. Que Galileu tenha sido capaz de fazer descobertas tão notáveis com instrumentos tão deficientes é um dos maiores testemunhos do seu génio científico e da sua determinação de carácter, mas seria ingénuo não perceber que essas dificuldades foram obstáculos muito significativos para a aceitação dos novos fenómenos siderais.

O aparecimento do Sidereus Nuncius significou muito mais do que a revelação de novidades astronómicas e de um novo instrumento científico: Galileu alterou profundamente as regras de validação de novos factos científicos, transformou os códigos habituais de divulgação científica, fez um uso inovador das representações gráficas, questionou a tradicional separação entre filosofia natural e astronomia, redefiniu os próprios objectivos da astronomia. É impossível explicar aqui todas as consequências que estas alterações introduziram na prática científica, mas não oferece qualquer dúvida que há uma certa “modernidade” em ciência cujas raízes se podem relacionar com estes factos. E por isso, relembrar estes acontecimentos e o papel crucial desempenhado por Galileu, como se fez ao longo de 2009 com a realização do Ano Internacional da Astronomia, foi uma decisão mais do que justificada.

No ano passado relembrou-se também a expulsão da Companhia de Jesus dos territórios portugueses, pelo então Conde de Oeiras. Os estudos e conferências que se realizaram ao longo de 2009, reunindo os melhores especialistas portugueses e estrangeiros, tiveram o mérito de recordar novamente a extrema complexidade desses acontecimentos, uma complexidade que impossibilita qualquer explicação simples e monocausal, ao mesmo tempo que apresentaram os resultados das mais recentes abordagens historiográficas, em geral mais serenas, mais críticas e mais profundas do que as de tempos passados.

Do ponto de vista do desenvolvimento científico e cultural, a expulsão da Companhia de Jesus do nosso país foi um acontecimento de contornos dramáticos. As correntes historiográficas dominantes durante o século XIX e quase todo o século XX olharam para estes acontecimentos de forma pouco crítica, tomando como base das suas análises os textos da própria propaganda pombalina – que, muito naturalmente, apresentam essa expulsão como uma “modernização” do ensino e da cultura. Mas este não é hoje o juízo da maior parte dos historiadores, e, em especial, não é o dos historiadores de ciência. Na impossibilidade de se fazer aqui nem sequer a mais breve das análises, recordam-se apenas alguns números. 

Acerca da reforma do ensino secundário importa ter presente que em 1759, nas vésperas da expulsão, o número estimado de alunos em colégios jesuítas de Portugal andaria pelos 20.000. O desmantelamento da rede jesuíta de colégios correspondeu efectivamente a um colapso de proporções impressionantes pois o país só voltaria a registar o mesmo número de alunos do ensino secundário no princípio do século XX, isto é, 150 anos depois.1 Quanto ao ensino universitário, nas décadas que antecederam a reforma de Pombal, mais precisamente nos anos entre 1724 e 1772, o número médio de alunos na universidade de Coimbra foi de 2827 alunos por ano. No período posterior à Reforma, entre 1772 e 1820, este número contraiu-se para uma aterradora média anual de 451 alunos.2 Uma quebra vertiginosa à qual, para ser mais completo e rigoroso, se deveriam levar em conta os alunos universitários perdidos com o fecho da universidade de Évora.

Os efeitos desta contracção brutal no universo educativo do país (pré-universitário e universitário) sentir-se-iam durante muitas décadas, afectando drasticamente toda a vida cultural e as actividades científicas muito em particular. Além disso, o desaparecimento da rede internacional jesuíta e algumas medidas pombalinas, muito mais ideológicas do que sensatas, como o abandono do latim na redacção de textos científicos universitários, condenariam a ciência praticada no nosso país na segunda metade do séc. XVIII, e mesmo nas décadas seguintes, a uma dolorosa marginalidade europeia. Os matemáticos José Anastácio da Cunha e Daniel Augusto da Silva, por exemplo, escrevendo em português e não dispondo de canais para a divulgação para os seus importantes textos, acabaram por ter um impacto irrelevante na ciência europeia do seu tempo. 

Há também indicações fortes que levam a suspeitar que o património científico dos colégios jesuítas foi selectivamente destruído, para não permitir a mais pequena contradição ao axioma pombalino de que a Companhia de Jesus havia ignorado e sufocado o cultivo das ciências; pelo menos a habitual invocação do terramoto de 1755 para explicar o quase total desaparecimento desse património, não parece hoje em dia credível. Todos estes assuntos foram analisados em comunicações e publicações apresentadas no ano passado e sobre eles sabe-me muito mais agora do que há décadas atrás.

