domingo, 14 de março de 2021

A nossa alma é o guerreiro e o nosso corpo a armadura

Uma das discussões mais recorrentes que tenho, tanto no meu trabalho quanto nas relações pessoais, é a respeito da questão da alma. Estou cercado de “espiritualistas” e “materialistas” que insistem em bombardear-me, a todo momento, com verdadeiras “catequeses” a respeito da suas posições filosóficas (seria talvez mais preciso dizer “religiosas”) e insistindo para que eu tome uma posição: entre corpo e alma, de que lado fico?

Sobre a “dominação mítica e as fábulas religiosas cruéis”

Este é mais um daqueles falsos dilemas que nos são apresentados nos debates e nas conversas, sejam as presenciais, sejam as virtuais, em redes sociais e similares. Tenho muitos amigos materialistas, ou assim declarados, que querem convencer-me de que os “espiritualistas” estão errados, e que simplesmente não existe e nem pode existir algo como uma “alminha” que pilota o corpo humano, um “espírito” que habita em nós misteriosamente e que precede, sobrevive ou mesmo independentemente do corpo, e que a ele se junta acidentalmente em determinado tempo. 

Este mito “metafísico” é, dizem eles, a sobrevivência de velhos conceitos supersticiosos que precisam ser destruídos pela ciência e pela racionalidade contemporâneas. O corpo seria tudo: “toda a física e toda a metafísica, todo o sagrado e todo o profano, toda a consciência e toda a inconsciência”, como um deles me afirmou, categoricamente. Todo o resto, toda a metafísica que defende a existência desse “fantasma esotérico” (como ele chamava à alma humana) seria simplesmente o recurso moralista daqueles que “odeiam o corpo, odeiam a liberdade humana”. 

Assim, liberdade seria simplesmente a possibilidade de dizer sim a qualquer libido, a qualquer desejo, a qualquer inclinação corporal que não implique a destruição do corpo. O mais seria mera “dominação mítica, fábulas religiosas cruéis”. “Que nos deram vocês, os espiritualistas”, disse-me este meu amigo, “se não a repressão injusta e detestável dos prazeres corporais, em nome das suas fraquezas metafísicas? Vocês não admitem o culto do corpo, porque amam a repressão e a morte. Que fiquem com a morte, vocês que amam o martírio. Deixem a vida para nós, que somos fortes o suficiente para viver sem as ilusões religiosas dos fracos. Renunciaremos a este dualismo medieval entre corpo e alma, quando assumirmos a realidade exclusiva do corpo e do sim a todas as suas exigências!”

Espiritualistas

Que adiantaria explicar ao meu interlocutor que não sou nenhum “espiritualista”, no sentido dualista que ele estava coloca? A sua “fé” materialista não admitiria nenhuma contestação. Ele chegou a dizer: “Duvidas que o corpo é tudo? Experimenta passar fome, mendigar e dormir ao relento e adoecer. Verás como mudarás de ideias. Porque as nossas convicções todas são apenas estados mentais, que reflectem as necessidades do nosso corpo. E os nossos medos e desejos são os medos e desejos de nosso corpo.” Ele só não me explicou como chegou a descobrir isto sem ter experimentado pessoalmente (como eu sei que ele não experimentou) nenhum desses sofrimentos.

Mas os verdadeiros “espiritualistas”, aqueles que defendem a dualidade entre “corpo e alma”, não estão ausentes das nossas conversas no cafezinho. Tanto aqueles que se dizem cristãos e desprezam “as coisas deste mundo”, que seria o “mundo de Satanás”, em prol de uma salvação etérea e estritamente “espiritual”, que não envolverá o nosso corpo, mas apenas nossa alma enviada a um “paraíso” de anjinhos e harpas; quanto aos “espíritas” das mais diversas matizes, que acreditam que nós somos apenas “alminhas” presas num corpo “grosseiro” para fins de aperfeiçoamento e “evolução espiritual”; a alma e o corpo seriam, então, para estes, dois entes completamente estranhos entre si, e mais: para eles apenas à alma pertence verdadeiramente a natureza humana.

O corpo não é mera extensão e a alma não é mero pensamento imaterial

A determinado momento da conversa, tomei a palavra e disse: “Não posso concordar com a proposição de que o corpo é mera extensão, e a alma, mero pensamento imaterial. Esta, aliás, não é uma ideia medieval, mas o exacto centro da filosofia cartesiana, que é moderna.” Como notei que eles estavam atentos, prossegui: “Eu entendo e defendo que o corpo é uma coisa individualizada pela matéria. Um boneco de pano é um corpo, e uma pessoa humana também é um corpo. O que nos torna, a nós humanos, qualitativamente diferentes de qualquer outro amontoado de matéria é a nossa forma, amigo. Um corpo é uma coisa individual com uma forma, portanto, um corpo é uma unidade, e não possui nada fora de si mesmo; portanto, não há fantasminhas humanos no sentido que vocês, materialistas, combatem. Mas os seres corporais não são uma simplicidade, como a tese materialista parece reduzir – O corpo é uma unidade de forma e matéria. Mas ser uno é diferente de ser simples.”

