quinta-feira, 4 de fevereiro de 2021

O Camelo, o Comuna e o Franciscano

1. Devido, em grande parte, a uma catequese deplorável, a constantes abusos litúrgicos e à separação operada entre o Antigo e o Novo Testamento, parece que se perdeu hoje a noção da transcendência de Deus, a seriedade da relação com Ele, o temor, a reverência e a adoração, expressões do verdadeiro amor, que Lhe são devidos. 

O facto de as Verdades Reveladas serem acolhidas ou rejeitadas consoante a disposição subjectiva de cada católico é um claríssimo sinal da corrupção da Fé em Deus que, por sê-Lo, não Se engana nem nos pode enganar. Apesar de só Ele merecer credibilidade absoluta e de, portanto, Lhe ser devido acatamento incondicional opta-se pela mentalidade dominante, o espírito do tempo, as preferências individuais. 

Como se contempla mais a TV e a Internet do que o Senhor Sacramentado a vida é modelada, orientada e dirigida por aquelas e não pela Vida que Se fez Caminho para que praticando a Verdade no Amor alcancemos, na Sua humanidade a Trindade, isto é, o Deus único - Pai, Filho e Espírito Santo. 

Uma ideia distorcida de Deus leva irremediavelmente a uma visão deformada do homem. Não se acredita no fundo que este seja capaz, suposta a graça de Deus, de nobreza, de elevação, de superação de si próprio, de liberdade e de responsabilidade. É visto sempre como uma vítima determinada pelas mais miseráveis das fraquezas, que nunca pode ser culpabilizado ou responsabilizado por nada e a quem o Céu está, haja o que houver, definitivamente garantido por um “Deus” abobalhado, incapaz de qualquer ira contra o mal e de castigar os pecadores.

Como a salvação está no papo, poucos curam de ser santos e ainda menos de converter os outros. Se tudo no final se comporá e remediará para quê dar-se a trabalhos? Assim o amor deixa de ser sinónimo de Cruz, de doação verdadeira de si mesmo aos outros, e passa a ser meramente um estado de bem-estar afectivo e emocional a alcançar a todo o custo, porque todos têm o direito de ser felizes – afinal foi para isso que Deus nos criou. 

2. a) Nesta busca incessante e frenética de si mesmo só conta o que dá prazer e o que é utilitarista. No entanto, a estrutura racional da pessoa humana é dotada de uma estrutura ou identidade inapagável, pelo que quando ela é agredida a pessoa, tarde ou cedo, ressente-se e sofre as consequências. Mesmo naquelas raras ocasiões em que alguém não será levado a Juízo por algum acto mau que cometeu, padecerá, não obstante, os efeitos nefastos do mesmo. 

Seria o caso, por exemplo, de alguém que tomasse cianeto desconhecendo em absoluto que o fazia. Naturalmente não poderá ser julgado por se ter suicidado, mas a verdade é que morrerá na mesma. Assim, do ponto de vista moral, mesmo que não haja culpa formal do mal que se pratica, a verdade é que os efeitos serão nefastos, já na vida presente. De resto, todo o acto livre e consciente será examinado pela Verdade a quem nada escapa e cada um será julgado segundo as suas obras.

b) Antes de avançarmos importa muito relembrar que qualquer acto imoral é mais grave do que todo e qualquer mal físico que nos possa sobrevir. Daí que Santa Teresa d’ Ávila repetisse frequentemente que preferiria sofrer mil mortes a cometer um só pecado venial (leve). Esta doutrina embora encontre a sua expressão perfeita no cristianismo era já conhecida e advogada pelos antigos que tinham a noção de uma lei natural, não escrita. Consideremos, agora, independentemente do pecado como ofensa a Deus, os actos que fazemos. Estes não têm somente uma resultância exterior, mas outrossim uma repercussão interior, pelo que, o que fazemos faz-nos. Ou seja, o nosso carácter é moldado positiva ou negativamente pelas nossas obras. Por isso, S. Gregório dizia que éramos filhos delas. 

