domingo, 12 de novembro de 2017

Debates doutrinais e critérios da teologia católica

Nos ambientes católicos, mas não só, têm-se, ultimamente, multiplicado os artigos, comentários e muitos outros modos de expressão pública veiculados pelos diversos media, sobre temas actuais da doutrina católica - de que a generalizada polémica suscitada pela Exortação Apostólica pós-Sinodal Amoris Laetitia (de 19 de Março de 2016) do Papa Francisco já é um paradigma.
  
Pode então colocar-se a seguinte questão aos leitores: como podemos nós os leigos, os mais ou os menos ou os assim-assim instruídos na verdade católica, na religião cristã, na doutrina, fazer um juízo acertado sobre um determinado texto que envolva temas de doutrina ou moral? Ou seja, como avaliar se o conteúdo de um texto teológico é propriamente teologia católica?

«Observamos que os noviços nesta doutrina encontram grande dificuldade nos escritos de diferentes autores, seja pelo acúmulo de questões, artigos e argumentos inúteis; seja porque aquilo que lhes é necessário saber não é exposto segundo a ordem da própria disciplina, mas segundo o que vai sendo pedido pela explicação dos livros ou pelas disputas ocasionais; seja ainda pela repetição frequente dos mesmos temas, o que gera no espírito dos ouvintes cansaço e confusão.» (sublinhados meus).

Inutilidades, desordem, disputas, repetições, cansaço, confusão, etc. … Não se pense que estas observações aqui citadas foram escritas nos nossos dias, suscitadas pelas polémicas actuais; não, não foram. O seu autor viveu no século XIII e foi um frade da Ordem dos Pregadores (vulgo dominicanos) de seu nome próprio Tomás: São Tomás de Aquino (1225-1274). São das primeiras palavras do Prólogo da sua obra maior, escrita em latim – a Summae Theologiae – em rigor, traduzir-se-ia por Suma de teologia ou, melhor, Suma da teologia, mas que ficou conhecida por Suma teológica.

«No empenho de evitar esses e outros inconvenientes [atrás sublinhados], tentaremos, confiando no auxilio divino, apresentar a doutrina sagrada sucinta e claramente, conforme a matéria o permitir.» Assim termina São Tomás o curto Prólogo da Suma que escreveu sobretudo, como ele enuncia, para os principiantes (incipientes), os iniciantes (incipientium) e os noviços (novitios).

Mas nem todos, infelizmente, pelas mais diversas razões, teremos acesso a São Tomás de Aquino, aquele que «foi sempre proposto pela Igreja como mestre de pensamento e modelo quanto ao recto modo de fazer teologia», como confirmou o Papa São João Paulo II na sua encíclica Fides et Ratio (nº 43), de 14 de Setembro de 1998, sobre as relações entre a fé e a razão.

Como escreveu em livro a ser lançado muito brevemente na Itália o Cardeal Gerhard Müller, Prefeito Emérito da Congregação para a Doutrina da Fé, invocando a necessidade neste momento da Igreja de discutir serenamente os argumentos de uns e outros, «os critérios [para tal discussão serena] devem ser as regras da teologia católica e não aqueles de uma posição que utiliza e instrumentaliza as doutrinas da fé da Igreja apenas como matéria para a construção de uma “outra Igreja”» (1) (sublinhado meu).

Ora, já em 2012, a Comissão Teológica Internacional (CTI) que é um importante organismo da Santa Sé, dependente da Congregação para Doutrina da Fé, veio justamente publicar um documento sobre o que deve ser a teologia para se poder afirmar católica – uma vez que já então se fazia sentir essa necessidade, devido a muitas filosofias e/ou ideologias que se afirmam teologias e até católicas, mas que na sua substância não obedecem aos critérios definidos para tal.

São estes critérios – à luz dos quais é muito útil lermos o que actualmente circula nos infindáveis media, católicos ou não - que já abaixo transcrevo do referido documento da CTI, saído durante o pontificado de Bento XVI, em 2012, e que foi aprovado em detalhe (de forma específica) e mandado publicar pelo então Prefeito da Congregação Para a Doutrina da Fé, o Cardeal William Levada.

Os números que precedem cada um dos 12 critérios elencados são os constantes do documento original; os negritos sãos meus:

«Critérios pelos quais teologias diversas e múltiplas possam ser reconhecidas como autenticamente católicas (cf. n.3):

9. Um critério da teologia católica é o reconhecimento da primazia da Palavra de Deus. Deus fala “muitas vezes e de modos diversos”: na criação, através dos profetas e sábios, por meio das Sagradas Escrituras e, de forma definitiva, através da vida, morte e ressurreição de Jesus Cristo, o Verbo feito carne (cf. Hb 1,1-2).

15. Um critério da teologia católica é que ela tem a fé da Igreja como fonte, contexto e norma. A teologia mantém a fides qua e a fides quae unidas. Ela expõe o ensinamento dos apóstolos, a Boa Nova sobre Jesus Cristo, “segundo as Escrituras” (1Cor 15,3-4), como regra e estímulo da fé da Igreja.