“Como assim?” Perguntou-me o materialista.

“Fácil”, respondi. “Pensa num carro. Convenientemente, há um automóvel que se chama 'Uno'; e, embora ele seja “uno', ele não é simples: é composto de várias peças, partes, que, juntas numa determinada ordem, constituem-no como carro. Esta ordem é a forma.”

“Um corpo”, prossegui, “é, já em si mesmo, um composto uno, individual e indivisível de matéria e forma; a forma dá-lhe inteligibilidade, a matéria dá-lhe alteridade ou individualidade. Matéria e forma compõem o corpo, e não existem fora dos corpos que compõem, portanto, no teu materialismo grosseiro, estás certo em dizer que não há nada além do corpo com individualidade na realidade. Os números matemáticos, por exemplo, não têm matéria, mas existem. Existem, portanto, apenas nas nossas mentes. Se não houvesse ninguém para pensá-los, eles não existiriam. Isto não significa que sejam irreais, mas não têm individualidade: se eu e tu pensamos ao mesmo tempo no número dois, ele existe simultaneamente na minha mente e na tua; mas um ser corporal só existe num lugar, e portanto a sua realidade é o seu corpo!”

“O problema”, prossegui, “é que a forma de um corpo não é sua matéria, já que todos os corpos têm matéria; a forma especifica o corpo na sua inteligibilidade. Uma pedra não é uma formiga, e esta não é um ser humano. Um prato de almoço não é um vaso sanitário. O que diferencia os dois não é a porcelana, que é a matéria que os compõem, mas a forma que têm...”

A alma é a própria forma do corpo

“Os seres vivos", prossegui, “têm algo na sua forma que os diferencia dos seres inertes, e isto consiste na sua capacidade de serem causa do próprio movimento. A isto chama-se alma: uma forma corporal capaz de ser causa do próprio movimento. O meu amigo 'espiritualista” está errado, creio. A alma não é, como ele diz e tu negas, um algo no corpo. Ela é a própria forma do corpo, sem a qual o corpo vivo nem seria corpo."

Continuei: “Dá para pensar isto até no plano estritamente empírico: se um corpo não causa o seu próprio movimento, a sua forma é inerte. Se causa, a sua forma é activa, e se chama alma. Ser corpo dotado de forma activa, ou alma, é o que compartilhamos com todos os seres vivos – é a nossa natureza comum com eles”.

À forma corporal que, além de ser causa do próprio movimento, é ainda capaz de reflexão filosófica, moral e religiosa, chamamos de espírito.

“Há algo, no entanto, que especifica a forma humana, frente às outras formas do género animal. Se compartilhamos com os animais uma forma capaz de ser causa do nosso movimento, e portanto a nossa forma pode ser chamada, como a dos animais e vegetais, de alma, nós não compartilhamos com eles a nossa capacidade de reflexão, seja filosófica, seja religiosa, seja moral. Eu nunca discuti filosofia ou religião com nenhum animal que não fosse humano! À forma corporal que, além de ser causa do próprio movimento, é ainda capaz de reflexão filosófica, moral e religiosa, chamamos de espírito. Mas ele não existe na realidade que se apresenta a nós senão como forma de alguma coisa, de um ser humano real e concreto, e portanto não me peça para concordar com todos esses 'espiritualistas' e 'espíritas' que negam o valor da matéria e consideram o 'espírito' humano como um ser em si mesmo. Ele não é! Se ele subsiste ou não à morte, é algo que não está em discussão aqui.

Mas se o espírito humano fosse um ser completo em si mesmo, seria inteligível defender a existência, por exemplo, de 'almas femininas em corpos masculinos', e a necessidade de mutilação do corpo, neste caso, para supostamente adaptar o corpo, que seria inferior, à alma, como ente superior à matéria e perfeito em si mesmo, o que soaria como um absurdo filosófico a qualquer pensador que parta de onde partimos. Ora, se a alma é simplesmente a forma do corpo, então não há nenhuma coerência em nem sequer pleitear a eventual existência de uma alma que tivesse em si mesmo uma forma diversa daquela do corpo que ela constitui. Quaisquer eventuais desajustes de identidade, aí, estariam no plano psicológico ou emocional, e não no plano do ser".

A essa altura, ambos os debatedores entreolharam-se, e concordaram em dizer-me simplesmente: “complicas demais as coisas!” E foram discutir em outro lugar.

Paulo Vasconcelos Jacobina in Zenit


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