terça-feira, 14 de novembro de 2017

Entrevista do Cardeal Burke sobre os "dubia" um ano depois da sua publicação

O Cardeal Raymond Burke dirige um último pedido ao Papa Francisco para que esclareça as dúvidas, dizendo que a situação está cada vez pior, e afirmando a urgência que o Papa confirme os seus irmãos na Fé.

P. – Vossa Eminência, em que ponto estamos desde que, faz esta semana um ano, os “dubia” foram tornados públicos por Vossa Eminência, pelo Cardeal Walter Brandmüller, e pelos dois Cardeais recentemente falecidos, Carlo Caffarra e Joachim Meisner?

R. – Um ano depois da publicação dos “dubia” a respeito de “Amoris Laetitia”, que não receberam qualquer resposta por parte do Santo Padre, observamos que é cada vez maior a confusão acerca da interpretação da Exortação Apostólica. Torna-se por isso mais urgente ainda a minha preocupação pela situação da Igreja e pela sua missão no mundo. Naturalmente, continuo em contacto regular com o Cardeal Walter Brandmüller acerca destes assuntos de extrema gravidade. Ambos permanecemos em profunda unidade com os saudosos Cardeais Joachim Meisner e Carlo Cafarra, que nos deixaram nos últimos meses. É assim que de novo reitero a gravidade desta situação que se tem vindo a agravar continuamente.

P. – Muito se tem dito acerca dos perigos inerentes à natureza ambígua do Capítulo 8 de “Amoris Laetitia”, sublinhando-se como dá azo a interpretações diversas. Porque é que a clareza é tão importante?

R. – A clareza no ensinamento não implica de todo qualquer rigidez que pudesse impedir as pessoas de caminhar; bem pelo contrário, já que é precisamente essa clareza que vem trazer a luz necessária para se poder acompanhar as famílias a seguirem o caminho próprio dos discípulos de Cristo. É ao invés a obscuridade, e ela somente, que, impedindo que se enxergue o caminho, vem prejudicar a acção evangelizadora da Igreja, como nos diz Jesus: “Vem a noite, quando ninguém pode trabalhar” (Jo 9, 4).

P. – Poderia explicar algo mais, à luz dos “dubia”, acerca do que se está a acontecer na presente situação?

R. – A presente situação, longe de diminuir a importância dos “dubia” ou perguntas, torna-os ainda mais prementes. Não se trata de todo, como houve quem dissesse, de uma “ignorantia affectata”, que levanta dúvidas por não se querer aceitar um determinado ensinamento. Do que se trata nos dubia é sim, em vez disso, de determinar com precisão o que o Papa quis ensinar como sucessor de Pedro. 

Assim, as perguntas nascem precisamente do próprio reconhecimento daquele ofício petrino que o Papa Francisco recebeu de Nosso Senhor para confirmar na fé os seus irmãos, que é a sua finalidade. O Magistério é um dom de Deus à Igreja, para que faça clareza sobre pontos relativos ao depósito da fé. Afirmações em que falte essa mesma clareza, pela sua própria natureza, não podem ser qualificadas como expressões do Magistério.

P. – Do ponto de vista de Vossa Eminência, porque é que se torna tão perigoso que haja interpretações divergentes de “Amoris Laetitia”, em especial no que toca ao tratamento pastoral a dispensar a quantos vivam numa união irregular, e mais particularmente, no que diz respeito aos divorciados civilmente “recasados” que não vivem em perfeita continência e à questão de estes poderem ou não receber a Sagrada Eucaristia?

R. – É hoje evidente que foram sendo propostas várias interpretações, divergentes e até mesmo incompatíveis entre si, para certas indicações contidas em “Amoris Laetitia” e relativas a aspectos essenciais da fé e da prática da vida cristã. Este facto incontestável confirma que tais indicações aí contidas são ambivalentes e permitem diversas leituras, muitas das quais em contraposição com a doutrina católica. 

