terça-feira, 18 de outubro de 2016

Cardeal Sarah muda o paradigma com o livro 'Dieu ou rien'

"Eles não nos têm de dizer o que temos que fazer." Foram estas as palavras usadas pela teólogo Alemão, o Cardeal Walter Kasper, para descrever o que pensava sobre as contribuições africanas durante o Sínodo de 2014 para Família, quando Bispos Católicos e leigos se juntavam para discutir os desafios que a família enfrenta no mundo moderno.

Foi difícil não relembrar esta frase quando recentemente lia este livro [1]. Isto porque neste best-seller de 424 páginas, 'Dieu ou Rien' [Deus ou Nada] (Fayard, 2015), o Cardeal Robert Sarah, o novo Prefeito da Congregação para o Culto Divino, ilustra em conversa com o jornalista francês Nicolas Diat (o autor de um surpreendente e recente livro sobre o pontificado de Bento XVI) precisamente porque é que a Igreja universal devia ouvir mais os Católicos que vêm de culturas onde a fé está a florescer e ouvir muito menos os que estão preocupados com os problemas das Igrejas particulares do Ocidente: igrejas que são fabulosamente ricas em termos materiais mas espiritualmente moribundas, de acordo com qualquer padrão.

O título do livro sublinha
o tema central de Sarah: as sociedades que perdem um sentido de Deus - e não é qualquer deus, mas o Deus que é simultaneamente Caritas, Logos, Misericordia e Veritas - e escolhem o nada não conseguem evitar a experiência de um declínio profundo. Este tema da morte de Deus/morte do homem dificilmente é novo. Está implícito na discussão de Platão sobre as três versões do ateísmo e foi anunciado séculos mais tarde por Nietzsche. No entanto, o que torna a contribuição de Sarah diferente é a sofisticação com que ele desenvolve o seu argumento. Estamos diante de um homem que está igualmente familiarizado com discutir os pontos mais finos sobre religiões animistas [2] ou ao explicar as dimensões mais obscuras do caso Galileu.

"A maior dificuldade do homem não é", escreve Sarah, "o que a Igreja ensina sobre a moral, a coisa mais dificíl para o mundo pós-moderno é acreditar em Deus". Recorrendo a fontes desde as escrituras Hebraicas e Cristãs, aos filósofos Gregos, aos Padres da Igreja, a referências Judias, à literatura Russa e aos intelectuais franceses modernos, Sarah expõe uma tese poderosa que sugere que as decisões contra o Deus que se revela a Si mesmo na Bíblia estão a devastar grande parte do mundo, especialmente o Ocidente e ainda mais especificamente a Europa Ocidental. E ao fazê-lo - pois, como qualquer pessoa que tenha conhecido Sarah pode comprovar, ele é um homem genuinamente humilde - o Cardeal, nascido na obscura vila africana de Ourous, revela surpreendentemente um intelecto formidável que apenas se compara com anos de experiência pastoral e um profundo conhecimento, e contacto pessoal directo, com os muitos e diferentes desafios que confrontam a Igreja Católica por todo o mundo.

Para Sarah, pouco importa se este "vazio" se expressa através do ateísmo militante, do materialismo marxista, do liberalismo secular ou das entidades religiosas politicamente correctas que outro Cardeal, o Beato John Henry Newman, famosamente condenou como "o espírito do Liberalismo na religião". A negação de Deus, ensina Sarah, só pode levar a uma coisa: um enorme vazio que será sempre preenchido por caminhos destrutivos. Caminhos como a auto-absorção, o hedonismo e o tecno-utopianismo. Sarah não tem medo de fazer uma analogia entre as modas do Ocidente e os caminhos que ele acredita que as religiões animistas africanas seguiram para fabricar falsos deuses e ajudarem pessoas a distraírem-se a si mesmas do medo que ataca o homem quando ele pensa que está verdadeiramente sozinho no universo.

Por outro lado, Sarah sugere que outra forma de preencher o vazio é através do implacável abraço do equalitarismo, quer na economia quer através da promoção da ideologia de género. Ao usar este argumento, é pouco provável que Sarah ganhe muitos amigos no nosso mundo obcecado com a igualdade: uma fixação que inclui mais-do-que-uns-poucos Católicos. Dado que Sarah passou a maior parte da sua vida como arcebispo na Guiné, antiga colónia francesa, a enfrentar um dos piores opressores marxistas pós-coloniais da África, Ahmed Sékou Touré (que colocou Sarah na lista de inimigos para matar mesmo antes de morrer em 1984), é pouco provável que Sarah esteja especialmente preocupado  com os ataques dos liberais do Ocidente.

