sexta-feira, 29 de maio de 2020

D. Athanasius Schneider: "Formemos o pequeno exército de Nossa Senhora"

- Excelência, permita-nos que lhe agradeçamos por nos conceder esta entrevista e, sobretudo, pela sua vida e ministério gastos ao serviço da Verdade. Para quem acompanha a actual crise de Fé que assola a Igreja e, principalmente, para um importante sector de teólogos e de historiadores de renome, as causas desta crise são anteriores ao Concílio Vaticano II e remontam aos corifeus da nouvelle théologie, que depois exerceram enorme influência nos documentos conciliares. Que outras causas elencaria Vossa Excelência para entendermos os meandros profundos desta crise?       

- A raiz mais profunda ou remota da actual crise de Fé pode-se encontrar no movimento naturalista e antropocêntrico do século XV chamado “Renascença” ou “Humanismo”, preparado já intelectualmente pelo nominalismo na filosofia. Os aspectos da natureza, da criatura, do tempo, do activismo, foram colocados no centro do pensamento, da arte e do estilo de vida com o consequente enfraquecimento da visão e do referimento ao sobrenatural e ao eterno. 

O veneno no vírus do humanismo intelectual e cultural revela-se na atitude do subjectivismo, fazendo o homem, a razão e os seus desejos naturais a medida da verdade e do bem. Ainda que uma tal atitude não fosse expressa de maneira clara no século XV, esta começou a ser mais concreta com a revolução religiosa feita por Martinho Lutero, onde o subjectivismo se tornou o critério da interpretação da Revelação Divina, especialmente da Sagrada Escritura. Atrás dos “slogans” sedutores “sola gratia”, “sola fides”, “sola scriptura”, de Martinho Lutero, esconderam-se, no final de contas, o antropocentrismo, a dominação do “ego” na esfera da religião e, com isso, o relativismo. 

Um dos maiores promotores do relativismo filosófico e religioso foi o filósofo protestante Georg Hegel, cuja filosofia contaminou uma parte do clero e dos teólogos católicos do século XIX, os quais deram origem ao movimento chamado “modernismo” dentro da Igreja Católica. O Papa Pio X conseguiu reprimir energicamente este “reservatório” de todas as heresias, como lhe chamou e o que na verdade é. Alguns sacerdotes e professores de teologia modernistas esconderam-se, fingindo ortodoxia. Nos subsequentes pontificados, tais clérigos modernistas, com a ortodoxia fingida, conseguiram chegar até ao episcopado e ao cardinalato. 

Uma outra causa paralela ao modernismo teológico foi uma atitude do clero que encontrou a sua expressão, no fim do século XIX, em França, no movimento chamado “ralliement”. Infelizmente, o Papa Leão XIII impôs esta atitude aos fiéis e ao clero de França. O “ralliement” significava, em última análise, uma atitude mental de fazer, custe o que custar, as pazes com qualquer autoridade política. Os clérigos que adoptaram um tal espírito enfraqueceram em si mesmos a fortaleza cristã frente ao mundo, começaram a ter um complexo de inferioridade em relação ao mundo. Já antes do Concílio Vaticano II havia uma considerável parte do episcopado imbuída num complexo de inferioridade em relação ao mundo e mendigando a sua simpatia. 

O Concílio Vaticano II foi, então, um evento catalizador onde bispos e cardeais e teólogos, em parte cripto-modernistas e em parte imbuídos do espírito do compromisso político, conseguiram fazer aprovar algumas afirmações teologicamente ambíguas nos documentos conciliares. Tais afirmações ambíguas marcaram, nas décadas passadas, a vida da Igreja e até a formação teológica de uma geração de sacerdotes e bispos, criando, assim, um relativismo tanto teórico como prático em relação à verdade da unicidade da Fé e da Igreja Católica, do primado do sobrenatural e da sacralidade, da oração, da ascese e da penitência. Um tal relativismo teológico parcial, uma tal liturgia antropocêntrica e a imersão em assuntos políticos, temporais e materiais, enfraqueceram e deturparam a Fé num grande número de fiéis, de sacerdotes e até de bispos. 
   
- Como causa e efeito têm relação directa, as consequências desastrosas que presentemente podemos verificar, no seguimento de doutrinas erróneas, designadamente no que respeita à liberdade religiosa, por meio da declaração 
Dignitatis Humanae, de Paulo VI, deram origem à Declaração de Abu Dhabi. Como é que a Igreja poderá voltar aos seus tempos de esplendor se o seu corpo doutrinal está manchado por doutrinas suspeitas e ambíguas?  