Assim sendo, as questões que nós Cardeais levantámos dizem respeito a saber o que foi exactamente que o Santo Padre ensinou e de que modo o seu ensinamento se harmoniza com o depósito da fé, dado que o magistério “não está acima da palavra de Deus, mas sim ao seu serviço, ensinando apenas o que foi transmitido, enquanto, por mandato divino e com a assistência do Espírito Santo, a ouve piamente, a guarda religiosamente e a expõe fielmente, haurindo deste depósito único da fé tudo quanto propõe à fé como divinamente revelado” (Concílio Vaticano II, Constituição dogmática “Dei Verbum”, n. 10).

P. – Não será que o Papa já não deixou claro qual seja a sua posição por meio da carta que endereçou a alguns bispos argentinos, na qual afirmou que “não há outra interpretação” senão a das linhas directrizes promulgadas por esses bispos – linhas directrizes essas que deixaram aberta a possibilidade de conviventes sexualmente activos não casados receberem a comunhão?

R. – Ao contrário do que foi dito entretanto, não podemos considerar como resposta adequada às questões levantadas a carta escrita pelo Papa pouco antes de receber os “dubia”, dirigida aos bispos da região de Buenos Aires e versando sobre as linhas directrizes estabelecidas por estes prelados. Por um lado, tais linhas directrizes podem elas próprias ser interpretadas de maneiras diferentes; e, por outro, não fica claro que a carta em questão seja um texto magisterial, mediante o qual o Papa tenha querido falar à Igreja universal enquanto sucessor de Pedro. 

O facto de que essa carta se tenha tornado conhecida porque houve uma fuga de informação para a imprensa – só depois tendo sido tornada pública pela Santa Sé – levanta uma dúvida razoável sobre se o Santo Padre teria a intenção de a dirigir à Igreja universal. Além do mais, seria bastante estranho – e contrário ao desejo manifestado explicitamente pelo Papa Francisco de deixar aos bispos de cada país a aplicação concreta de “Amoris Laetitia” (cf. AL, n. 3) – que agora o Papa viesse impor a toda a Igreja universal aquelas que são apenas as directivas concretas de uma pequena região. 

A ser assim, não deveriam porventura passar a considerar-se inválidas as diversas disposições promulgadas por vários bispos para as suas dioceses, desde Filadélfia até Malta? Um ensinamento que não é suficientemente determinado, seja quanto à respectiva autoridade como quanto ao seu efectivo conteúdo, não pode pôr em dúvida a clareza do ensinamento constante da Igreja, que, aliás, qualquer que seja o caso, permanece sempre normativo.

P. – Também está preocupado pelo facto de que certas conferências episcopais, ao permitirem que alguns divorciados “recasados” e que vivam “more uxorio” (isto é, que continuem a manter relações sexuais) possam receber a Sagrada Eucaristia sem um firme propósito de emenda, elas estejam com isso a contradizer o precedente ensinamento papal, em particular o contido na exortação apostólica  “Familiaris consortio”, do Papa São João Paulo II?

R. – Sim, os “dubia”, as nossas questões continuam em aberto. Quantos afirmam que disciplina ensinada por “Familiaris consortio” n. 84 mudou, mostram-se em oposição entre si logo que se trata de explicar as razões e as consequências. Alguns há que chegam ao ponto de defender que os divorciados com uma nova união e que continuam a viver “more uxorio” não se encontrariam num estado objectivo de pecado mortal (citando em seu apoio AL n. 303); outros negam esta interpretação (citando em seu apoio AL n. 305), e no entanto, deixam depois completamente entregue ao juízo da consciência a determinação dos critérios de acesso aos sacramentos. Parece pois que o objectivo dos intérpretes seja aquele de se chegar a todo o custo a uma mudança da disciplina, sem importar os argumentos que para tal fim se aduzam, e sem ter em consideração o quanto põem em perigo pontos essenciais do depósito da fé.

P. – Que efeito tangível tem tido esta mistura de interpretações?

R. – Tamanha confusão hermenêutica já produziu, de facto, um triste resultado. Verificamos que a ambiguidade a respeito de um ponto concreto da pastoral familiar conduziu alguns a propor uma mudança de paradigma acerca de toda a prática moral da Igreja, cujos fundamentos foram ensinados com autoridade por São João Paulo II na encíclica “Veritatis splendor”.