A vida de Fé de Sarah exemplifica em muitas maneiras a odisseia do Catolicismo africano do século XXI. Nascido em 1945, beneficiou do impulso missionário que caracterizou o Catolicismo Francês entre o século XIX e metade do século XX. Filho único de pais animistas, convertido ao Catolicismo, Sarah fala comoventemente dos padres espiritanos que deixaram a França, em muitos casos para sempre, para viver em algumas das regiões mais desoladas de África. Sarah foi baptizado por um sacerdote espiritano em 1947 e faz questão de dizer que foi ordenado sacerdote por um bispo espiritano em 1969.

Ao reflectir sobre o impacto do Catolicismo nos africanos que conheceu como rapaz e jovem adulto, Sarah nota que havia uma força libertadora quando o Catolicismo tornava divino o mundo natural, libertando portanto as pessoas do medo e da superstição. Para Sarah, esta é uma ilustração prática de como os dogmas e doutrinas da Igreja não são opressores mas, pelo contrário, libertam as pessoas revelando-lhes a verdade sobre as realidades últimas. Esta é não só uma mensagem importante para os que imaginam tornar o Catolicismo em algo doutrinalmente incoerente como, por exemplo, a Igreja de Inglaterra que representa o progresso. Também ajuda a explicar porque é que Sarah insiste tanto que a prática pastoral tem que se conformar com a doutrina - e não o contrário.

A vocação de Sarah ao sacerdócio veio cedo. Abraçá-la envolveu verdadeiras dificuldades que poriam à prova os crentes mais fervorosos. Para além de ter que viajar centenas de milhas a pé, pela estrada e barco para ir ao seminário, Sarah teve que ultrapassar doenças que quase iam levar à sua saída do seminário. Também não podia ser fácil para um jovem Guineense ser enviado para o Senegal, França, Roma e Jerusalém para estudos mais avançados, sem saber se iria ver o seu pai e mãe outra vez: pais que, diz Sarah, põem a segurança da sua própria velhice em risco ao apoiar o caminho do seu único filho para o sacerdócio.
Parece que Sarah absorveu intelectualmente imensa teologia, filosofia e exegese escriturística durante os seus estudos na Europa e Israel. Não estava, no entanto, tão absorvido ao ponto de não reparar no caos que tomou conta da vida do Ocidente desde meados dos anos 60 para a frente. Sarah não é nada tímido ao sublinhar o que ele vê como os efeitos profundamente negativos do Maio de 68 sobre o Ocidente e a Igreja de uma forma geral, incluindo, diz ele, o seu país natal - a Guiné.

Foi uma grande mudanaça para Sarah regressar de algumas das melhores instituições educativas da Igreja e ser enviado pelo seu bispo como prior numa das áreas mais inacessíveis da Guiné. Sarah também se viu a si mesmo numa sociedade cuja economia estava a ser destruída por políticas socialistas e a viver sob um governo que era implacável nos seus esforços para acabar com quaisquer sinais de oposição. A certo ponto, Sarah foi chamado para reformar um seminário que, descreve ele, estava com uma falta total de formação espiritual e onde o regime, numa tentativa para atacar a Igreja, tomou o lado dos seminaristas rebeldes. Quando Sarah foi confirmado como arcebispo de Conakry, em 1979, na incrível jovem idade de 34 anos, o seu predecessor Raymond-Marie Tchidimbo tinha acabado de ser libertado de oito anos de um campo de concentração: uma experiência que incluía tortura regular.

Sarah serviu como arcebispo de Conakry até 2001. Os seus vinte e um anos de trabalho pastoral envolveram enfrentar não só o regime Marxista de Sékou Touré e os governos que lhe seguiram, mas também o facto de viver num país de maioria muçulmana. Aqui Sarah fala na sua boa relação pessoal com os muçulmanos e menciona que os muçulmanos na Guiné viam o trabalho da Igreja Católica como a única instituição que gozava de alguma independência durante a ditadura de Sékou Touré.

Mas Sarah não é ingénuo no que toca ao Islão. Ele não hesita, por exemplo, em usar a expressão "terrorismo Islâmico" quando fala sobre os tumultos que amaldiçoam hoje o Médio Oriente. Sarah sublinha que o Catolicismo e o Islão funcionam com base em premissas incompatíveis. Isto, diz ele, limita as oportunidades de um diálogo ao nível das ideias. Por outro lado, Sarah sugere que a cooperação prática face aos problemas comuns, como o controlo populacional dos programas neo-malthusianos promovidos por ONGs e governos do Ocidente, pode ser a melhor maneira de avançar.