19. Um critério da teologia católica é que, precisamente como a ciência da fé, a “fé busca compreender” (fides quaerens intellectum), ela tem uma dimensão racional. A teologia se esforça para compreender o que a Igreja crê, e que pode ser conhecido sub specie Dei. Como scientia Dei, a teologia procura compreender de forma racional e sistemática a verdade salvífica de Deus.

24. Um critério da teologia católica é que ela deve atingir constantemente o testemunho canónico da Escritura e deve promover que tal testemunho esteja ancorado em toda a doutrina e prática da Igreja, uma vez que “toda a pregação da Igreja, como a própria religião cristã, seja alimentada e regida pela Sagrada Escritura”. A teologia deve esforçar-se para abrir amplamente a Escritura aos fiéis cristãos, de modo que estes possam entrar em contacto com a Palavra viva de Deus (cf. Hb 4,12).

32. A fidelidade à Tradição Apostólica é um critério da teologia católica. Essa fidelidade requer uma recepção activa e com discernimento dos vários testemunhos e expressões da Tradição Apostólica até agora em curso. Isso implica o estudo da Sagrada Escritura, da liturgia e dos escritos dos Padres e Doutores da Igreja, além da atenção ao ensinamento do Magistério.

36. Atenção ao sensus fidelium é um critério para a teologia católica. A teologia deve esforçar-se para descobrir e articular com precisão no que os fiéis católicos realmente acreditam. Ela deve falar a verdade no amor, para que os fiéis possam amadurecer na fé, e não serem “joguetes das ondas e agitados por todo vento de doutrina” (Ef 4,14-15).

44. Dar adesão responsável ao Magistério em suas várias gradações é um critério da teologia católica. Os teólogos católicos devem reconhecer a competência dos bispos e, especialmente, do colégio dos bispos com o chefe, o Papa, para dar uma interpretação autêntica da Palavra de Deus transmitida na Escritura e na Tradição.

50. Um critério da teologia católica é que ela deve ser exercida em colaboração profissional, na oração e na caridade, com toda a comunidade de teólogos católicos na comunhão da Igreja, em espírito de estima e apoio mútuos, atenta tanto às necessidades e aos comentários dos fiéis quanto à orientação dos pastores da Igreja.

58. Um critério da teologia católica é que ela deve estar em constante diálogo com o mundo. Ela deve ajudar a Igreja a ler os sinais dos tempos, iluminados pela luz que vem da revelação divina, e nisso fazer ganhar em sua vida e missão.

73. Um critério da teologia católica é que ela se deve esforçar para fazer uma apresentação científica e racional das verdades da fé cristã. Para isso, necessita fazer uso da razão e deve reconhecer a forte relação entre a fé e a razão, em primeiro lugar razão filosófica, de modo a superar tanto o fideísmo quanto o racionalismo.

85. Um critério da teologia católica é que ele tenta integrar uma pluralidade de questões e métodos para o projecto unificado do intellectus fidei, e insiste na unidade da verdade e, portanto, sobre a unidade fundamental da própria teologia. A teologia católica reconhece os métodos próprios de outras ciências e os utiliza criticamente em sua própria pesquisa. Ela não se isola da crítica e está aberta ao diálogo científico.

99. Um critério da teologia católica é que ela deve procurar e alegrar-se com a sabedoria de Deus, que é loucura para o mundo (cf. 1Cor 1,18-25; 1Cor 2,6-16). A teologia católica deve enraizar-se na grande tradição sapiencial da Bíblia, conectar-se com as tradições do cristianismo do Oriente e do Ocidente, e procurar estabelecer uma ponte com todas as tradições de sabedoria. Na busca da verdadeira sabedoria no estudo do Mistério de Deus, a teologia reconhece a prioridade absoluta de Deus; pretende não possuir, mas ser possuída por Deus. Ela deve, portanto, estar atenta ao que o Espírito diz às Igrejas, por meio do “conhecimento dos santos”. A teologia comporta um esforço para a santidade e uma consciência cada vez mais profunda da transcendência do mistério de Deus».

Será que o que lemos para nos instruir, aprofundar ou esclarecer a nossa fé cristã e católica segue estes critérios? Que eles possam então servir-nos também a nós leigos de orientação prática e segura quando acompanhamos os debates e as polémicas em causa, pois penso que constituem um excelente guia para um juízo verdadeiramente católico, sobre o que possamos ler e ouvir.

A versão integral, em português, do documento, intitulado Teologia Hoje: Perspectivas, Princípios e Critérios (28 pp), encontra-se no endereço abaixo, para os mais empenhados e corajosos:


João Duarte Bleck, médico e leigo Católico

1 – Ver o documento Così scrisse Müller, em La Nuova Bussola Quotidiana, de 09-11-2017, em:
http://www.lanuovabq.it/it/cosi-scrisse-mueller, onde aquele blog publica algumas extensas passagens relevantes do texto com que o cardeal introduz o livro de Rocco Buttiglione, Risposte amichevoli ai critici di Amoris Laetitia (Edizioni Ares, Novembro 2017).


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1 comentário:

Anónimo disse...

Muito obrigado por esse artigo, me despertou interesse em aprofundar o pensamento teológico com toda a Igreja!