Em 1994 o Papa João Paulo II proclamou para toda a Igreja um ano da família. Para tal escreveu uma lindíssima Carta às Famílias, da qual transcrevemos alguns pontos:
Ponto 13:
Quem pode negar que a nossa seja uma época de grande crise, que se exprime sobretudo como profunda «crise da verdade»? Crise da verdade significa, em primeiro lugar, crise de conceitos. Os termos «amor», «liberdade», «dom sincero», e até mesmo os de «pessoa», «direitos da pessoa», significarão na realidade aquilo que por sua natureza contêm? Eis porque se revela tão significativa e importante para a Igreja e para o mundo — sobretudo no Ocidente — a Encíclica sobre o «esplendor da verdade» (Veritatis splendor). Somente se a verdade acerca da liberdade e da comunhão das pessoas no matrimónio e na família readquirir o seu esplendor, é que se desencadeará verdadeiramente a edificação da civilização do amor, e será então possível falar eficazmente — como faz o Concílio — de «promoção da dignidade do matrimónio e da família».
Civilização do amor significa «comprazer-se com a verdade» (cf. 1 Cor 13, 6). Mas uma civilização, inspirada numa mentalidade consumista e anti-natalista, não é uma civilização do amor nem o poderá ser nunca. Se a família é tão importante para a civilização do amor, isto fica-se a dever à especial proximidade e intensidade dos laços que nela se instauram entre as pessoas e as gerações. Apesar disso, ela continua vulnerável e pode facilmente sucumbir aos perigos que enfraquecem ou até destroem a sua união e estabilidade. Devido a tais perigos, as famílias cessam de testemunhar a favor da civilização do amor e podem até mesmo tornar-se a sua negação, uma espécie de contra-testemunho. Uma família desfeita pode, por sua vez, reforçar uma específica forma de «anticivilização», destruindo o amor nos vários âmbitos em que se exprime, com inevitáveis repercussões sobre o conjunto da vida social. (13.)
Ponto 12:
Eis por que a Igreja nunca se cansa de ensinar e testemunhar tal verdade! Embora manifeste uma materna compreensão pelas não poucas e complexas situações de crise, em que as famílias se vêem envolvidas, como também pela fragilidade moral de todo o ser humano, a Igreja está convencida de que deve absolutamente permanecer fiel à verdade relativa ao amor humano: caso contrário, atraiçoar-se-ia a si própria. Afastar-se desta verdade salvífica, seria como fechar à fé «os olhos do coração» (Ef 1, 18), que, pelo contrário, devem permanecer sempre abertos à luz, com que o Evangelho ilumina as vicissitudes humanas (cf. 2 Tm 1, 10). A consciência daquele dom sincero de si, pelo qual o homem «encontra-se a si mesmo», deve ser solidamente renovada e constantemente garantida, defronte às muitas oposições que a Igreja encontra por parte dos fautores de uma falsa civilização do progresso. A família exprime sempre uma nova dimensão do bem para os homens, e, por isso, suscita uma nova responsabilidade. Trata-se da responsabilidade por aquele singular bem comum, no qual está incluído o bem do homem: de cada membro da comunidade familiar; um bem certamente «difícil» (bonum arduum), mas fascinante.
De modo particular, paternidade e maternidade responsável referem-se directamente ao momento em que o homem e a mulher, unindo-se «numa só carne», podem tornar-se pais. É momento impregnado de um valor peculiar, quer pela sua relação interpessoal quer pelo seu serviço à vida: eles podem-se tornar progenitores — pai e mãe —, comunicando a vida a um novo ser humano. As duas dimensões da união conjugal, a unitiva e a procriadora, não podem ser separadas artificialmente sem atentar contra a verdade íntima do próprio acto conjugal.
Este é o ensinamento constante da Igreja, e «os sinais dos tempos», de que hoje somos testemunhas, oferecem novos motivos para reafirmá-lo com particular vigor. S. Paulo, tão atento às necessidades pastorais do seu tempo, exige clara e firmemente que se «insista oportuna e inoportunamente» (cf. 2 Tim 4, 2), sem qualquer temor pelo facto de «já não se suportar a sã doutrina» (cf. 2 Tim 4, 3). As suas palavras são bem conhecidas de quantos, compreendendo profundamente as vicissitudes do nosso tempo, esperam que a Igreja não só não abandone «a sã doutrina», mas antes, a anuncie com renovado vigor, perscrutando nos actuais «sinais dos tempos» as razões para um ulterior e providencial aprofundamento da mesma. (...)
A Igreja ensina a verdade moral acerca da paternidade e maternidade responsável, defendendo-a das visões e tendências erróneas hoje difusas. Por que motivo faz isto a Igreja? Será, talvez, porque não se dá conta das problemáticas invocadas por quantos aconselham cedências neste âmbito e procuram convencê-la inclusivamente com pressões indevidas, quando não mesmo com ameaças? Não raro, de facto, o Magistério da Igreja é acusado de estar superado já e fechado às instâncias do espírito dos tempos modernos; de realizar uma acção nociva para a humanidade, e inclusive para a própria Igreja. Ao manter-se obstinadamente nas próprias posições — diz-se —, a Igreja acabará por perder popularidade e os fiéis afastar-se-ão cada vez mais dela.
Mas como é possível sustentar que a Igreja, especialmente o Episcopado em comunhão com o Papa, seja insensível a problemas tão graves e actuais? Foi precisamente neles que Paulo VI entreviu questões de tal forma vitais que o impeliram a publicar a Humanae vitae! O fundamento sobre o qual se baseia a doutrina da Igreja acerca da paternidade e maternidade responsável é bem amplo e sólido.
Ponto 17:
O matrimónio, que está na base da instituição familiar, é estabelecido pela aliança com que «o homem e a mulher constituem entre si a comunhão íntima de toda a vida, ordenada por sua índole natural ao bem dos cônjuges e à procriação e educação da prole». Somente uma tal união pode ser reconhecida e confirmada como «matrimónio» pela sociedade. Ao contrário, não o podem ser as outras uniões interpessoais que não obedecem às condições agora recordadas, mesmo se hoje, precisamente sobre este ponto, se difundem tendências muito perigosas para o futuro da família e da própria sociedade.
Nenhuma sociedade humana pode correr o risco do permissivismo em questões de fundo relativas à essência do matrimónio e da família! Um tal permissivismo moral só pode causar dano às autênticas exigências da paz e da comunhão entre os homens. Compreende-se assim a razão por que a Igreja defende vigorosamente a identidade da família e incita as instituições competentes, especialmente os responsáveis pela política, bem como as organizações internacionais, a não cederem à tentação de uma aparente e falsa modernidade.
Ponto 20:
Graças a uma tal reflexão crítica, a nossa civilização, com tantos aspectos positivos que possui quer no plano material quer no cultural, dever-se-ia dar conta de ser, sob diversos pontos de vista, uma civilização doente que gera profundas alterações no homem. Por que é que se verifica isto? A razão está no facto de a nossa sociedade se ter afastado da verdade plena sobre o homem, da verdade acerca daquilo que o homem e a mulher são como pessoas. Consequentemente, não sabe compreender de maneira adequada o que sejam verdadeiramente o dom das pessoas no matrimónio, o amor responsável ao serviço da paternidade e da maternidade, a autêntica grandeza da geração e da educação.
A carta pode ser lida na íntegra aqui.
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