sábado, 20 de outubro de 2018

Muitos dos que perseguiam o Padre Américo se converteram

Passava eu por ali, naquele mês e ano, quando um garoto da rua embarga o meu caminho num angustioso e imperativo «venha ver o meu pai que está na cama e a gente passamos fome».

O casebre era ali mesmo. Subi a escada apoiado ao corrimão e aos ombros do rapaz, sempre a dizer-me baixinho: «Não caia, meu senhor»; que se os perigos dos Alpes são grandes pela altura, aqui não são menores pela escuridão. Entrei no cubículo. Coisas e formas emergiam da sombra, lentamente. Reconheci o homem com quem falava. Tratava-se de um tipógrafo da Imprensa da Universidade de Coimbra, mandada fechar, ao tempo, por ordem superior e hoje abrigo de pombas nos buracos das paredes.

Quantas vezes não fui eu assobiado às portas daquela casa, só porque uso batina e digo Missa no altar – quantas! Nós éramos conhecidos.

O padre é o grande mal do mundo, assim diziam os companheiros mai-los livros que ele compunha; corrê-lo da sociedade é um grande benefício. «Muitos, hão-de julgar fazer bem ao mundo perseguindo-vos, por causa do Meu Nome, até à morte», ensina Aquele que tudo vê no presente. Tinha chegado a este homem o feliz momento de ouvir estas verdades e a mim o de me vingar dele à maneira do Evangelho!

Este foi o terceiro tipógrafo encontrado no meu giro que teve a sorte de compreender antes de morrer. Antes dele, um seu colega recebera-me na trapeira com uma pedra na mão: «Enganou-se, padre; aqui não há dinheiro». Morava na numa rua antiga da Alta, casa de degraus até ao céu, íngremes, carunchosos, sem luz. O homem era de idade em flor e tinha saído das oficinas para a casa onde morreu, com sangue pela boca. Os colegas visitaram-no, fizeram uma subscrição e, por fim, esqueceram-no. O tempo tudo gasta, até as maiores simpatias. Começa ele agora a viver do que é seu. Primeiramente o relógio, a seguir os trastes, depois as roupas – tudo. Só tinha os olhos da cara quando na mansarda entrei.

O padre, corrido ontem, volta no dia seguinte com mimos e tabaco; arrisca duas palavras e some-se nos degraus – para vencer. Muitas vezes convém recuar para atacar com mais força. Com estas armas na mão, nestes campos de batalha, contra inimigos assim, nunca ninguém naufragou. Este caiu varado, dentro de pouco tempo; e sobre o leito da morte, na maré dos sacramentos, fez o seu testamento deixando-me herdeiro universal de tudo quanto possuía: uma filho mai-la viúva.

Ainda um outro tipógrafo deu-me uma tremenda lição sobre a vilania da esmola e mandou-me pentear macacos diante de toda a gente, numa enfermaria dos Lázaros. Não fui. Voltei à enfermaria. Os mais doentes não querem que eu vá à beira do celerado, tais coisas ele dizia: «Não lhe dê mais nada que o homem é mau e diz mal dos padres».

Os tempos rodaram. O homem escapou. Pregava eu uma missão em certa vila. Há tropel na igreja; é gente que acaba de chegar. O tipógrafo arrastava o povo à Missão e não faltou um dia, enquanto ela durou. Já não diz mal de ninguém!

in 'Obra da Rua' - Padre Américo - 5ª edição, Editorial da Casa do Gaiato, Paço de Sousa, 2012


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