Ambulate dum lucem habetis: Caminhai enquanto tendes a luz (Jo 12, 35). No meu fim, gostaria de estar na luz.
Normalmente, o fim da vida temporal, se não é obscurecida pela enfermidade, tem uma clareza nebulosa: a das memórias, tão belas, tão atraentes, tão nostálgicas; e finalmente tão clara, para denunciar o seu passado irrecuperável e para zombar da sua desesperada recordação.
Há a luz que revela a decepção de uma vida baseada em bens efémeros e em falsas esperanças: aquela de obscuros e já ineficazes remorsos. E há a luz da sabedoria, que finalmente entrevê a vaidade das coisas e o valor da virtude que devia caracterizar o curso da vida: "vanitas vanitatum": vaidade das vaidades.
Quanto a mim, quero ter finalmente uma noção resumida e sapiente sobre o mundo e sobre a vida: penso que tal noção deveria exprimir-se em reconhecimento: tudo foi dom, tudo foi graça; e como foi belo o panorama através do qual tudo se passou; muito bom, tanto que se me deixou atrair e encantar, quando devia aparecer como sinal e chamada.
Mas, de qualquer modo, parece que a despedida se deva exprimir num grande e simples acto de reconhecimento, mais ainda, de gratidão: esta vida mortal é, não obstante as suas dificuldades, os seus obscuros mistérios, os seus sofrimentos, a sua fatal caducidade, um facto belíssimo, um prodígio sempre original e comovente, um acontecimento digno de ser cantado em alegria e em glória: a vida, a vida do homem!
Não menos digno de exaltação e de feliz surpresa é o quadro que circunda a vida do homem: este mundo imenso, misterioso, magnífico, este universo das mil forças, das mil leis, das mil belezas, das mil profundidades. É um panorama encantador. Parece prodigalidade sem medida. Assalta-me, neste olhar retrospectivo, o remorso de não ter observado, tanto quanto mereciam, as maravilhas da natureza, as riquezas surpreendentes do macrocosmos e do microcosmos. Porque não ter estudado o suficiente, explorado e admirado a instância em que a vida se desenvolve? Que imperdoável distração, que repreensível superficialidade!
No entanto, pelo menos in extremis, deve-se reconhecer que aquele mundo, "qui per Ipsum factus est", que foi feito por meio d'Ele, é estupendo. Eu te saúdo, eu te celebro, no último instante, sim, com imensa admiração; e, como dizia, com gratidão: tudo é dom; por trás da vida, por trás da natureza, do universo, está a Sabedoria; e finalmente, eu o direi nesta despedida luminosa (Tu no-lo revelaste, ó Cristo Senhor): está o Amor!
O cena do mundo é um desígnio, hoje na sua maior parte ainda incompreensível, de um Deus Criador, que se chama o Nosso Pai que está nos céus! Obrigado, ó Deus, graças e glória a Ti, ó Pai!
Neste último olhar, eu percebo que esta cena fascinante e misteriosa é um revérbero, um reflexo da primeira e única Luz; é uma revelação natural de uma extraordinária riqueza e beleza, que deve ser uma iniciação, um prelúdio, uma antecipação, um convite para a visão do invisível Sol quem nemo vidit unquam, que ninguém jamais viu (cf. Jo 1,18): unigenitus Filius, qui est em sinu Patris, Ipse enarravit, o Filho unigénito, que está no seio do Pai, Ele é que o revelou. Assim seja, assim seja.
Mas agora, neste ocaso revelador, um outro pensamento, além do da última luz vespertina, preságio da eterna aurora, ocupa o meu espírito: e é a ânsia de aproveitar, na undécima hora, a pressa de fazer qualquer coisa de importante, antes que seja demasiado tarde. Como reparar as acções mal feitas, como recuperar o tempo perdido, como agarrar, nesta última possibilidade de escolha, o lunum necessarium, a única coisa necessária?
À gratidão sucede o arrependimento. Ao grito de glória a Deus, Criador e Pai, sucede o grito que invoca misericórdia e perdão. Que ao menos isto eu saiba fazer: invocar a Tua bondade, e confessar com a minha culpa a Tua infinita capacidade de salvar. "Kyrie eleison; Christe eleison; Kyrie eleison". Senhor, tem piedade! Cristo, tem piedade! Senhor, tem piedade!
