Ia-me afastando mais e mais de Vós, meu Senhor e minha vida, e a minha vida
começava a ser uma morte, ou antes, era já uma morte a vossos olhos. E neste
estado de morte me conserváveis ainda.
A fé tinha desaparecido por completo, mas o respeito e a estima haviam permanecido
intactos. Concedíeis-me outras graças, meu Deus, mantínheis em mim o gosto pelo
estudo, pelas leituras sérias, pelas coisas belas, a repugnância pelo vício e
pela fealdade. Fazia o mal, mas não o aprovava nem o amava. Dáveis-me essa vaga
inquietação de uma má consciência que, por adormecida que esteja, nem por isso
está morta.
Nunca senti esta tristeza, este mal-estar, esta inquietação, senão nessa
altura. Era, pois, um dom vosso, meu Deus; que longe estava eu de suspeitar de
que assim fosse! Que bom sois! E, ao mesmo tempo que impedíeis a minha alma,
por essa invenção do vosso amor, de se afundar irremediavelmente, preserváveis
o meu corpo: pois se tivesse morrido nessa altura, teria ido para o inferno. Os
perigos da viagem, tão grandes e tão numerosos, de que me fizestes sair como
que por milagre! A saúde inalterável nos lugares mais malsãos, apesar de tão
grandes fadigas!
Ó meu Deus, como tínheis a vossa mão sobre mim, e quão pouco eu a sentia!
Como me protegestes! Como me abrigastes sob as vossas asas, quando eu nem
sequer acreditava na vossa existência! E, enquanto assim me protegíeis, e o
tempo ia passando, parecia-Vos que tinha chegado o momento de me reconduzir ao
cercado.
Desfizestes, apesar de mim, todos os laços maus que me teriam mantido
afastado de Vós; desfizestes mesmo todos os laços bons que me teriam impedido
de ser, um dia, todo vosso. Foi a vossa mão, e só ela, que fez disto o começo,
o meio e o fim. Que bom sois!
Era necessário fazê-lo, para preparar a minha alma para a verdade; o
demónio é excessivamente senhor de uma alma que não é casta, para nela deixar
entrar a verdade; não podíeis entrar, meu Deus, numa alma onde o demónio das
paixões imundas reinava como senhor. Queríeis entrar na minha, ó Bom Pastor, e
fostes Vós que dela expulsastes o vosso inimigo.
Charles
de Foucauld (1858-1916), eremita e missionário no Saara in 'Retiro
em Nazaré', Novembro de 1897
2 comentários:
Homem bom! Intercedei por nós, Beato Charles de Foucauld!
Como são insondáveis os Caminhos do Senhor!...
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