Fui rezar a um cemitério. Demorei-me junto do lugar onde estão sepultados alguns amigos e recordei muitos outros. Percorrendo aqueles caminhos, reparei nos jazigos, alinhados como numa cidade, pequenos ou grandes, piedosos ou indiferentes, e rezei por uma imensa multidão que só Deus conhece. Quanto sofrimento, quanto amor generoso, quanta alegria, quantos sonhos, quantos fracassos, quantas surpresas... assim é a vida humana.
Há cemitérios curiosos. Recordo ter visitado um cemitério em Edimburgo (os autóctones pronunciam «Edimbôrao») com apelidos invulgares que passaram para os personagens do «Harry Potter»: lá está a origem do Prof. Aberforth Dumbledore e de um cortejo de outros. Curiosidades!...
Ontem mesmo, num cemitério de Lisboa, li inscrições profundas e frases superficiais. Por exemplo, uns pais declararam-se «inconsoláveis» e, ao fim de muitas décadas, já mortos os pais, os filhos e os netos, a inscrição, em letras exuberantes, ligeiramente gastas pelos anos, continua a gritar aquela «dor inconsolável». Chamou-me a atenção um jazigo desprovido de referências a Deus, de um barão – não reparei no nome –, cuja legenda era «trabalha ainda que morras». Doeu-me a inconsistência da frase, própria de uma vida sem sentido, e rezei por ele. Pode ter sido bom homem, quem sabe o drama que o levou a gravar na pedra uma ideia tão absurda?
Por todo o mundo há cemitérios, mas há uns, em Roma, absolutamente únicos. O costume das civilizações pagãs era cremar os corpos e por isso só guardavam cinzas. A excepção eram os judeus, e depois os cristãos, que preferiam sepultar o corpo, como manifestação de fé na ressurreição.
Em Roma, o cruzamento desta devoção com a singularidade da geologia local produziu as catacumbas. O terreno de Roma é um tufo, homogéneo, consistente, fácil de escavar. Por isso, à falta de espaço disponível à superfície, os cristãos enterraram os seus mortos escavando. Cada enterro alongava um pouco mais a galeria e assim se formaram quilómetros de corredores subterrâneos, com tumbas de ambos os lados. A oração pelos mortos habitou de vida aquela rede enorme, por baixo da cidade. Ao chegar junto de mártires, o corredor alargava-se para acolher uma assembleia maior na Eucaristia. Quem for a Roma não perca a oportunidade de mergulhar no subsolo e percorrer uns quilómetros nestas galerias de oração.
No entanto, o mais extraordinário cemitério romano começou ao ar livre. Começou como um cemitério pagão, na colina vaticana, perto de um parque de jogos. No ano 64 depois de Cristo, um incêndio devastou Roma, um temporal no Adriático afundou toda a esquadra e ocorreram outras desgraças. Perante o descontentamento geral, o imperador Nero arranjou uma solução: os culpados eram os cristãos! Não que eles ateassem fogos, ou soprassem ventos ciclónicos, o mal eram eles mesmos, eles eram o mau-olhado que atraía desgraças; se fossem mortos, acabavam-se as epidemias e os cataclismos.
A matança que devia limpar Roma do mau-olhado ocorreu no aniversário do próprio Nero, no ano 67. As corridas de cavalos, os banquetes, a variedade dos jogos, atingiram um luxo e um sadismo fora do comum. À noite, as alamedas iluminaram-se com os corpos de cristãos a arderem como tochas. Foi nesta festa que S. Pedro, o primeiro Papa, foi crucificado de cabeça para baixo e depois sepultado na vertente da colina. Nos dias seguintes, continuaram a morrer cristãos, à medida que os apanhavam. S. Paulo morreu decapitado nesse mesmo ano.
Entretanto, o pequeno túmulo de Pedro, foi sendo cuidado. Um pequeno muro, para conter a terra, depois, um alpendre apoiado em duas colunas... Passados dois séculos e meio, o imperador Constantino converteu-se e decidiu erguer uma basílica sobre a pequena sepultura. Fechou o cemitério e fez um aterro na vertente da colina, para criar uma plataforma em que pudesse assentar o edifício. O local era muito inclinado, mas Constantino queria a igreja ali, com o altar por cima da sepultura de Pedro.
Os séculos trouxerem inovações, mas todos os altares posteriores se mantiveram fiéis àquela linha vertical, uns por cima dos outros. Chegaram ao século XX notícias detalhadas das construções que estavam por baixo, mas ninguém as via. Decidiu-se, assim, escavar um túnel a partir da base da antiga colina, para descobrir o que estava por baixo do aterro de Constantino e de todas as construções edificadas sobre ele.
Os trabalhos coincidiram com a segunda guerra mundial e prolongaram-se até 1965. Encontrou-se tudo conforme diziam os documentos antigos e, no sítio preciso, num jazigo muito pobre, mas envoltos em púrpura dourada, os ossos de um homem robusto, de idade avançada. Por cima, em grego, «Pedro está aqui» e louvores a Cristo, à Santíssima Trindade, a Nossa Senhora. Garanto: o percurso por baixo de terra, através do antigo cemitério romano, até à tumba de Pedro, é uma experiência inesquecível.
José Maria C.S. André in Correio dos Açores
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