Aqui aflora à mente a pobre história da minha vida, tecida, por um lado, pelo urdido de singulares e inumeráveis benefícios, provenientes de uma bondade inefável (é esta que, espero, poderei um dia ver e "in eterno cantare"); e, por outro lado, atravessada por uma trama de miseráveis acções, que seria preferível não recordar, tanto são faltosas, imperfeitas, erradas, incipientes, ridículas. Tu scis insipientiam meam: Deus, Tu conheces a minha estultícia (Sl 68,6). Pobre vida miserável, tacanha, mesquinha, tão tão necessitada de paciência, de reparação, de infinita misericórdia. Sempre me parece suprema a síntese de Sto. Agostinho: miséria e misericórdia. Miséria minha, misericórdia de Deus. Que eu possa pelo menos agora honrar Quem Tu és, o Deus de infinita bondade, invocando, aceitando, celebrando a Tua dulcíssima misericórdia.
E depois um acto, enfim, de boa vontade: não mais olhar para trás, mas fazer, de boa vontade, simplesmente, humildemente, fortemente, o dever resultante das circunstâncias em que me encontro, como Tua vontade. Fazer imediatamente, fazer tudo, fazer bem. Fazer alegremente: aquilo que Tu agora queres de mim, ainda que supere imensamente as minhas forças e se me peça a vida. Finalmente, nesta última hora. Inclino a cabeça e elevo o espírito. Humilho-me a mim próprio e exalto a Ti, Deus, "la cui natura è bontà" (São Leão). Deixa que nesta última vigília eu preste homenagem, a Ti, Deus vivo e verdadeiro, que amanhã serás o meu juiz, e que Te dê o louvor que mais desejas, o nome que preferes: tu és Pai.
Depois eu penso, aqui diante da morte, mestra da filosofia da vida, que o acontecimento entre todos maior foi, para mim, como o é para quantos têm a mesma sorte, o encontro com Cristo, a Vida. Tudo aqui seria para voltar a meditar, com a clareza reveladora que a lâmpada da morte dá a um tal encontro. Nihil enim nobis nasci profuit, nisi redimi profuisset. A ninguérm de facto teria valido a pena nascer se não tivesse sido redimido.
Esta é a descoberta da proclamação da Páscoa, e este é o critério de valoração de todas as coisas respeitantes à humana existência e ao seu verdadeiro e único destino, que não se determina senão em ordem a Cristo: "o mira circa nos tuae pietatis dignitatio", ó maravilhosa piedade do Teu amor por nós! Maravilha das maravilhas, o mistério da nossa vida em Cristo. Aqui a fé, aqui a esperança, aqui o amor, cantam o nascimento e celebram as exéquias do homem. Eu creio, eu espero, eu amo, no Teu nome, ó Senhor.
E depois ainda eu me pergunto: porque me chamaste, porque me escolheste? Assim inepto, assim renitente, assim pobre de mente e de coração? Eu sei: quae stulta sunt mundi elegit Deus… ut non glorietur omnis caro in conspecto eius. Deus escolheu o que é débil no mundo, para que nenhum homem se possa vangloriar diante de Deus (1Cor 1, 27-28). A minha escolha indica duas coisas: a minha pequenez; a Tua liberdade, misericordiosa e potente. Que não se deteve nem mesmo perante a minha capacidade de Te trair: "Deus meus, Deus meus, audebo dicere, ... in quodam aestatis tripudio de Te praesumendo dicam: nisi quia Deus es. Nos Te provocamus ad iram. Tu autem conducis nos ad misericordiam!": Meu Deus, meu Deus, ousarei dizer ... num êxtase de alegria, de Ti direi com presunção: se não fosses Deus, serias injusto, porque pecámos gravemente ... e Tu Te aplacaste. Nós provocámos-Te à ira; e Tu, em vez disso, nos conduzes à misericórdia! (Pl. 40, 1150).
E eis-me ao Teu serviço, e eis-me ao Teu amor. Aqui eu estou num estado de sublimação, que não me consente mais cair na minha psicologia instintiva de pobre homem, se não para me recordar a realidade do meu ser, e para reagir na mais ilimitada confiança com a resposta, que por mim é devida: "amen, fiat; Tu scis quia amo te", assim seja, assim seja, Tu sabes que eu Te amo. Um estado de tensão toma conta e fixa um acto permanente de absoluta fidelidade a minha vontade de serviço por amor: in finem dilexit, amou até ao fim. Ne permittas me separari a Te. Não permitas que eu me separe de Ti.
O ocaso da vida presente, que sonharia ser repousado e sereno, deve, pelo contrário, ser um esforço crescente de vigília, de dedicação, de espera. É difícil; mas é assim que a morte sela a meta da peregrinação terrena e faz ponte para o grande encontro com Cristo na vida eterna. Reuno as últimas forças, e não desisto do dom total, consumado, pensando no Teu: consummatum est, tudo está consumado.
