A minha primeira visita no
Uganda foi a Namugongo, palco de cenas indescritíveis de horror e, ao mesmo
tempo, ponto culminante da história do país. A data central foi o dia 3 de
Junho de 1886 e por isso o 3 de Junho é a festa nacional.
Poucos anos antes, tinham
chegado os exploradores ingleses, depois os missionários protestantes e logo a
seguir os missionários católicos. Encontraram uma sociedade organizada e com um
certo desenvolvimento económico, aprenderam rapidamente a língua e muita gente
se converteu.
A religião tradicional incluía Katonda
(o Deus criador e misericordioso) e várias dezenas de Lubaale (espíritos), como
o espírito do lago, cujos oráculos chegavam a exigir sacrifícios humanos. Um ditado
dizia «Katonda tatta» (Katonda não mata), mas os espíritos fartavam-se de matar
e o rei também. Por exemplo, o Kabaka (rei) Mutesa, o mesmo que acolheu os
exploradores e os missionários, matou os 60 irmãos logo que subiu ao trono.
Existia mesmo um local próprio para as execuções dos membros da corte, com um
corpo específico de carrascos.
Cinco anos depois de os
missionários católicos chegarem, o Kabaka Mutesa morreu e sucedeu-lhe o Kabaka
Mwanga II, com 16 anos. E começaram a morrer cristãos.
Houve muitas razões de conflito
com os recém-convertidos da corte. Os feiticeiros insistiam em atribuir aos
cristãos os contratempos da pesca, ou da agricultura. Os muçulmanos queriam
controlar o país. O primeiro-ministro queria afastar as pessoas que lhe pudessem
fazer sombra. Sobretudo, Mwanga era homossexual e estava habituado a abusar de
quem encontrava pela frente. Mwanga até apreciava o cristianismo, o que não
suportava era que os cristãos não aceitassem promoções que envolviam encargos imorais
nem condescendessem como os seus desejos sexuais.
O chefe da casa real, Joseph
Mukasa, protegia os pajens dos avanços do Kabaka e pagou por isso. Em geral, os
pajens eram os filhos dos principais chefes e jovens escolhidos, de grande
valor. Muitos converteram-se e Joseph Mukasa era o catequista do grupo.
Em 1885, com o falso pretexto
de impedir uma invasão, Mwanga chacinou um grupo de missionários anglicanos que
entraram no Uganda. Os protestos de Joseph Mukasa foram a gota de água: foi
mandado decapitar e queimar.
Para substituir Mukasa, foi
nomeado o jovem Charles Lwanga, o chefe dos pajens. Nesse mesmo dia, Lwanga
recebeu o Baptismo. O rei continuou a queixar-se de que nunca encontrava os
pagens quando queria e a vingança foi ainda mais terrível. O Kabaka torturou
alguns e convocou toda a corte para mandar os cristãos irem para um lado e os
outros ficarem. Todos sabiam perfeitamente o que isso implicava. Lwanga
colocou-se imediatamente do lado dos cristãos, seguido por todos os pajens do
rei, excepto 5. Os que ainda estavam a receber catequese, foram baptizados à
pressa.
O martírio prolongou-se ao longo de bastantes dias, com uma crueldade
difícil de compreender. Foram esquartejados vivos e queimados de forma a
prolongar ao máximo o tempo de vida e o sofrimento, tentando desviá-los da fé. Felizmente,
ficaram registos e conservam-se muitos testemunhos sobre cada um deles. Até há
fotografias deles, dos missionários, do Kabaka e dos outros personagens desta
história.
Charles Lwanga foi o primeiro.
Os outros, foram arrastados pelos pés durante alguns quilómetros, até perderem
a pele e ficarem com as costelas à vista. Por isso o local se chama hoje Namugongo,
porque na língua Luganda se diz «abassajja baabatutte namugongo» (homens
arrastados de costas).
Jamais
alguém tinha morrido assim. O comandante da força de execução deparou-se com
uma alegria inexplicável e uma calma que nunca tinha visto. Foi perguntar ao
Kabaka se aqueles rapazes eram mesmo para matar. Obedeceu, mas mais tarde converteu-se.
O Kabaka Mwanga tinha 18 anos
quando os seus 45 pajens morreram, 22 católicos e 23 anglicanos. Vários tinham
menos de 20 anos, os mais novos tinham 14 anos.
Os mártires não deixaram uma
mensagem de ódio mas de uma fidelidade extraordinária a Deus e ao Kabaka. Embora
os missionários tenham sido expulsos, o número de cristãos multiplicou-se.
O
cristianismo do Uganda ficou marcado pelo exemplo dos mártires de Namugongo. Sincero
respeito pelas convicções de todos (nomeadamente, ecumenismo entre católicos e
protestantes e generosidade com os muçulmanos), fidelidade à fé, fidelidade à
moral (nomeadamente em matéria de homossexualidade) e delicadeza e amizade para
com todos, sem qualquer exclusão. O chefe dos carrascos e o Kabaka Mwanga
acabaram cristãos.
Hoje, a população do Uganda é quase toda cristã e a maioria
católica. Os protestantes que encontrei têm devoção a Nossa Senhora e aos
santos, em particular aos mártires de Namugongo, e reconhecem ao Papa um papel
singular.
José Maria André
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