De facto, nesse sentido, geramo-nos a nós mesmos. Se roubo, faço-me ladrão; se mato, directa e deliberadamente o inocente, faço-me assassino; se fornico, sendo casado ou com mulher casada, faço-me adúltero; se minto, faço-me aldrabão; se não partilho o que tenho, faço-me avaro. Pelo contrário, se digo a verdade, faço-me veraz; se partilho, faço-me generoso; se ensino o bem, faço-me misericordioso; se guardo castidade, faço-me puro, etc.

c) Uma vez que a lei moral natural é inerente à humanidade do próprio homem, quando este lhe quer escapar, por temor às suas exigências, engana-se a si mesmo de modo a convencer-se, justificando-se perante si mesmo e os outros, de que aquilo que faz é o bem. Isto é, arranja uma maneira supersticiosa, “alquímica”, de “transformar” o mal em bem, como se isso fora possível. Este processo já é descrito no Salmo (36, 2-3) quando diz que o ímpio “a si próprio se ilude para não descobrir nem odiar o seu pecado”.

Talvez uns exemplos caricaturais (sê-lo-ão mesmo?) possam ilustrar a doutrina:

i) Todo o homem sabe, no fundo de si mesmo, que roubar é uma imoralidade. Por isso se quiser assaltar um banco terá de persuadir-se a si mesmo de que não se trata de uma ladroeira. Se for um “comuna” dos quatro costados dirá para si mesmo: os banqueiros são uns exploradores, opressores e sanguessugas do povo. Se eu saltear o cofre, não se trata de uma gatunagem, mas sim de uma restituição. 

Se for, um franciscano como eu, reflexionará do seguinte teor: o Senhor diz nos Santos Evangelhos que é humanamente impossível um rico entrar no Reino dos Céus. Acrescenta que é mais fácil um camelo, um elefante, uma torre Eiffel passar no fundo de uma agulha de que um adinheirado penetrar no Reino de Deus. Os banqueiros são abastados, milionários! Coitados dos abonados! Se acometer o banco, não empalmo nada, faço sim uma obra de grande caridade, despojando ourudo daquilo que o impede de chegar ao Céu.

ii) Toda a gente sabe que assassinar é uma imoralidade e uma injustiça tremenda. Porém, quem o quer fazer pode enganar-se a si mesmo de muitas e variadas maneiras: “aquilo” não é um ser humano, é um acidente que aconteceu, e que se pode desfazer de modo a fazer com que nunca tenha acontecido; este que me calhou em sorte é um intruso que se alojou dentro de mim, sem minha autorização, tenho todo o direito de expulsá-lo como a um inimigo que se meteu em minha casa impedindo-me de ter a vida que eu quero; as crianças abortadas vão direitinhas para o Céu. Sorte a delas!, não têm que permanecer neste vale de lágrimas… Aqui nunca seriam felizes. 

Afinal é um grande um grande favor que se lhes fez!, maior gesto de amor não pode haver… ; As pessoas que assassinam pessoas humanas inocentes e indefesas são uns monstros. Eu não sou um malvado. Pelo contrário, sou uma pessoa boa. Se decidi abortar ou favorecer o aborto é claro que não se trata de um ser humano, de uma pessoa, pois eu não sou nenhum monstro!

d) Hoje em muitos meios católicos é comum pensar e dizer-se algo de muito semelhante ao que alguns teólogos advogavam, a seguir à segunda grande guerra mundial. Os abortófilos coitadinhos, pois se eles julgam que estão a fazer bem que culpa poderão ter? Irão direitinhos para o Céu, têm a salvação garantida, pois agem de acordo com a sua consciência. Ora era isto mesmo que os ditos teólogos diziam acerca dos membros das SS nazis…

O problema com esta posição é que ela não tem em conta toda a verdade, mas só parte da mesma. Pois se é certo dizer que devemos agir de acordo com a nossa consciência, não é menos verdadeiro que podemos culposamente ofuscar aquele fundo da mesma, constituído pelo hábito natural dos primeiros princípios da moral, a que os antigos chamavam sindérese, que indica luminosamente à consciência como deve agir para praticar o bem e evitar o mal.

Padre Nuno Serras Pereira


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1 comentário:

Jorge disse...

Outra Cruz ameaçada de demolição em Espanha:

https://citizengo.org/hazteoir/rf/200464-otra-cruz-victima-del-psoe

Por favor, assinem para evitar a demolição.