sexta-feira, 3 de março de 2017

A Quaresma e as calças

Quando Luísa viu aquele par de calças, foi amor à primeira vista. Acabara de assistir à Missa dominical e, cumprindo uma antiga rotina, fora tomar a bica do costume no café da praxe, ali mesmo no centro comercial, a meio caminho entre a sua casa e a igreja paroquial.

Na homilia, por sinal, o Padre Sérgio tinha falado da Quaresma, aconselhando a prática da mortificação cristã, nomeadamente o jejum na quarta-feira de cinzas e na sexta-feira santa, e a abstinência todas as sextas-feiras. Incomodara-a aquela abordagem, que lhe pareceu anacrónica e até um pouco disparatada: que tem Deus a ver com a ementa do almoço ou do jantar?! Que relação há entre o bem da alma e a qualidade do menu?! Na realidade, parecia-lhe tão improcedente o convite à penitência como lhe resultaria despropositado que, por absurdo, o seu médico lhe receitasse duas Avé Marias antes de cada refeição!

O namoro com aquele trapo de estimação não durou muito pois, com medo de que qualquer eventual cliente se lhe antecipasse, Luísa foi logo no dia seguinte à boutique comprar aquelas calças que a tinham fascinado. É verdade que o preço não era convidativo, mas era um investimento – desculpou-se – pois, decerto, mais tarde seriam ainda mais caras. Voltou para casa tão satisfeita consigo mesmo que nem reparou no mendigo que lhe estendera a mão, numa atitude de humilde súplica, e que, ao contrário de outras vezes, não teve a esmola costumeira, nem outra resposta do que a indiferença da sua precipitação.

Chegar a casa e experimentar a compra foi tudo um: desembrulhou com cuidado o presente que magnanimamente se concedera, retirou as etiquetas e vestiu finalmente as calças. O tecido era macio e parecia de boa qualidade, a altura era a ideal e a cor não podia ser mais o seu género. Mas, quando tentou abotoar as calças, não o conseguiu. Repetiu a operação uma e outra vez, contraindo-se o mais que podia, mas a verdade é que a cintura estava muito apertada e, por mais que se esforçasse, o botão fugia à respectiva casa com uma teimosia tão irritante que Luísa impacientou-se. A diferença era apenas de 1,5 centímetros, mas era o suficiente para que as calças não lhe servissem e, como na loja não havia nenhum número maior, resignou-se à rigorosa dieta que se impunha: para grandes males, grandes remédios!

Foram dias a fio de sacrifícios, alimentando-se apenas de sopas, frutas, legumes e iogurtes magros, mas cada milímetro a menos pesava uma tonelada de dolorosas privações, que Luísa padecia estoicamente, por amor às calças.

Foi num dia de chuva que, ao atravessar a rua apressadamente, Luísa foi colhida por um táxi a grande velocidade. A brutalidade do choque, que a projectou a vários metros de distância, teve o efeito imediato de lhe produzir um sério traumatismo craniano, que a induziu num estado comatoso. Era confusa a sua percepção: sentia dores, mas parecia-lhe que não eram dela, embora fossem do seu organismo. Notou vagamente a azáfama dos populares, polícias, maqueiros, enfermeiros e médicos à sua volta, mas o torpor do seu corpo desfeito foi progressivamente alienando-a de tudo o que a rodeava e que lhe parecia cada vez mais longínquo. O seu último pensamento foi para as suas calças novas, que estreava.

Depois, viu-se definitivamente desprendida da sua materialidade e atraída pela misteriosa luz de um outro mundo. Mas quando se dispôs a cruzar o limiar da eternidade, Luísa não o conseguiu: por 1,5 centímetros a sua alma não coube na porta estreita que conduz à Vida.

Pe. Gonçalo Portocarrero de Almada in 'Histórias e Morais' 


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3 comentários:

Anónimo disse...

Embora a ideia seja brilhante, o sentimento que está por detrás dela não o é assim tanto. Quem é o autor para ajuizar da entrada ou não no céu de alguém ainda que possa não ter sido aparentemente tão generosa quanto poderia, ou ter optado algumas vezes mais por si do que pelos outros? As histórias que acabam com punições morais ressoam em mim com enorme desprezo, pois se a ideia é promover a caridade, não será com estas histórias que terá o maior sucesso. Só o Amor muda e esta história não é uma história de amor. Uma pessoa que creia que mudará o outro pelo castigo ou pela punição, não só gastará o seu tempo em vão, como promove uma má imagem sua. É tão engraçado ver a obstinações de alguns, quando outros com uma só palavra, um só gesto de genuíno amor são capaz de conseguir o que outros não alcançariam em anos… têm o que merecem.

Anónimo disse...