- A declaração Dignitatis Humanae não foi uma declaração do Papa Paulo VI, mas do Concílio Vaticano II, que foi aprovada, isso sim, por Paulo VI. Há razões suficientes para dizer que entre a Dignitatis Humanae e a Declaração de Abu Dhabi há uma relação de causa e efeito. O próprio Papa Francisco disse: «Mas há uma coisa que quero dizer. Isto, reitero-o claramente: do ponto de vista católico, o Documento [de Abu Dhabi] não se desviou um milímetro do Vaticano II. Até aparece citado algumas vezes. O Documento foi feito no espírito do Vaticano II» (Conferência de imprensa do Papa, a 5 de Fevereiro de 2019, no voo de Abu Dhabi para Roma). 

Dignitatis Humanae afirma a doutrina tradicional da Igreja dizendo que «acreditamos que esta única religião verdadeira se encontra na Igreja católica e apostólica» e que há o «dever moral que os homens e as sociedades têm para com a verdadeira religião e a única Igreja de Cristo» (n. 1). 

Infelizmente, algumas frases mais adiante, o Concílio mina esta verdade estabelecendo uma teoria que a Igreja nunca ensinou, isto é, que o homem tenha o direito natural, fundado na sua própria natureza, de não ser impedido de exercer o direito à liberdade religiosa segundo a própria consciência, «em privado e em público, só ou associado com outros, dentro dos devidos limites» (n. 2). Segundo esta afirmação, o homem teria o direito fundado na própria natureza, ou seja, positivamente querido por Deus, de escolher legitimamente e de praticar, inclusive colectivamente, por exemplo, a adoração dum ídolo e até a adoração de Satanás. Nos Estados Unidos, a título de exemplo, a igreja de Satanás é reconhecida com o mesmo valor jurídico de todas as outras religiões. 

Dignitatis Humanae põe como única excepção da liberdade religiosa a manutenção da «justa ordem pública» (n. 2). No entanto, a religião chamada “igreja de Satanás” faz a adoração, inclusive colectiva, de Satanás, salvaguardando a ordem pública. Por conseguinte, a liberdade da adoração, individual ou colectiva, de Satanás, seria um direito fundado na própria natureza humana e tal significa querida positivamente por Deus. O perigoso erro desta afirmação está habilmente escondido pelo facto que esta afirmação faz parte de uma única frase cuja primeira parte corresponde obviamente à doutrina tradicional da Igreja, que diz: «em matéria religiosa, ninguém seja forçado a agir contra a própria consciência» (n. 2). 

Verdade e erro estão a ser mencionados, por assim dizer, com o mesmo fôlego. Cada pessoa com honestidade intelectual, que evita o método da quadratura do círculo, vê claramente que a afirmação da Dignitatis Humanae, que diz que cada homem tem o direito fundado na própria natureza, logo querido positivamente por Deus, de escolher e praticar a religião segundo a própria consciência, não difere substancialmente da afirmação da declaração de Abu Dhabi que diz: «A liberdade é um direito de toda a pessoa: cada um goza da liberdade de credo, de pensamento, de expressão e de acção. O pluralismo e as diversidades de religião, de cor, de sexo, de raça e de língua fazem parte daquele sábio desígnio divino com que Deus criou os seres humanos. Esta Sabedoria divina é a origem donde deriva o direito à liberdade de credo».

- No livro que escreveu em colaboração com a jornalista Diane Montagna, Christus Vincit, Vossa Excelência levanta o véu acerca deste problema. Como é que se pode cortar o mal que está entranhado na Igreja sem pôr em causa um Concílio que procurou conciliar o inconciliável?          

- A primeira coisa básica é ter em conta o facto que, sejam os Papas do Concílio, João XXIII e Paulo VI, seja o Concílio Vaticano II, afirmaram que este Concílio, contrariamente a todos os Concílios precedentes, não tinha nem a intenção nem o fim de propor uma doutrina própria de modo definitivo e infalível.
Assim o disse o Papa João XXIII no seu discurso na abertura do Concílio: «A finalidade principal deste Concílio não é, portanto, a discussão de um ou outro tema da doutrina fundamental da Igreja» e que o carácter do magistério do Concílio seria «prevalentemente pastoral» (11 de Outubro de 1962). 

O Papa Paulo VI disse, no seu discurso na última sessão pública do Concílio, que este Concílio escolheu «como programa» o «carácter pastoral» (7 de Dezembro de 1965). Numa notificação, feita pelo Secretário-Geral do Concílio, no dia 16 de Novembro de 1964, diz-se: «Tendo em conta a praxe conciliar e o fim pastoral do presente Concílio, este Sagrado Concílio só define aquelas coisas relativas à Fé e aos costumes que abertamente declarar como de Fé».  