Em 2001, João Paulo II nomeou Sarah para o serviço, em Roma, de Secretário da Congregação para a Evangelização dos Povos. No livro é evidente que Sarah não ficou especialmente contente com isto. No entanto, esta mudança fez com que em 2010 Sarah fosse transferido para Presidente do Conselho Pontifício Cor Unum, que supervisiona o trabalho caritativo da Igreja por todo o mundo - o que fez com que aprofundasse o seu conhecimento da vida da Igreja universal. Assim, a sua análise das diferentes correntes de teologia da libertação é muito subtil, e separa os horrores marxistas da teologia que é mesmo boa. As críticas de Sarah ao Catolicismo da Europa Ocidental - a profunda crise de Fé, a infinita burocratização, o humanitarianismo sentimental e a mania das ONG que substitutem a crença religiosa - são claras, directas e, podemos dizer, difíceis de refutar.

E Sarah também não se detém ao descrever as dificuldades que o Catolicismo africano enfrenta. Ele aponta não apenas as ameaças externas, tais como as formas cada vez mais violentas adoptadas pelo Islão, mas também os problemas internos. Os últimos incluem estilos litúrgicos que ocasionalmente degeneram no culto da própria pessoa e nos sacerdotes a abandonar a sua vocação para entrar em seitas esotéricas semi-animistas.

Há então aquilo que Sarah insistentemente chama "a heresia do activismo", que afecta muitos sacerdotes pelo mundo fora. Esqueceram-se, diz ele, que a centralidade da vida só se encontra em Deus. Acima de tudo, Sarah está ciente da presença do mal no mundo. Ele menciona o holocausto (para o qual, já agora, ele usa a palavra preferida por muitos judeus religiosos - "Shoah") como talvez a maior iniquidade dos tempos modernos.

No entanto, quando chegava a altura de falar destes problemas, Sarah regressava sempre à necessidade primordial do ser humano por um único Deus verdadeiro. Responder às necessidades materiais das pessoas é bom, diz Sarah, mas isso simplesmente não chega. Para ilustrar isto, Sarah conta ter conhecido um jovem rapaz muçulmano num campo de refugiados da Jordânia. O rapaz, disse Sarah, tinha todas as suas necessidades materiais que precisava no campo. No entanto, explicou Sarah, toda a assistência material do mundo não conseguia responder às dúvidas deste rapaz sobre a existência de Deus: uma crise que começara pelo facto de o pai do rapaz ter sido chacinado por terroristas islâmicos.

Isto levou Sarah a criticar aqueles Cristãos que reduzem a evangelização a ideias políticas ou à promoção de um desenvolvimento socio-económico. A certa altura, Sarah criticou fortemente os ocidentais e organizações internacionais que usam expressões como "eliminar a pobreza". A compreensão Cristã da pobreza, diz Sarah, difere radicalmente da que a mente secular tem. Há tipos de pobreza, especifica ele, que todos os Cristãos devem na verdade abraçar, tal como o desprendimento de posses materiais. Para os Cristãos, diz Sarah, é melhor falar de lutar contra a miséria para não arriscar entrar em concepções seculares de progresso ou perseguir esquemas utópicos, tais como os programas socialistas de Sékou Touré que destruiram a economia da Guiné e só trouxeram miséria e morte.

Muito mais se poderia dizer deste incrível livro. Sendo óbvio que não foi escrito como resposta ao infame comentário do Cardeal Kasper sobre os Africanos, Dieu ou Rien mostra que o Catolicismo africano tem muito mais do que parece e tem coisas profundas a dizer à Igreja universal. Isto interessa especialmente agora, tendo conta as projecções, tais como sugeriu o recente estudo Pew-Templeton, de que cada quatro em 10 Cristãos no mundo vão viver na África sub-Sahariana em 2050. Enquanto a gravidade do mundo Católico se desvia da Europa ocidental para o mundo em desenvolvimento, ouvir os africanos como o Cardeal Robert Sarah pode ser algo que até os teólogos liberais Alemães mais tacanhos não vão conseguir evitar no futuro.

Samuel Gregg in Crisis Magazine

Negritos e notas por Senza Pagare
[1] Este livro já se encontra traduzido para português, com o título 'Deus ou nada', e pode ser adquirido em qualquer livraria ou entao online, por exemplo aqui: Filoteia.
[2] Religiões animistas são seitas e religiões africanas em que se dá um carácter divino e mágico a quase tudo, mesmo às coisas naturais. No contexto ocidental está relacionado com o fenómeno New Age.


blogger

2 comentários:

Anónimo disse...


Bem me parecia que era o mesmo. É só para dizer que não reservem lugar para mim sff. Eu não gosto de ser enganada: "Enganamos as pessoas quando falamos de misericórdia sem sabermos o que quer dizer essa palavra. O Senhor perdoa os pecados, mas temos que nos arrepender."
Cardeal Robert Sarah - Conferência no Pontifício Instituto João Paulo II (21.V.2015)

Com a mentira me engana.

José Lima disse...

Ora, aqui está um livro de leitura obrigatória para todos os católicos que se preocupam com o autêntico bem da sua Igreja!