Ainda hoje comprei várias peças de roupa. É verdade, tenho tanta roupa que pensei abrir uma loja. Hoje mesmo passei por um homem sentando no chão antes e depois das compras, e quando abanou a lata não lhe dei rigorosamente nada, nem mesmo os 5 cêntimo que pedia. Se lhos desse ou me injuriava ou os deitava para o chão ou ar, como vi fazerem em belém a uma familiar que se admirou… então tomou-os de volta de bom grado e disse que se lhe quisesse dar 40 cêntimos ela aceitava! Mas, porque não lhos dei? Será porque lhe dei da última vez que por ali passei? E que como se diz quem precisa, precisa sempre e quem dá, dá uma vez? Não deve ter sido, dou mais de uma vez… será que foi porque o homem era gordo, gordíssimo e como respondeu um amigo meu a uma mulher que lhe pedia à porta da igreja: Dê-me qualquer coisinha para comer. Você precisa é de comer menos. Bom, o padre diz que não precisamos de comer muito, na verdade ainda não consegui aprender com ele, deve fazer dieta todas as sextas feiras do ano só para manter a elegância, quer dizer a penitência. Não havia gordos nos campos de concentração, logo é falso que se engorda com o ar. Bingo! Será porque havia naquela conversa um tom tal repetitivo e falso aliado ao automatismo do gesto do despejar da lata da última vez? Podem ser tantas coisas, não importa nada porque a única importância seria dar sem questionar o como o porquê… É capaz de haver hipocrisia, quando se esbanjam largos euros em coisas que não são verdadeiramente necessárias, só porque nos dá prazer. Um prazer que se desvanece ao passar a esquina. Mas é pecado desejar o prazer? Boa ideia para uma mortificação… Desta vez não voltei atrás para colocar uma moeda na lata, porque imaginei o cego que pedia no metro e tinha uma conta bancária avultada e ao fim dum dia de trabalho tirava os óculos?? Mas pensando bem o que mais me perturbou, é sentir-me um robô… passas para baixo, passas para cima a mesma lenga lenga. Se lhe dou 5€ ou 10€ o homem nunca mais me esquecerá. É tão humilhante o poder do dinheiro… Não se pode dar gorjetas… das vezes seguintes as pessoas já não olham para a nossa cara, mas para as nossas mãos… Somos como aquelas máquinas do Bingo, ressoa uma campainha na cabeça Tlim Tlim… sai a moeda. Mas por vezes a moeda não sai… então não temos pessoas, temos cães de Pavlov a salivar. Hoje à saída do Pingo Doce também encontrei a mesma romena que pedia uma moedinha, disse-lhe que não. Lá dentro dei 5 euros para ração de gato. A minha mãe diria logo que gosto mais dos animais que das pessoas, (embora ela não dê para nenhum dos dois) o que não é particularmente mentira, aprendo mais com muitos animais do que com algumas pessoas.

Anónimo disse...

“Deixe-me ficar com a moeda do carrinho”. “Não” Será crueldade? Xenofobia? Não. Dei da última vez, será que há vezes sim e vezes não? Sim, não pode ser todos os dias, mas todos os dias gasto muito dinheiro… um euro não faria falta. A verdade é que não gosto de sentir que tenho um € escrito na testa. Dos vestidos e casacos que comprei não preciso de nenhum. É um escândalo. É tanta a roupa que supero uma amiga que me mostrou a coleção de sapatos que enchia a sua garagem. Ela é fútil, eu não…. E quando penso partir todos os saltos de sapatos com pedras e de fazer uma fogueira com todas as roupas e vestir-me de hábito ou sair nua como são Francisco acho que devo ser mais sensata. Mas como? As igrejas não recebem roupas. Graças a Deus. Não mandem mais as ceroulas do Vossos maridos com nódoas, nem as calças de pinças do tamanho de um pipo de vinho que igual só vi no lagar da minha avó! Os contentores são assaltados por pernas sem cabeças que nos aterrorizam a meio da noite. Os pobres são, pobres mas refinados… não são onde despejar o lixo dos vossos roupeiros com traças. Ainda no outro dia perguntei o que procurava um no contentor do lixo. Quer roupa? Sim. Blusões? Ok Só tenho de mulher… pode ser para a mãe… Estavam novos. Este talvez dá para homem digo adivinhando, que os outros ficaram ao lado do contentor pouco depois só para não ir carregado. Olhe, mal por mal digo-lhe Sr padre, vale mais o OLX que de 1,90 os pedem delicadamente para fazer a 1€ e perguntam se podemos entregar na cochichina por detrás do sol-posto e nós perguntamos delicadamente não quer que lhe dê dinheiro para comprar a peça, esteja à vontade… Isto mostra bem como somos provados sempre que não pensamos em ir para o céu e dar tudo generosamente e de mão beijada… A sério tenho pensando no assunto realmente depois de panos do pó para limpar os bancos da igreja ou retalhos para encher o colchão do meu gato. Posso pegar-lhes fogo, mas então lembrei-me da venda de Natal! Azar dos azares, se damos para a venda de natal é provocação se queremos dar não há venda de natal. O Natal é para respeitar!! Não para fazer toca de monos, já para não falar nos livros guerra e paz, e a morgadinha cheios de bolor e lêndeas. Filmes por** camuflados em VHS, e meias de ligas e luvas de renda de casamento encardidas! Ah, peço-vos que não escrevam nas margens dos livros confidências e muito menos assinem o nome completo, e depois se desfaçam dos livros para o cu de judas . Depois vemo-vos, a vós, a família Bobom no banco da igreja em escadinha e não sabemos como é que o vosso espólio de bem, veio parar tão indignamente à nossa arrecadação de trastes!!? Por vezes até os livros do padre nos vêm parar às mãos….!