A verdade é que se activou um processo de subversão de partes essenciais da Tradição. No que toca à moral cristã, alguns sustentam que é necessário relativizar as normas morais absolutas e que se deve dar à consciência subjectiva, a uma consciência auto-referencial, um primado – em última análise equívoco –  em matéria de moral. Por conseguinte, o que aqui está em jogo não é um elemento tão-só secundário do “kerygma”, da mensagem fundamental do Evangelho. 

Do que estamos a falar é de saber se sim ou não, o encontro de uma pessoa com Cristo pode, por meio da graça de Deus, configurar o caminho da vida cristã, de modo a que este possa estar de acordo com o plano sapiente do Criador. Para melhor se compreender o alcance das mudanças que assim se propõem, basta pensar no que aconteceria se esse raciocínio viesse a ser aplicado a outros casos, como o do médico que pratica abortos, o do político que está ligado a uma rede de corrupção ou o de alguém que, estando em sofrimento, decida recorrer a uma modalidade de suicídio assistido…

P. – Alguns disseram que o efeito mais pernicioso é que tudo isto representa não só um ataque ao ensinamento moral da Igreja, mas também aos Sacramentos. De que modo?

R. – Para além do debate em torno da moral, está a provocar-se na Igreja uma erosão cada vez mais evidente do significado da sua prática sacramental, especialmente no que toca à Penitência e à Eucaristia. O critério decisivo para a admissão aos sacramentos sempre foi o da coerência do modo como uma pessoa vive com os ensinamentos de Jesus. Se agora, em vez disso, o critério decisivo passasse a ser a ausência de culpabilidade subjectiva das pessoas – como o fazem alguns dos intérpretes de “Amoris Laetitia” – não se estaria com isso a mudar também a própria natureza dos sacramentos? 

De facto, estes não são encontros privados com Deus nem meios sociológicos de integração comunitária. São sim sinais visíveis e eficazes da nossa incorporação em Cristo e na Sua Igreja, pelos quais e nos quais a Igreja professa publicamente a sua fé e a realiza. Assim, em se assumindo a culpabilidade subjectiva diminuída de uma pessoa ou a ausência de tal culpabilidade como critério decisivo para a admissão aos sacramentos, estar-se-ia a pôr em perigo a própria “regula fidei”, a regra da fé, que os sacramentos proclamam e realizam, não somente por meio de palavras mas também com gestos visíveis. Mais: como poderia a Igreja continuar a ser sacramento universal de salvação, se se esvaziasse de conteúdo o significado próprio dos sacramentos?

P. – Apesar de Vossa Eminência e muitos outros, incluindo mais de 250 académicos e sacerdotes que emitiram uma “correcção filial”, terem claramente sérias apreensões e reservas acerca dos efeitos destas passagens de Amoris Laetitia, e porque, até ao presente, não obteve ainda qualquer resposta por parte do Santo Padre, pode-se dizer que está aqui a dirigir-lhe um último apelo?

R. – Sim, por estas graves razões, um ano depois de se ter tornado públicos os “dubia”, de novo me dirijo ao Santo Padre e a toda a Igreja, sublinhando vigorosamente o quanto é urgente que o Papa, exercendo o ministério que recebeu do Senhor, confirme os seus irmãos na fé, com uma manifestação clara da doutrina atinente tanto à moral cristã como ao significado da prática sacramental da Igreja.

Sandro Magister in Settimo Cielo


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2 comentários:

Jorge disse...

Para conhecimento:

https://www.sign.org/videos/pope-responds-criticism-amoris-laetitia-respectable-wrong

Jorge disse...

Um teólogo escreve ao Papa: Há um caos na Igreja, e o senhor é uma causa.

http://maislusitania.blogspot.pt/2017/11/um-teologo-escreve-ao-papa-ha-um-caos.html