O que é ainda pouco conhecido fora dos círculos de especialistas em história da ciência é que a Companhia de Jesus foi a porta de entrada das novidades galileanas no nosso país, a tal ponto que, se não fossem os matemáticos jesuítas, essas notícias só se teriam conhecido muito mais tarde em Portugal. De facto, nas primeiras décadas do século XVII, isto é, durante o período mais crítico dos debates cosmológicos, uma instituição em Portugal, a chamada «Aula da Esfera» do colégio de Santo Antão em Lisboa, tinha uma ligação muito estreita com o grupo de matemáticos do Colégio Romano e estes, por sua vez, estavam no verdadeiro centro europeu desses debates. 

Embora os historiadores do passado tenham, na sua esmagadora maioria, passado ao lado desta peculiar conjuntura institucional, é hoje reconhecido que a «Aula da Esfera» foi uma instituição a todos os títulos singular na história científica portuguesa. Nesta «Aula» se ensinaram ciências matemáticas e astronómicas ininterruptamente durante cento e setenta anos, o que é possivelmente um caso único no nosso país. Foi a mais internacional instituição de ensino na nossa história e entre os seus mestres se contaram alguns dos nomes mais eminentes da ciência do tempo. Aí se ensinaram e se praticaram, muitas vezes com carácter verdadeiramente pioneiro entre nós, temas científicos tão variados como a matemática, a astronomia de observação e a astronomia teórica, a náutica, a cosmografia, a teoria do calendário, a cartografia, a hidráulica, a estática, a óptica geométrica, a fortificação, a construção de instrumentos, etc.3 E foi por aí que as novidades de Galileu e o telescópio fizeram a sua entrada em Portugal.

Através dos canais proporcionados pela Companhia de Jesus, as notícias acerca de Galileu e as novas observações telescópicas celestes chegaram seguramente a Lisboa muito cedo. Em 1612 essas notícias já haviam alcançado a Índia, de onde um missionário jesuíta escrevia para a Europa pedindo mais informações. Espantosamente, já em 1614, um missionário português em Pequim fora informado desses descobrimentos e, entusiasmado, redigira um resumo dessas novidades, em chinês. O texto em questão é o Tianwen lüe (Sumário de questões sobre o Céu), escrito pelo jesuíta português Manuel Dias júnior (1574-1659), e que tem a honra maior de ser o primeiro texto que deu a conhecer as descobertas telescópicas de Galileu na China. O texto causou grande impacto entre os literatos chineses e foi reeditado várias vezes.

Em 1614 veio de Roma, para leccionar matemática na «Aula da Esfera», o italiano Giovanni Paolo Lembo (ca. 1570-1618) que em Roma construíra os primeiros telescópios dos jesuítas e que conhecera pessoalmente Galileu no período em que este e os astrónomos do colégio romano trocavam informações acerca das suas respectivas observações. Recorde-se que em Maio de 1611 Galileu fora recebido apoteoticamente nesse colégio, naquilo que foi a primeira grande cerimónia de consagração na vida do cientista. O curso que Giovanni Paolo Lembo leu em Santo Antão nos anos 1615-1617 é um documento da maior importância na história da ciência em Portugal pois contém o registo das primeiras observações telescópicas feitas no nosso país e a indicação da construção dos primeiros telescópios entre nós. 

Lembo descreve as observações por ele feitas em Lisboa com um “longemira”, comentando detalhadamente as implicações cosmológicas desses novos factos. Em particular, detém-se na explicação das fases de Vénus, observação que, como explica, mostra que o tradicional sistema geocêntrico de Ptolomeu não pode continuar a ser aceite. Para além de conter descrições das primeiras observações telescópicas realizadas em Portugal, o curso de Lembo tem também importantes instruções para a construção de telescópios, sendo muito provável que a «Aula da Esfera» tenha sido a primeira instituição do mundo onde os alunos foram iniciados na construção de telescópios.

Nos anos seguintes foi na «Aula da Esfera» que se continuaram a fazer observações com telescópios e a discutir as suas profundas implicações. Todos os professores da «Aula da Esfera» colocaram a discussão das observações telescópicas de Galileu no centro das suas lições. Todos eles rejeitaram o sistema ptolomaico e, recusando a adesão ao sistema coperniciano, optaram pela solução intermédia do sistema de Tycho Brahe. Deveu-se também a um professor dessa Aula, o jesuíta Cristovão Borri, a publicação da Collecta astronomica, o primeiro impresso com explicações detalhadas acerca das novidades galileanas e do funcionamento do telescópio.

Por muito surpreendente que isso possa parecer aos menos conhecedores da história científica nacional, a comemoração dos quatrocentos anos das descobertas telescópicas de Galileu em Portugal é, antes de mais nada, a celebração da «Aula da Esfera» do colégio de Santo Antão, e a lembrança de um tempo em que, por via dos canais proporcionados pelos jesuítas, as mais recentes novidades científicas circulavam entre a Portugal, a Europa e o resto do Mundo com uma grande celeridade, enchendo de espanto tanto os astrónomos de Pádua e Lisboa, como os de Goa ou Pequim.


Henrique Leitão in Lumen Veritatis (Boletim da Sociedade Científica da Universidade Católica Portuguesa), ano XVI, n.º 1, Abril 2010 


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