quinta-feira, 3 de fevereiro de 2011

Interrupção

A paisagem contemporânea tem há tempos um elemento dominante: o toque do telemóvel. Podemos estar seguros de que um som inconveniente e em geral ridículo irá perturbar os momentos mais inesperados, delicados ou solenes da nossa existência, como um pingo de tinta numa tela terminada. Os nossos avós tiveram de se habituar ao ensurdecedor avião ocasional. Hoje é o telemóvel a nova interrupção da marcha da humanidade.

Já não é possível conceber a vida sem essa incisiva irritação. A coisa é tão insólita que chega aos contornos da arte. Uma arte destruidora, mas indiscutivelmente original. Deveria fazer-se uma recolha etnográfica dos episódios mais inconvenientes, perigosos, hilariantes ou comprometedores criados por um toque de telemóvel.

É compreensível que as pessoas se esqueçam de desligar o aparelho quando o deveriam fazer. O que é incrível é que, sabendo que o toque as vai inevitavelmente comprometer, tanta gente escolha sons berrantes, absurdos ou simplesmente tontos.

O aspecto mais relevante é, porém, a ditadura que a engenhoca exerce. Toda a gente obedece ao império desse toque. As tais circunstâncias solenes da nossa existência são sempre menos importantes do que o chamamento, porque a engenhoca acaba sempre irremediavelmente atendida. Normalmente dizendo: «Agora não posso falar…» Pois não! Mas é isso mesmo que está a fazer, não é?

João César das Neves

Gostei muito deste artigo. É mesmo verdade.
(Noto alguma irritação no tom deste artigo...)


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