Houve afirmações noutros Concílios ecuménicos que se tornaram obsoletas e esquecidas ou foram até mesmo corrigidas pelo Magistério posterior, como, por exemplo, a afirmação do Concílio de Florença, em 1439, que dizia que a matéria da ordenação sacerdotal era a entrega do cálice, omitindo a menção da imposição das mãos do bispo: «O sexto é o sacramento da Ordem. A matéria deste sacramento é o que confere a Ordem. Assim, o presbiterato é conferido com a entrega do cálice com o vinho e da patena com o pão» (Bula da união com os Arménios Exultate Deo de 22 Novembro de 1439). 

O Papa Pio XII, em 1947, corrigiu este erro pronunciando a doutrina Católica de todos os tempos que correspondia também à praxe litúrgica da Igreja universal, seja no Oriente ou no Ocidente, ensinando de modo definitivo: «Invocando a luz divina, Nós, da Nossa Autoridade Apostólica, declaramos e, de certo conhecimento, e, na medida do necessário, decidimos e dispomos: a matéria das Ordens Sagradas do Diaconado, do Presbiterato e do Episcopado é a imposição das mãos e unicamente ela. Por conseguinte, devemos declarar, e a fim de remover toda a controvérsia e evitar dúvidas de consciência, e agora por Nossa Autoridade Apostólica declaramos, e, se jamais houver alguma disposição legitimamente em contrário, estabelecemos que, no futuro, a entrega dos instrumentos não é necessária para a validade da sagrada Ordem do Diaconado, Presbiterato e Episcopado» (Constituição Apostólica Sacramentum Ordinis, de 30 de Novembro de 1947). 

Penso que, no futuro, um Papa ou um Concílio corrigirá o erro da afirmação da Declaração Dignitatis Humanae, do Concílio Vaticano II, que se tornou a causa de desastrosas práticas e doutrinas, como o encontro inter-religioso de oração em Assis, em 1986, e a Declaração de Abu Dhabi, em 2019.    

- É de todos sabido que Vossa Excelência Reverendíssima se tem dedicado à preservação da Tradição da Igreja, nomeadamente através do claro anúncio das verdades da Fé e da celebração da Liturgia Tradicional. O blogue Rorate Caeli divulgou, no passado dia 23 de Abril, uma carta que o Cardeal Luis Ladaria Ferrer, Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, dirigiu, a 7 de Março p. p., aos Presidentes das Conferências Episcopais, tal como o inquérito que todos os Bispos deverão enviar para Roma, até ao dia 31 de Julho, e que está directamente relacionado com o Motu Proprio Summorum Pontificum, de Bento XVI. Na citada carta, o Cardeal Ladaria explica que tal iniciativa se deve ao desejo do Papa Francisco de ser «informado sobre a actual aplicação do documento». Entre outras questões, é perguntado aos Bispos se consideram que o Motu Proprio tenha influenciado a vida dos seminários, que deveriam ser os corações das nossas dioceses, e, ainda, qual é a opinião dos Prelados sobre a forma extraordinária do Rito Romano, mais de uma década após a publicação do Summorum Pontificum. O quê que lhe parece que se pretende com esta extemporânea iniciativa? Estará o Motu Proprio ameaçado, como já se começa a dizer?     
- Penso que o questionário não deverá ser visto como uma ameaça à Missa Tradicional. Pode ser que, pelo contrário, a Santa Sé veja como a Missa Tradicional já está amplamente difundida e que não poderia ser facilmente limitada. Devemos fazer tudo para difundir a Missa Tradicional. Continuemos a rezar para que a Divina Providência proteja este tesouro da Igreja de sempre: Deus fá-lo-á!       

- Numa entrevista que nos concedeu recentemente, o Arcebispo Carlo Maria Viganò, ex-Núncio Apostólico nos Estados Unidos da América, alegou que o Terceiro Segredo de Fátima nunca foi verdadeiramente revelado, tendo-se assistido a uma «operação de encobrimento, evidentemente porque o conteúdo da mensagem revelaria a terrível conspiração dos seus inimigos contra a Igreja de Cristo» e, indo mais longe, mencionou que pareceria impossível ter-se chegado ao ponto de «amordaçar também a Virgem Maria» e de «censurar o próprio Evangelho, que é a Palavra do Seu divino Filho». Estas são, simultaneamente, palavras duras e muito reveladoras.      

Uma pequena parte do texto da terceira parte do segredo foi lida, em Fátima, pelo Cardeal Sodano, na presença do Papa João Paulo II, e, posteriormente, foi totalmente lido e explicado pelo então Cardeal Ratzinger. Naquela ocasião, a Santa Sé disse: “Isto é tudo”. Portanto, não consigo imaginar que uma pessoa com um padrão moral tão alto como o do Cardeal Ratzinger, mais tarde Papa Bento XVI, enganasse o mundo inteiro. Para mim, é impossível. 