Recordo o pré-anúncio feito pelo Senhor a Pedro, sobre a morte do apóstolo: Amem, amen dico tibi... cum... senueris, extendes manus tuas, et alius te cinget, et ducet quod tu non vis. Hoc autem (Jesus) dixisset significans qua morte (Petrus) clarificaturus esset Deum. Et, cum hoc dixisset, dicit ei: sequere me: Em verdade, em verdade te digo ... quando fores velho, estenderás as tuas mãos, e um outro te cingirá e te levará onde não queres. Isto lhe disse para indicar com que morte ele haveria de glorificar a Deus. E, dito isto, acrescentou: "Segue-me" (Jo 21, 18-19).
Eu sigo-te; e sinto que não posso sair secretamente da cena deste mundo; mil fios me ligam à família humana, mil à comunidade que é a Igreja. Estes fios romper-se-ão por si; mas eu não posso esquecer que eles me exigem um supremo dever. Discessus pius, morte pia. Terei diante do espírito a memória de como Jesus se despediu da cena temporal deste mundo. Recordarei como Ele teve contínua previsão e frequente anúncio da sua paixão, como mediu o tempo na espera da "sua hora", como a consciência dos destinos escatológicos encheu o seu ânimo e o seu ensinamento, e como da sua morte iminente falou aos discípulos nos discursos da última ceia; e, finalmente, como quis que a sua morte fosse perpetuamente comemorada mediante a instituição do sacrifício eucarístico: mortem Domini annuntiabitis donec veniat: anunciareis a morte do Senhor até que Ele venha.
Um aspecto sobre todos os outros principal: tradidit semetipsum, entregou-se por mim; a sua morte foi sacrifício; morreu pelos outros; morreu por nós. A solidão da morte foi plena da nossa presença; foi penetrada de amor: dilexit Ecclesiam, amou a Igreja (recordar "le mystère de Jésus", de Pascal). A sua morte foi revelação do seu amor pelos seus: in finem dilexit, amou-os até ao fim. E do amor humilde e ilimitado deu no termo da vida temporal exemplo impressionante (cfr. o lava-pés), e do seu amor fez termo de comparação e preceito final. A sua morte foi testamento de amor. Deve ser lembrado.
Portanto, peço ao Senhor que me dê a graça de fazer, da minha próxima morte, dom de amor à Igreja. Poderei dizer que sempre a amei; foi o seu amor que me tirou do meu selvagem e tacanho egoísmo e me enviou para o seu serviço; e que para ela, e não por outra coisa, me parece ter vivido. Mas desejo que a Igreja o saiba; e que eu tenha a força de lho dizer, como uma confidência do coração, que só no último momento da vida se tem a coragem de fazer.
Quero finalmente compreendê-la toda na sua história, no seu desígnio divino, no seu destino final, na sua complexa, total e unitária composição, na sua humana e imperfeita consistência, nos seus infortúnios e sofrimentos, nas fraquezas e nas misérias de tantos dos seus filhos, nos seus aspectos menos simpáticos, e no seu esforço perene de fidelidade, de amor, de perfeição e de caridade. Corpo Místico de Cristo.
Quero abraçá-la, saudá-la, amá-la, em todos os seres que a compõem, em todos os bispos e sacerdotes que a assistem e guiam, em todas as almas que a vivem e a ilustram; quero abençoá-la. Também porque não a deixo, não saio dela, mas mais e melhor com ela me uno e me confundo: a morte é um progresso na Comunhão dos Santos.
Aqui é de recordar a prece final de Jesus (Jo 17). O Pai e os meus; são todos um; no confronto com o mal que está sobre a terra e na possibilidade da sua salvação; na consciência suprema de que era minha missão chamá-los, revelar-lhes a verdade, torná-los filhos de Deus e irmãos entre si: amá-los com o Amor, que é em Deus, e que de Deus, mediante Cristo, veio à humanidade, e pelo ministério da Igreja, a mim confiado, lhe é comunicado.
Ó homens, compreendei-me: a todos vos amo na efusão do Espírito Santo, que eu, ministro, vos devia participar. Assim vos guardo, assim vos saúdo, assim vos abençoo. A todos. E a vós, mais próximos de mim, mais cordialmente. A paz esteja convosco.
E à Igreja, a quem tudo devo, e que foi minha, que direi? As bênçãos de Deus sejam sobre ti; toma consciência da tua natureza e da tua missão; tem o sentido das necessidades verdadeiras e profundas da humanidade; e caminha pobre, isto é, livre, forte e amorosa para Cristo.
Pensiero alla morte, 14/VII/1973