Alguns dizem que ouviram os comentários de um cardeal que viu o texto, mas é muito fraco basear-se numa teoria ou, mais do que uma teoria, uma convicção, em tais coisas. Todavia, pode haver uma razão que explique o mal-entendido. A biografia da Irmã Lúcia contém uma expressão segundo a qual Nossa Senhora lhe disse que precisava de escrever o texto do segredo, mas não que ela lhe tinha explicado o segredo. São duas coisas diferentes. 

Penso que o texto em si foi revelado completamente, mas ainda poderiam haver algumas explicações que Nossa Senhora lhe deu e que não foram reveladas. Entretanto, as explicações que Nossa Senhora deu à Irmã Lúcia não são o texto do próprio segredo. O que sugiro é apenas a hipótese de que exista uma explicação mais concreta do significado do segredo, uma espécie de exegese. Pode ser que essa explicação tenha sido escrita e que seja muito desconfortável diante da actual crise da Igreja. Mas, repito, esta é uma hipótese e não tenho como comprová-la. Talvez seja uma hipótese plausível. É a única maneira de responder àqueles que ainda esperam uma suposta parte não revelada do texto do próprio segredo. 

Algumas pessoas afirmam que Nossa Senhora deve ter falado sobre toda a crise interna na Igreja. A crise está tão claramente diante dos nossos olhos que não precisamos de um segredo. Não precisamos de mais confirmações do céu. A enormidade da crise na Igreja que estamos a testemunhar é evidente. À luz da crise actual, acho que temos que manter uma atitude um tanto sóbria e concentrar-nos na essência da mensagem de Fátima, que é a penitência; temos que parar de pecar porque Deus já está muito ofendido; fazer reparação e expiar os pecados contra Deus, contra a Santíssima Eucaristia e contra o Imaculado Coração de Maria. 

A parte da mensagem de Fátima relativa à Eucaristia, nas aparições do Anjo, é tão importante e oportuna. E, então, rezar o Rosário pela conversão dos pecadores, fazer os Cinco Primeiros Sábados, consagrar-nos e consagrar as nossas famílias, os nossos países, a Rússia e o mundo ao Coração Imaculado.   

- Para além de falar muito bem português, Vossa Excelência já visitou o nosso país algumas vezes. Num período em que os católicos portugueses, à semelhança de tantos outros espalhados pelo mundo, se encontram privados de aceder aos Sacramentos, resultado de um verdadeiro abandono por parte dos seus Pastores, que mais parecem estar interessados em agradar ao poder político que à Realeza de Nosso Senhor Jesus Cristo, o quê que gostaria de transmitir ao povo que, em 1917, foi visitado por Nossa Senhora, que nos deixou a garantia de que em Terra de Santa Maria se conservará sempre o dogma da Fé?

- Muito doloroso para os católicos portugueses é, sobretudo, o facto de terem sido proibidos de fazer a peregrinação ao Santuário de Fátima a 12 e 13 de Maio deste ano. Nossa Senhora prometeu que em Portugal se conservaria sempre a Fé, a verdadeira Fé Católica. A conservação da Fé não é uma questão de números e de percentagens. Também nestes dias de tribulação e desolação, de abandono da integridade e pureza da Fé e da liturgia, Nossa Senhora tem em Portugal, e noutros países, os Seus fiéis, os Seus pequeninos. 

Estes fiéis, estes pequeninos de Nossa Senhora, são aqueles membros do clero e do povo Católico em Portugal, de todas as idades e posições sociais, que têm conservado na alma a Fé pura dos santos Pastorinhos de Fátima, o ardente e reverente amor à Santíssima Eucaristia, a filial entrega e devoção a Nossa Senhora e ao Seu Imaculado Coração. Queira Deus que em Portugal haja pequenos “exércitos” de Nossa Senhora de Fátima. Com este exército dos Seus pequeninos, Nossa Senhora vencerá os ataques presentes contra a Fé e a liberdade de culto. 

Que os católicos portugueses e, sobretudo, os devotos de Nossa Senhora de Fátima, que sofrem por causa da repressão religiosa actual e da desolação espiritual, renovem a sua confiança sobrenatural no triunfo do Imaculado Coração de Maria. Que peçam a Nossa Senhora de Fátima que envie os Anjos com os regadores de cristal, nos quais recolhiam o sangue dos Mártires, para regarem as almas de todos os que se aproximam de Deus, que estão sedentos de Deus e da Santíssima Eucaristia. 

Rezemos neste tempo, com os santos Francisco e Jacinta, frequentemente esta oração ensinada pelo Anjo: “Ó Jesus, é por vosso amor, pela conversão dos pecadores e em reparação dos pecados cometidos contra o Imaculado Coração de Maria”. Formemos o pequeno “exército” de Nossa Senhora de Fátima e sintamo-nos orgulhosos e alegres por sermos católicos e filhos de Nossa Senhora!

D. Athanasius Schneider em entrevista exclusiva ao Dies Irae


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